sábado, 25 de abril de 2020

Varal de Trovas n. 250


Auta de Souza (Baú de Trovas)


Ama e serve, sofre e luta…
Sem lâmina que a sublima,
a pedra largada e bruta
nunca seria obra-prima.
- - - - - –

As rosas também cobriram
o lenho santo da Cruz
quando os espinhos cingiram
a cabeça de Jesus!
- - - - - –

Caridade verdadeira,
em todos os seus caminhos,
quando oferece uma rosa
sabe tirar os espinhos.
- - - - - –

Colhi, entre amigos meus,
este conceito profundo:
– Mãe é um sorriso de Deus
nos sofrimentos do mundo.
- - - - - –

Como dois botões pequenos,
duas flores orvalhadas,
teus olhos dormem serenos
sob as pálpebras cansadas.
- - - - - –

Embora desiludida,
alma cansada e sincera,
por muito te doa a vida,
não desanimes!… Espera!
- - - - - -

Eu quero bem às crianças
porque não sabem mentir:
são pombas lindas e mansas,
passam na vida a sorrir.
- - - - - –

Eu amo as minhas lembranças,
minhas saudades e dores,
assim como amo as crianças,
os passarinhos e as flores.
- - - - - -

Mãe de filhinhos dos outros,
mulher de mãos benfazejas…
Diz o Mundo : – “Deus te guarde!…”
Diz o Céu : – “Bendita sejas!…”
- - - - - –

Não acredito que seja
assim como dizem, não...
Ai daquele que deseja
viver sem uma ilusão...
- - - - - –

Não te maldigas, querida,
mesmo se a dor te magoa:
é sempre feliz na vida
a alma que é pura e boa.
- - - - - –

Ó alma triste, chorosa
como uma dália no inverno,
despe da mágoa trevosa
o negro cilício eterno!
- - - - - –

Obsessão de quem ama,
ninguém consegue entendê-la:
parece vaso de lama
encarcerando uma estrela.
- - - - - –

Quando eu morrer, quero um manto
como o de Nossa Senhora,
que seja feito de pranto
do Céu quando nasce a aurora.
- - - - - –

São flores azuis boiando
à tona d'água, de leve,
esses dois olhos beijando
o teu semblante de neve.
- - - - - –

Segue o ideal que te aquece,
serve ao bem, seja onde for;
trabalho que permanece
é o que se faz por amor.
- - - - - –

Se há noites frias, escuras,
também há noites formosas;
há riso nas amarguras,
entre espinhos nascem rosas.
- - - - - –

Tenho a luz dos dias meus
nesta sentença concisa:
coração entregue a Deus
tem tudo de que precisa.

Fontes:
– Aparício Fernandes (org.). Trovadores do Brasil. 2. Volume. RJ: Ed. Minerva,
– Auta de Souza. Psicografia de Francisco Cândido Xavier

Sílvio Romero (Os Três Coroados)


Foi um dia, havia três moças já órfãs de pai e mãe. Uma vez, elas estavam todas três na sacada do seu sobrado, quando viram passar o rei. A mais velha disse: “Se eu me casasse com aquele rei, fazia-lhe uma camisa como ele nunca viu”. A do meio disse: “Se eu me casasse com ele, lhe fazia uma ceroula como ele nunca teve”. A caçula disse: “E eu, se me casasse com ele, paria três coroados”.

O rei ouviu perfeitamente a conversa, e, quando foi no dia seguinte foi ter à casa das moças e lhes disse: “Apareça a moça que disse que se casasse comigo, paria três coroados”. A moça apareceu, e o rei levou-a e casou-se com ela. As irmãs ficaram com muita inveja, mas fingiram não ter.

Quando a moça apareceu grávida, as irmãs meteram-se dentro do palácio, com aparências de ajudá-la em seus trabalhos. Aproximando-se o tempo de dar a rainha à luz, as suas irmãs se ofereceram para servi-la e dispensar a parteira. Chegado o dia, elas muniram-se de um sapo, uma cobra e um gato. Quando nasceram os três coroados, elas os esconderam dentro de uma caixa, e mandaram largar no mar. Apresentaram então ao rei os três bichos, dizendo: “Aí estão os coroados que aquela impostora pariu.” O rei ficou muito desgostoso e mandou enterrar a mulher até aos peitos, perto da escada do palácio, dando ordem a quem por ali passasse para cuspir-lhe no rosto.

Assim se fez. Mas um velho pescador encontrou no mar a caixa, apanhou-a, abriu e encontrou os três meninos ainda vivos e muito lindinhos. Ficou muito alegre, e levou-os para casa para criar. A velha, sua mulher, se desvelou muito no trato das crianças. Quando estas cresceram, a ponto de poderem ir para a escola, foram e passavam sempre pelo palácio do rei.

As cunhadas dele viram, por vezes, passar os meninos e os conheceram. Um dia os chamaram, e se puseram com muitos agrados com eles, e lhes deram de presente três frutas envenenadas, a cada um a sua. Os meninos comeram as frutas, e viraram todos três em pedra. Os velhos ficaram muito aflitos com aquilo, e toda a cidade falou no caso.

Mas a velha, que era adivinha, disse ao marido: “Não tem nada; eu vou à casa do Sol buscar um remédio para as três pedras virarem outra vez em gente”. Partiu montada a cavalo.

Depois de andar muito tempo, encontrou um rio muito grande e bonito. O rio lhe disse: “Ó minha avó, aonde vai? “ A velha respondeu: “Vou à casa do Sol para ele me ensinar que remédio se deve dar a quem virou pedra para tornar a virar gente”. O rio lhe disse: “Pois então pergunte também a ele a razão por que, sendo eu um rio tão bonito, grande e fundo, nunca criei peixe”. A velha seguiu.

Adiante encontrou um pé de fruta muito copado e bonito; mas sem uma só fruta. Ao avistar a velha, a árvore disse: “Aonde vai, minha velhinha?” “Vou à casa do Sol buscar um remédio para gente que virou pedra”. “Pois pergunte a ele a razão por que, sendo eu tão grande, tão verde e tão copada, nunca dei uma só fruta...” A caminhante seguiu.

Depois de andar muito, passou pela casa de três moças, todas três solteiras e já passando da idade de casar. As moças lhe disseram: “Aonde vai, minha avó?” A velha contou aonde ia. Elas lhe pediram para indagar do Sol o motivo por que, sendo elas tão formosas, ainda não tinham casado. A velha saiu e continuou a caminhar.

Ainda depois de muito tempo é que chegou à casa da mãe do Sol. A dona da casa recebeu-a muito bem. Ouviu toda a sua história e encomendas que levava, e escondeu-a, em razão de seu filho não querer estranhos em sua casa, e quando vinha era muito zangado e queimando tudo. Quando o Sol chegou, vinha desesperado e estragando tudo o que achava: “Fum... aqui me fede a sangue real!... aqui me fede a sangue real...” “Não é nada, não, meu filho, é uma galinha que eu matei para nós jantarmos”.

Assim a mãe do Sol o foi enganando, até que ele se aquietou e foi jantar. Na mesa da janta sua mãe lhe perguntou: “Meu filho, um rio muito fundo e largo por que é que não dá peixe?” “É porque nunca matou gente”. Passou-se um pouco de tempo e a velha fez outra pergunta: “E uma árvore muito verde e copada, por que é que não dá fruta?” “Porque tem dinheiro enterrado embaixo.” Pouco tempo depois outra pergunta: “E umas moças bonitas e ricas por que não casam?” “Porque costumam urinar para o lado em que eu nasço”. Deixou passar mais um tempinho e perguntou: “E qual será o remédio para gente que tiver virado pedra?” Aí o Sol enfadou-se e disse: “O que querem dizer hoje estas perguntas?’ A mãe respondeu: “Vivo aqui sozinha, me ponho a imaginar estas tolices”. O Sol foi e respondeu: “O remédio é tirar da minha boca, quando eu estiver comendo, um bocado e botar em cima da pedra”.

A velha, daí a pouco, fingiu um espanto, levou a mão à boca do Sol e tirou o bocado, dizendo: “Olha, meu filho, um cisquinho na comida!” E guardou o bocado. Daí a pedaço a mesma coisa: “Olha um cabelo, meu filho”! E escondeu mais um bocado. Numa terceira vez, ela fez o mesmo e o Sol se levantou aborrecido, falando: “Ora, minha mãe, o seu de comer hoje está muito porco; não quero mais”.

Deitou-se e no dia seguinte foi-se embora para o mundo. Sua mãe foi à velhinha que estava escondida, e lhe contou tudo, dando os três bocados. A velha pôs-se a caminho para trás. Passando por casa das moças, aí dormiu, sem querer dizer a razão por que elas não casavam.

No dia seguinte, bem cedo, ela levantou-se e as moças também. Elas correram logo para o lugar onde costumavam urinar, voltadas para o nascer do sol. A velha as repreendeu dizendo: “É esta a razão de vocês não casarem. Percam este costume de urinar para a banda de onde o sol nasce”. As moças assim fizeram e logo acharam casamento.

A caminhante tomou o seu caminho e foi-se embora a toda pressa. Chegando na fruteira, pôs-se debaixo dela a cavar sem dizer nada; quando puxou um grande caixão, então disse por que a fruteira não dava frutas. O pé de árvore começou logo a carregar que parecia praga. A velha seguiu.

Ao chegar ao rio, ele lhe indagou do seu recado: “Logo lhe digo”; e a velhinha foi passando depressa. Quando se viu bem longe, gritou: “É porque você nunca matou gente”. O rio botou logo uma enchente tão grande, que por um triz não matou a velha. Afinal foi ela ter em casa. Sem mais demora aplicou os três bocados em cima das três pedras, e os meninos se desencantaram.

A notícia destas coisas chegou aos ouvidos do rei. Ele mandou um dia convidar o velho com os três meninos para jantarem em palácio. O velho não quis ir, nem mandar os meninos. O rei o intimou, até que foram os meninos. Mas a velha ensinou aos meninos: “Quando vocês lá chegarem, meus filhinhos, ao passarem pela escada, se ponham de joelhos e tomem a bênção àquela mulher que lá está enterrada parecendo um cadáver, porque é a mãe de vocês. Na janta não queiram ir para a mesa sem que o rei mande desenterrá-la e botar também na mesa. Quando ele der a cada um o seu prato, não comam e deem todos três a ela, que os há de devorar num instante, pois está morta de fome. Aí as duas moças que lá têm, que são tias de vocês, hão de dizer: “Que barriga de monstro que cabe três pratos de uma vez!” A isto vocês respondam tirando os bonés e dizendo: “Não é de admirar que caibam três pratos de comida, quando coube três coroados!” e mostrem ao rei as cabeças.

Assim foi: os meninos executaram fielmente as recomendações da velha. (Todas as coisas se repetiram pela forma indicada pela velha adivinha, com grande surpresa para o rei e desapontamento para as duas infames malfeitoras). Tudo acabado, o rei, que ficou vivendo com sua mulher, que voltou à sua antiga beleza, e os seus filhinhos, em palácio, perguntou-lhes o que queriam que ele fizesse às duas danadas.

Os meninos responderam que “ele mandasse buscar quatro burros bravos e as amarrasse nos rabos.” Assim fizeram, e elas morreram lascadas ao meio.

Fonte:
Sílvio Romero. Contos Populares do Brasil. RJ: José Olympio, 1954.

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Varal de Trovas n. 249


Silmar Böhrer (Lampejos Poéticos) XXVIII


Rachel de Queiroz (Os Mitos da Época)


Fala-se muito em libertação feminina através da modernização dos lares com o uso de uma infinidade de aparelhos, elétricos ou manuais, que reduzem imensamente o tempo outrora gasto nas tarefas indispensáveis à manutenção do lar.

Bem, os aparelhos domésticos ajudam, é claro, e alguns divertem e consolam como a TV. Mas ainda lhes falta muito para serem o milagre que se anuncia por aí, e os fabricantes ainda terão que os aperfeiçoar imenso, até que o alívio por eles proporcionado seja realmente satisfatório.

Todas essas máquinas — de lavar roupa e louça, aspiradores, enceradeiras, liquidificadores batedeiras, churrasqueiras cafeteiras, etc., ainda estão a enorme distância da perfeição cibernética ou de qualquer outra perfeição. São como computadores que exigissem do usuário ficar de lado, completando as contas no lápis.

Vejamos em primeiro lugar todos os eletrodomésticos que lidam com alimentos: a sua performance é rápida e quase sempre eficiente — mas ninguém, nenhum fabricante jamais pensou no problema suscitado pela sua limpeza, infinitamente mais difícil que a das simples tigelas e colheres de pau da cozinha antiga. As máquinas fazem o trabalho, automaticamente, mas não se limpam também automaticamente. Experimente fazer uma maionese num liquidificador — são três minutos.

Mas depois há que desmontar o aparelho, limpar com o dedo (e quase sempre cortar-se) as lâminas e todas as demais peças, uma por uma, banhá-las no detergente, escaldar (para tirar o cheiro), enxugar, armar de novo. As vezes leva mais tempo do que bater a maionese na colher, à moda antiga.

O mesmo se diga da batedeira de bolo, das espremedeiras de suco, do aparelho de wafles, das churrasqueiras; isso sem falar dos confortos mais antigos — a máquina de moer carne, chatíssima de limpar, ou a tragédia que faz muita mãe de família pensar desesperada em abandono do lar, quando se vê diante do seu fogão esmaltado, literalmente coberto de gordura, após o simples preparo de um almoço de bifes com batatas fritas. (E olhe que existe o Nautilus para absorver a gordura, mas também há que limpar o Nautilus, o que não é nenhum doce). A enceradeira — veem-se anúncios de TV onde se mostra a mulher encerando a sala enquanto dança um balé. Mas ninguém fala na prévia limpeza do chão, na retirada da cera velha com Varsol (ou palha de aço!), na esfregação da cera nova... Aspirador também é ótimo — mas há que armar o bicho e, depois, aquela abominável operação que é esvaziar e limpar o saco do pó. Máquina de lavar louça, essa ainda é uma ilusão. Dá mais trabalho lavar louça com ela do que sem ela, é o que dirão todas que a usam. Já a máquina de lavar roupa é o mais aperfeiçoado aparelho do arsenal doméstico. Assim mesmo ainda exige o desagradável manuseio da roupa suja para pesagem e imersão das peças, o trabalho de estender no secador. Sem falar na sequência da tarefa, o passar a ferro, penosíssima ainda, apesar do ferro elétrico.

Resumindo, a automação do trabalho doméstico ainda é um ideal distante. Muitas das máquinas em uso acabam complicando mais do que ajudando. E isso no tempo em que já se mandam homens à Lua!

E depois, há muita gente que diz que mulher vai trabalhar na rua porque não acha mais o que fazer em casa!

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

Célia Cerqueira Cavalcanti (Baú de Trovas)


A amizade verdadeira,
tem nobreza e galhardia,
pois sabe ser companheira
na tristeza e na alegria.
- - - - - –

A dor, ajuda e consola,
ao pobre dá tua mão,
que bondade é quando a esmola
nos provém do coração.
- - - - - –

Bandeira de minha terra,
tu retratas o Brasil,
a grandeza que se encerra
sob a luz de estrelas mil...
- - - - - –

Da terra à lua, a distância,
pelo astronauta vencida,
que nunca sirva à ganância,
nem à guerra fratricida...
- - - - - –

Ensinemos à criança
o verdadeiro civismo:
nunca lutar por vingança,
ser leal, ter patriotismo.
- - - - - –

Era a lua, antigamente,
fonte só de inspiração...
Hoje, o astronauta, inclemente,
diz que é pedra e solidão…
- - - - - –

Era de paz, tão-somente,
o mundo que Deus criou...
a humanidade, inclemente,
logo a maldade inventou.
- - - - - –

Gosto da trova, é singela
tradução do pensamento;
é pequenina aquarela
retratando um sentimento.
- - - - - -

Humilde seja o trabalho,
mas honesto, que o valor
não vem da forja ou do malho,
mas da alma do lutador…
- - - - - –

Jamais haveria guerra,
se um dia a fraternidade
unisse os povos da terra
na fé, no amor, na bondade.
- - - - - –

Não sei se tenho razão
de ter ciúmes de ti;
confiar desconfiando...
foi contigo que aprendi.
- - - - - –

Na vida, grande tormento,
por vezes terrível mar,
nau perdida é o pensamento
que não sabe onde aportar...
- - - - - –

Nossa infância é madrugada,
juventude é meio-dia;
a velhice, um quase nada
para o fim da nostalgia...
- - - - - –

O lar que tive em criança,
era um farol entre escolhos...
Berço de vida e esperança,
luz que refulge em meus olhos.
- - - - - –

Quando o amor é de verdade,
e puro, sem preconceito,
faz parecer qualidade
até mesmo o que é defeito.
- - - - - –

Que não seja a tua esmola,
vazia de coração.
– A esperança mais consola
do que um pedaço de pão…
- - - - - –

Saudade, tu representas
como se fosses atriz,
repetindo toda a história
do nosso tempo feliz.
- - - - - –

Seja de rico ou de pobre,
a honra é glória, é candor
que do plebeu faz um nobre,
e ao nobre dá mais valor.
- - - - - –

Senhor Deus, tornai unidas
as nações, todos irmãos;
as crianças protegidas,
o trabalho unindo as mãos!...
- - - - - –

Ser avó é, novamente,
ser mãe feliz; é viver,
na ternura do presente,
o passado... é renascer...
- - - - - –

Tão pequenino e, no entanto,
traduz o amor mais profundo!
Que nome existe, mais santo,
do que o teu, mãe, neste mundo?
- - - - - –

Vale mais a lealdade
de calar, tendo razão,
do que triste falsidade
de fingida opinião…
- - - - - –

Vida sem fé não é vida,
é somente escravidão,
é matéria consumida
em sete palmos de chão…
- - - - - –

Viver feliz não é ter
o mundo inteiro na mão;
felicidade é saber
amar, é ter coração.

Fontes:
– Aparício Fernandes. Poetas do Brasil. vol.4.
– Izo Goldman
- Aldhiyb Al'Abyad

Sammis Reachers (O Tempero Colombiano)


Nos ribombares da pandemônica década de 60, meu pai, Mário Pedro da Silva, chegou ao estado do Rio, vindo da doce e estacionária vida em Arapongas, no interior do Paraná. Vinha em busca de glória e fama: sonhava ser ator. Ou cantar no rádio. Ou uma ponte que o levasse à Hollywood. Ou você pensou que a parte carnavalesca de meu nome, “Sammis Reachers Cristence” Silva, veio de uma inspiração superior? Talvez descendente de abnegados missionários ingleses, ou colonos alemães avermelhados pelo sol e pelo solo paranaense? Que tal de Herbert Richers, o falido e antes onipresente empresário da dublagem televisa (“Versão brasileira: Herbert Richers”, lembra?). Veio dos nomes nos créditos finais dos filmes que ele, meu velho jovem pai, amava, na pacatitude da já citada Arapongas, onde o cinema era tudo o que havia, a bacia das almas.

Bem, após alguns meses desavisadamente fustigantes na efervescência da capital, a inadequação de nosso herói mambembe encontrou refrigério inesperado quando ele foi convidado para ver “aquela cidade ali, do outro lado da baía”. Atravessando as águas turvazuis da Guanabara, o jovem paranaense teve uma iluminação ao conhecer a cidade onde eu vim a nascer (epa, spoiler!). A calmaria da Niterói ainda em sua meia idade lhe lembrava de alguma forma o Paraná pacatizado, pacativante, e a paixão assomou aos olhos do aspirante a James Dean.

Em pouco tempo Mario estava de mala e calça boca de sino alugando quarto de pensão em Icaraí, naquela época o bairro (que já era nobre) que reunia o melhor consórcio de aprazibilidade e centralidade.

Estabelecido,  meu pai logo conseguiu emprego na cidade sorriso e pôs-se a fazer amigos. Na própria pensão em que se instalara, havia os mais diferentes tipos.

A tal pensão tinha sua legislação, como é (epa, ao menos era) de praxe em tais repúblicas. Nada de mulheres; nada de cozinhar nos quartos; divisão de quartos? No máximo entre dois homens.

A dona da pensão era o coração pulsante do lugar, e ela mesma uma figura da mais relevante singularidade. Bogotana, filha da Bogotá de nossa vizinha Colômbia, ninguém nunca soube o que ela viera fazer naqueles idos por aqui. A suspeita que liderava as pesquisas era que a agora velha Consuelo, jovem ainda havia se apaixonado por algum cafajeste viajor, que a trouxera para as paragens brasileñas, e aqui a abandonara à própria e mala sorte.

Era ela, a querida de todos na pensão, que proporcionava o momento mágico da vida daqueles senhores, homens e rapazes que ali habitavam, durante o jantar (a pensão servia apenas café da manhã, simplório, e jantar. O almoço cada um tinha que filar ou comprar em outras paragens). A comida, sempre exuberantemente saborosa, mesmo nos dias de maior frugalidade, entorpecia os ânimos e estômagos de todos aqueles que, felizardos, a provassem. Uma cozinha primorosa, cercada como convém de segredos (era terminantemente proibido que enxeridos penetrassem na casa de dona Consuelo durante a elaboração dos pratos) e com doces toques de exotismo era ali praticada; uma cozinha que merecia até estar aberta ao público, e mais, a um público mais seleto do que àquela coletânea de solteiros que se refastelava nas panelas. Solteiros que, cientes da bênção que era sorver aquela cozinha encantadora, segredavam entre si o privilégio que era morar naquele lugar, se por mais nada, ao menos pela comida fulminante. Contrariados, evitavam estender-se em elogios, embora os mesmos fossem algo inevitáveis: temiam que a boa senhora abrisse um restaurante, caso em que certamente faria imediata fortuna, e de uma única e mesma facada lhes fosse surrupiada a estalagem e a boa comida...

Após o repasto, a alegria descia sobre os agregados; as conversas se expandiam. Tímidos passavam a palrar como canários; os já faladores eram então insuflados a animadores de auditório. As cantorias tomavam o ar de torneios, de “Festivais da Canção” onde duelavam-se sorridentes convivas. Havia algo de mágico naquele ambiente, e era sempre após o jantar que aquela magia socializadora ou destimidizadora parecia explodir.

Certa feita o silencioso Abelardo, aprendiz de oculista, e que normalmente mal despachava um “bom dia, boa noite” aos companheiros de pensão, pôs-se a rodopiar em dança, solitário, olhos cerrados, como que arrebatado; seu bailar, aplaudido pelos demais, estendeu-se portão afora da república – e lá foi o Abelardo, antes tímido que só ele, dançarolando pela calçada, ao som de algum acompanhamento musical que só ele ouvia (pois não havia música a tocar), para espanto dos poucos transeuntes daquele trecho.

E o Fernando, policial turrão e engomado, príncipe da empáfia e da arrogância militaresca, que, sempre que tocado pelos benfazejos vapores do jantar, punha-se a pedir perdão aos companheiros por seu comportamento usualmente arrogante. Certa feita receitou, de improviso, um belo poemeto em honra da amizade, declamação que o levou embaraçosamente aos soluços lacrimais.

Mas o efeito mais bizarro daquela felicidade pós-banquetal se dava sobre o Rui, pernambucano cabo da Marinha de Guerra, varonil mulherista e mui cioso de sua elevada posição (cabo, como disse) na hierarquia militar. O brincalhão e pretensamente galanteador marujo, negro de média estatura, peitoral proeminente, belos olhos de um castanho claro que ele alegava serem os terrores do mulheril, quando de barriga cheia e engolfado pelo clima descontraído que se sucedia àqueles jantares, ganhava um brilho diferente no olhar. Primeiro era seu riso, que se alongava; em seguida suas gesticulações passavam a ganhar mais vida, mais curvas; a marcialidade de seus movimentos cambiava para uma leveza quase... quase feminina. E assim, sorrindo largamente até as gargalhadas, traquejando com inesperada malemolência, o Rui, agora levantado de sua cadeira, passava então a apertar e massagear os ombros dos amigos, alisando os cabelos de um aqui, ajeitando a gola de outro ali... O que no princípio inevitavelmente descambou em algumas confusões, mas rapidamente aquela “transformação” foi absorvida pela geleia geral daquele festim diário de pós-expedientes.

O desenlace de nossa historieta teve seu início com o aperto e a correspondente esperteza de meu pai: conhecedor da proibição de cozinhar nos quartos, o jovem paranaense, talvez contaminado pela mítica malandragem carioca, resolveu transgredir a lei em nome da economia: conseguindo um pequeno fogareiro de um bocal, movido à prosaico querosene, passou a cozinhar pequenas porções de macarrão ou outras basicalidades dentro do quarto; para isso, todos os dias na hora do almoço voltava para a pensão a título de descansar justamente o “almoço” que alegara já ter consumido no centro de Niterói...

Em pouco tempo nosso herói, tão inábil na cozinha quanto um cego, passou a ressentir-se de ter que comer seu macarrão ou arroz ou o que fosse sempre maculado pela mais insossa sem-saboria. Já não sabia cozinhar; “mal” acostumado que ali fora a uma cozinha dos deuses, amargava cada colherada de sua própria comida como um condenado.

Um dia o estudante autodidata de inglês, que ainda sonhava em conhecer Hollywood, teve um insight: e se ele conseguisse dar uma espiada na dona Consuelo enquanto ela cozinhava? A velha era irredutível nesse ponto, mas ele poderia bolar algum tipo de burla para conferir como aquela maga temperava suas comidas. Não deveria ser tão difícil. Nosso mais novo malandro já não suportava a tortura de almoçar sola de sapato e jantar manjares e ambrosias...

Um belo dia meu pai saiu um pouco mais cedo do trabalho (nesta época já trabalhava como contínuo na Facit, no centro de Niterói) e dirigiu-se para a pensão. Ali, esgueirou-se pela parte detrás daquele conjunto de quartos, já com um tamborete nas mãos, para dar altura à pequena janela que fundeava a cozinha da velha, e lá se espichou ele para observar qual o segredo dos temperos da dona Consuelo. Observou por um tempo considerável enquanto a velha picava carne para um ensopadinho, cozinhava uma formidável panela de arroz e remexia um feijão que estranhamente não levava alho, mas ficava sempre delicioso. A atenção do malandrete estava concentrada no momento das temperanças, pois ali ele esperava descobrir ao menos algo que pudesse replicar, ainda que porcamente, a fim de mitigar o gosto já intragável de sua comida.

Pendurado e atento em seu tamborete, o jovem viu a idosa estrangeira sacar de dentro de um armário uma chusma de matos diversos. A velhinha pôs-se a picar bem finas algumas folhagens; meu pai estava atento: pôde reconhecer cebolinha, aipo e talvez cardamomo. Mas então a matrona bogotense ou bogotana apanhou um grande pote plástico e dele sacou uma outra erva. A velha espremeu algumas das estranhas folhas nos dedos, e pareceu sorver seu aroma por alguns instantes; depois pôs-se a arrancar pedaços daquelas folhas estreladas e jogar dentro de todas as panelas que tremelicavam no fogão.

O ex-matuto de roça e aprendiz de haute cuisine já havia visto aquela erva fina, mas não fora nas pequenas roças de fundo de quintal naquela terra roxa e fértil do Paraná, nem nas vendas e armazéns, quando sua madrasta lhe mandava ir até lá comprar este ou aquele item; quem lhe mostrara aquele tipo de tempero fora Fernando, o policial ferrabrás, que certa feita exibia numa revista de sua corporação imagens daquela exótica planta, tão em moda naqueles idos da década de 60. O desconcerto da informação, sub-reptícia e algo dura de equalizar, derrubou meu jovem pai estatelado no chão.

Enquanto caia de sua banqueta, num daqueles fenômenos de slow motion que gostam de acontecer nos momentos dramáticos de nossas vidas, o jovem cinéfilo paranaense revira em flashback toda aquela espalhafatosa alegria pós-pasto; a música, as piadas, o gracejos e traquejos e a felicidade quase mágicas que assomavam a todos os republicanos da pensão de dona Consuelo. O motivo estava agora claro, pensava o magricela enquanto pranchava suas costelas contra alguns pedregulhos do chão.

Sabe-se lá por que cargas d’água (e a que custo, meu Deus, a que custo!), dona Consuelo temperava todos os seus pratos com frescas folhas de maconha...
*     *     *     *     *     *

Deglutidos os embaraços, o jovem migrante paranaense não pensou uma segunda vez. Reuniu seus vinténs e avançou ainda mais mato adentro. Comprou uma caxanguinha em nossa São Gonçalo, longe dos exóticos temperos colombianos. Bem, nem tão longe assim, mas essa história todos conhecemos...
***************************************************************

Sammis Reachers (São Gonçalo - RJ) é poeta, escritor e editor, autor de sete livros de poesia e dois de contos. Professor de Geografia no tempo que lhe resta – ou vice-versa. Organizador de mais de 30 antologias, edita a Revista Amplitude (revista cristã de literatura e artes) e os blogs Poesia Evangélica (https://poesiaevanglica.blogspot.com/) e Mar Ocidental (https://marocidental.blogspot.com/). Pratica ainda poesia experimental no blog O Poema Sem Fim (https://opoemasemfim.blogspot.com/).

Fonte:
Texto e biografia enviados pelo autor.

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Varal de Trovas n. 248


Luiz Poeta (Transatividade Verbal)


- Você me ama, perguntei. - Amo - seu tolo!
... mas o seu verbo, que era tão... intransitivo...
ganhou ação e complemento... o seu consolo
passou a ser um pronome... reflexivo.

Revendo as regras,  expliquei que o verbo amar
é ideal, quando a  ação é transitiva,
e que o pronome essencial que a completar
tem que ser "te"... de forma  mais objetiva.

Ela me olhou - confesso, aquele olhar doeu -
e sussurrou: - Meu verbo é bem mais natural...
e o sujeito... meu amor... hoje sou "eu",
só sei, de cor, colocação... pronominal.

Se numa próclise, um romance se inicia,
uma mesóclise é a forma mais completa,
pois na conjugação a dois, amar-se-ia
na plenitude que a sintaxe  projeta.

Tornou-se enclítica nas suas exigências,
porém me disse, num tom bem coloquial:
"O seu pronome supre bem minhas carências...
mas cada verbo que conjugo é... passional.

Juro, optei pelos meus vícios...
de linguagem,
e no calor da nossa  Nova Ortografia,
os pleonasmos ganharam nova roupagem
e... hiperbolamos... nossas fisiologias.

Fonte:
Recanto das Letras

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) O Jornal do Chico


No início de 1955, quando para aqui mudei, havia dois jornais em Maringá: “O Jornal”, de circulação diária, e o semanário “A Hora”. Um dia, cerca de três meses após minha chegada à cidade, peguei a monareta e fui conhecer a redação de “A Hora”, localizada numa casinha de madeira na Zona 2. Lá encontrei o Chico de Souza, mistura de gerente, vendedor de anúncios, editor e tudo o mais. Apresentei-me, disse que gostava de escrever e perguntei se ele aceitaria colaboração. “Aceito sim, disse ele, e se quiser comece agora”. Tomei um susto, claro. Chico explicou que precisava fechar a edição, mas faltava o editorial. O redator-chefe adoecera na véspera e ele estava ali sem saber o que fazer. Indaguei qual seria o assunto. “É contra o prefeito”, acrescentou, dando as razões da briga. O prefeito era o Villanova, a quem eu só conhecia de nome. Mas tudo bem: sentei-me diante de uma velha máquina Remington e em poucos instantes o artigo estava pronto. Ele leu, arregalou os olhos, chamou o tipógrafo: “Rapidinho, cara, componha este texto e ponha pra rodar”.

Só depois dessa agitada cena o Chico me convidou para tomar um cafezinho e iniciou o interrogatório: quem era eu, de onde vinha, se queria emprego no jornal e coisa e tal. Respondi que desejava apenas publicar uma crônica semanal, sem remuneração. Aceita a oferta, assim se fez. O problema foi o remorso que bateu dias após, quando vi de perto pela primeira vez o prefeito Inocente Villanova Júnior e com ele bati um papo rápido. O homem era uma simpatia, um herói lidando com os desafios de uma prefeitura sem dinheiro e com mil coisas a serem feitas a curtíssimo prazo. Nunca mais falei mal dele...

“A Hora” era um jornal valente, composto numa daquelas tipografias antigas, sem nenhum desses recursos eletrônicos que hoje fazem maravilhas. O outro informativo da cidade, bem mais moderno (tinha até linotipo e impressora rotativa), era o “O Jornal de Maringá”, do saudoso jornalista Ivens Lagoano Pacheco, ancestral do atual “Jornal do Povo”, do nosso veterano mestre Verdelírio Barbosa.

Chegava a ser surpreendente um lugar tão novinho já contar com dois jornais de boa qualidade. Mas foi ali que os primeiros jornalistas de Maringá começaram a influir decisivamente na construção da história do município. Os maringaenses mais antigos se lembram do poder de influência dos editoriais do Ivens, dos artigos de Dom Jaime Luiz Coelho, do Dr. Mário Urbinatti, do Dr. Hellenton Borba Cortes, do Dr. Altino Borba.

Além dos dois jornais, havia a Rádio Cultura, a emissora pioneira, que por vários anos foi a única porta-voz da geração que inaugurou esta jovem urbe. Depois vieram outros jornais, outras emissoras de rádio, a televisão... Legal lembrar tudo isso.

(Crônica publicada no “Jornal do Povo” – Maringá – 12-3-2020)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Silvia Araújo Motta (Cordel Coletivo: As Gigantes Lições do Coronavírus)


Mote do Poeta-Cordelista Marconi Araújo.
Presidente da Academia de Cordel da Paraíba.


“A lição do corona é tão gigante
que é marcante pra toda geração.”


Cordel Coletivo Virtual nº 7.133
Céu escuro! Pensei no tal CORONA:
na tristeza que traz ao mundo inteiro;
sem vacina, não vale ter dinheiro...
O comércio reclama em toda zona!
A Oração nos dá fé que vem à tona.
Vírus faz chorar, mundo tem razão:
invisível visita e tem ação...
Chuva cai na vidraça, tão constante.
“A lição do corona é tão gigante
que é marcante pra toda geração.”

****************************************

Cordel Coletivo Virtual nº 7.137

COVID  é rosa que tem flor e espinho;
na distância faz crer no puro amor,
pois VACINA contém a bela cor.
O perfume-SAÚDE vem mansinho,
trazer calma, esperança ao bom caminho.
Esta DOR vai passar, em mar aberto.
A ORAÇÃO tem PODER:_ Ditado certo!
De mãos postas, eu sigo firme e avante.
“A lição do corona é tão gigante
que é marcante pra toda geração.”

****************************************

Cordel Coletivo Virtual nº 7.139

Nós iremos vencer o CAOS da dor.
A prudência faz parte e quer cuidar 
da Família e do Outro; vamos dar 
nossa VOZ e ORAÇÕES; fazer favor.
O contágio vê MORTOS; traz pavor .
DEUS é nosso refúgio...Fé conduz;
em VERDADE semeia PAZ, guia a LUZ
para a VACINA a estrela SER brilhante. 
“A lição do corona é tão gigante
que é marcante pra toda geração.”

****************************************

Cordel Coletivo Virtual nº 7.140

Toda CRISE tem fim, quer queira ou não.
Aceitar a MUDANÇA faz seguir 
nova trilha! Quem sabe se o partir  
será BOM, pois dará maior noção:
Energia capaz de dar lição,
diferente da espera!... DEUS presente
recupera o momento em nossa mente.
Ser FELIZ traz a Paz e Amor garante.
“A lição do corona é tão gigante
que é marcante pra toda geração.”


continua…
****************************************
 
Sobre a Cordelista:
Cordel autobiográfico nº 7.135


Sou a Sílvia Professora
bem feliz, aposentada.
pela vida, apaixonada.
Violonista e escritora; 
eu também sou trovadora.
Chamam-me de sonetista.
Alguns julgam-me ensaísta.
Gosto muito de cantar;
de escrever e de dançar.
Aprendiz ...sou CORDELISTA.

Fonte:
– A Autora
Recanto das Letras

Irmãos Grimm (O Ladrão e seu Mestre)


Houve, uma vez, um homem chamado João, o qual desejava que o filho aprendesse um ofício, então foi à igreja e pediu ao bom Deus a graça que o filho encontrasse um ofício conveniente. Atrás do altar, porém, estava escondido o sacristão, que lhe sugeriu:

- Que aprenda o ofício de ladrão! O ofício de ladrão!

João virou nos calcanhares, foi para casa e disse ao filho que deveria aprender o ofício de ladrão, pois fora esse o conselho do bom Deus.

Partiram, então, os dois à procura de alguém que fosse perito nesse ofício. Andaram o dia inteiro, por fim chegaram a uma grande floresta, onde avistaram um casebre habitado por uma velhinha. João dirigiu-se a ela e perguntou:

- Não conheceis alguém que saiba ensinar o ofício de ladrão? Pois desejo que meu filho siga essa profissão.

- Oh, ele pode aprender muito bem aqui. Meu filho é mestre nessa arte. - respondeu a mulher.

E João perguntou ao filho da velha se realmente sabia a arte e podia ensinar ao seu com perfeição.

- Podes ficar descansado. - respondeu o filho da velha - Ensinarei tudo a teu filho. Volta daqui a um ano, se o reconheceres, não exigirei pagamento algum, mas se não o reconheceres, terás de pagar-me duzentas moedas.

João voltou para a casa e deixou o filho aprendendo a arte da feitiçaria e do banditismo. Transcorrido o ano marcado, o pai volveu ao casebre da floresta, mas ia profundamente aflito por não saber se reconheceria ou não o filho. Andando e choramingando, topou com um homenzinho, que lhe perguntou:

- Por quê te lastimas tanto e vais com essa cara tão triste?

- Ah! - disse João, - faz justamente um ano que deixei meu filho na casa de um ladrão para aprender o ofício. O mestre me disse para voltar daí a um ano e se fosse capaz de reconhecer meu filho ele não me cobraria nada, mas se não o reconhecesse teria de pagar-lhe duzentas moedas. Agora estou com receio de não reconhecê-lo e não sei onde poderei arranjar as duzentas moedas.

O homenzinho então lhe disse:

- Deves levar contigo um cesto de pão e sentar-te na pedra em baixo da lareira. Lá no alto, dependurada na trave, está uma gaiola com um passarinho espiando para fora. Esse passarinho é teu filho.

João seguiu o conselho do homenzinho. Levou um cesto de pão e postou-se diante da lareira. Daí a pouco saiu um passarinho da gaiola e veio bicar o pão olhando para ele.

- Olá, meu filho! Estás aqui?!

O filho ficou muito satisfeito ao ver o pai, mas o mestre resmungou:

- Foi certamente o diabo quem te sugeriu a maneira de reconhecer teu filho!

- Vamos embora daqui, meu pai. - Disse o rapaz.

Pai e filho, então, puseram-se a caminho de casa. Depois de andar bastante, viram passar uma carruagem e o filho disse:

- Vou-me transformar num belo galgo, meu pai, assim poderás arranjar dinheiro vendendo-me.

O senhor que ia na carruagem gritou para João:

- Olá, bom homem, queres vender-me o teu cachorro?

- Posso vender. - disse o pai.

- E quanto queres por ele?

- Quero trinta moedas.

- Trinta moedas! É muito dinheiro! Mas como é tão bonito pagarei o que me pedes.

Concluído o negócio, o senhor fez o cão subir para a carruagem, mas não haviam andado muito e o cão subitamente salta pela janela da carruagem e vai reunir-se ao pai. Já não era mais cachorro, voltara ao aspecto normal.

Prosseguiram juntos o caminho rumo de casa. No dia seguinte, havia feira na aldeia vizinha e o rapaz disse ao pai:

- Vou transformar-me num belo cavalo e tu poderás vender-me. Quando me venderes, tira-me antes o cabresto, ou não poderei voltar á forma humana.

João levou o cavalo à feira e eis que chega o mestre ladrão e compra o cavalo por cem moedas. Vendo tanto dinheiro, João ficou tão contente que esqueceu de tirar o cabresto. O mestre levou-o para casa e prendeu-o na estrebaria. Quando a criada ia passando perto da grade da estrebaria, o cavalo disse:

- Tira-me este cabresto! Tira-me este cabresto!

- Oh! Podes falar! - exclamou, espantada, a moça.

Foi até ele e tirou-lhe o cabresto. Imediatamente o cavalo transformou-se num pardal, que saiu voando. O mestre ladrão transforma-se, também, em pássaro e sai voando atrás dele. Alcançando pouco depois o pardal, desafia-o e batem-se, mas o mestre sai derrotado e se atira dentro da água, transformando-se cm peixe. Então o rapaz também se transforma em peixe, batem-se novamente e o mestre torna a perder. Então, ele se transforma numa galinha e o rapaz numa raposa que, com uma dentada matou a galinha, deixando-o morto para sempre. E morto continua até hoje.

Fonte:
Contos de Grimm.

quarta-feira, 22 de abril de 2020

Varal de Trovas n. 247


Aparecido Raimundo de Souza (Cada Louco com a sua Mania)


DIAS ATRÁS, MINHA FILHA Érica me ligou pedindo que eu fosse buscar minha neta Ellen, filha dela, no hospital onde estava dando plantão. Como uma doutora que a renderia não comparecera e ela precisava dobrar até as oito da manhã do dia seguinte, me solicitou que eu fosse urgente buscar a menina.

Ao chegar, me identifiquei dizendo à atendente quem eu procurava. Como já era esperado, ela chamou outra recepcionista a quem pediu que me acompanhasse até o segundo andar e me deixasse na enfermaria 234 da Ala A.

A caminho, fiquei sabendo que minha filha havia deixado ordens para que eu fosse levado até o pavimento onde ela cuidava de um paciente que acabara de vir a óbito. A jovem que me escoltou, muito simpática e atenciosa, se chamava Eva, e eu lhe disse que não havia necessidade de tanto incômodo, observando que conhecia aquele hospital melhor que os corredores de minha casa:

— É praxe. O senhor não pode subir sozinho…

Sorri e entramos no elevador. Quando chegamos à enfermaria onde Érica se encontrava, ela, sem tirar as luvas das mãos, a máscara do rosto e o estetoscópio do pescoço, veio até mim, me pediu a bênção e, como sempre, me enviou um beijo colocando o dedo indicador nos lábios.

Antes de dispensar Eva, minha filha sobrepôs uma proteção em mim e solicitou que ela, de regresso, passasse no primeiro andar e mandasse vir uma técnica em radiologia. Nesse meio-tempo, agradeci à beldade por ter me acompanhado e lhe enviei uma piscadela.

A especialista — igualmente novinha e também engraçadinha, parecia um anjo com o embuço branco — chegou, nos deu boa tarde e foi preparar o aparelho que se achava num canto do quarto. Nesse meio tempo, saímos para uma espécie de antessala dentro do próprio aposento, de onde continuamos a avistar a radiologista e o extinto, sem, no entanto, atrapalharmos o trabalho das tais chapas que seriam tiradas.

Tudo pronto e preparado. De repente, a jovem olhou para o homem que jazia sem vida na cama e disse-lhe, de um modo carinhoso, quase em sussurro, todavia num tom que conseguimos ouvir perfeitamente: “Não respire, por favor!”.

Segundos depois, terminado o procedimento com os raios X, voltou a olhar para o de cujus, do mesmo modo que antes e falou: “Ótimo! Bom menino! Desculpe o incômodo. Agora pode voltar a respirar”.

Surpresa com aquela cena, e após a radiologista ter batido em retirada, minha filha e eu nos aproximamos do cadáver:

— Papito, se esse sujeito respirar, juro ao senhor que imediatamente dou o fora daqui!

Em seguida, ela, rindo a não mais poder ao lembrar pelo ocorrido e eu, idem, subimos para a cantina no sexto andar onde minha neta nos esperava.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Luiz Otávio (Um Coração em Ternura…) 4


CADÊ?!

“Cadê o teu sorriso tão sadio?
E aquela gargalhada tão festiva,
Aonde está? Quem foi que t’a roubou?'

"Cadê aquela voz apaixonada,
que vivia cantando noite e dia?
Aonde está? Quem foi que t'a roubou?

"E aquele corpo esguio como um galgo,
de grande resistência e agilidade?"
Aonde está? Quem foi que t'o roubou?

— Eu tinha só vinte e um anos,
quando ela por mim passou...
... E levou tudo que eu tinha!
— Tudo a Doença me roubou!…
****************************************
 

CIÚMES...

"Bom dia!,.. Pode entrar Felicidade...
Faça de conta que este lar é seu...
Tem andado sumida, de verdade...
Enfim até que um dia apareceu..."

E ela envolvida numa claridade,
tão brilhante que até me entonteceu,
reparou tudo com curiosidade,
fitou-me muito... mas não se moveu...

Depois me perguntou com ar zangado:
"Quem é esta que vejo e vive agora,
constantemente assim sempre ao seu lado?!"

(Ela via a Saudade ao lado meu...)
E foi por isso só que foi se embora,
e para sempre desapareceu...
****************************************

NUVENS

("Dando sombra e consolo aos que padecem")
Olavo Bilac


Invejo muito — ó Nuvem — teu destino...
Pois a Vida tu vês de muita altura,
que o Mundo te parece pequenino
e nem sabes que existe a Desventura…

Pouco paras... e assim em desatino,
veloz te leva o Vento com loucura,
e em fuga tu constróis no Azul divino,
castelos de esquisita arquitetura...

Assim quero meus versos sem valia...
– Se alegres, que extasiem aos demais,
como nuvens brincando à luz do dia...

Se tristes, como nuvens que escurecem,
caiam do Céu, em chuva, nos trigais,
dando consolo e pão aos que padecem…
****************************************

TÉDIO

A tarde vai passando amarguradamente!
E tão longa ela está, tão escura e tão fria,
que congela também até a alma da gente,
tornando-a bem mais triste e lúgubre e vazia...

A tarde com certeza está também doente...
Pois eu lhe sinto bem toda a melancolia!
E as horas vão assim tão vagarosamente
que duas tardes sinto apenas num só dia...

Nestas tardes sem fim é que percebo então,
que sou bem semelhante a velho e escuro prédio,
abandonado ao mofo e eterna solidão...

– Nem mesmo o Amor "sequer me serve de remédio,
pois de Saudade e fel, encheu-me o coração,
tornando ainda maior este meu grande Tédio...
****************************************

VELA BRANCA AO CREPÚSCULO

No Horizonte cor de rosa,
num crepúsculo sem par,
como és triste, vela branca,
no verde-escuro do mar!...

Vais seguindo, tristemente,
lá longe... tão devagar...
— que não sei se estás mais perto,
do Céu azul ou do Mar...

Por que vais, ó vela branca,
neste lento deslizar ?!...
— Se a Saudade pesa tanto,
porque a foste carregar?!

Barco à vela, ao Sol poente...
Gaivotas longe a voar…
— Por que atrás de um quadro destes
veio o tédio se alojar?

Vem do Barco esta tristeza?!
Do Céu, da Tarde ou do Mar?…
— Vem de ti, oh! poeta triste…
Reflexos de teu olhar…

Fonte:
Luiz Otávio. Um coração em ternura…: poesias. RJ: Irmãos Pongetti, 1947.

Rubem Braga (O Crime (de Plágio) Perfeito)


Aconteceu em São Paulo, por volta de 1933, ou 4. Eu fazia crônicas diárias no Diário de São Paulo e além disso era encarregado de reportagens e serviços de redação; ainda tinha uns bicos por fora.

Fundou-se naquela ocasião um semanário humorístico, O Interventor, que depois haveria de se chamar O Governador. Seu dono era Laio Martins, excelente homem de cabelos brancos e sorriso claro, boêmio e muito amigo. Pediu-me colaboração; o que podia pagar era muito pouco, mas  eu não queria faltar ao amigo. Escrevi algumas crônicas assinadas. Depois comecei a falhar muito, e como Laio reclamasse, inventei um pretexto para não escrever. Seu jornal era excessivamente político (perrepista, se bem me lembro) e eu não queria tomar partido na política paulista, mesmo porque tinha muitos amigos antiperrepistas. Laio não se conformou: "Então ponha um pseudônimo!"

Prometi de pedra e cal, mas não cumpri. Laio reclamou novamente, me deu um prazo certo para lhe entregar a crônica. No dia marcado eu estava atarefadíssimo, e quando veio o contínuo buscar a crônica para O Interventor eu cocei a cabeça - tive uma ideia.  Acabara de ler uma crônica de Carlos Drummond de Andrade no Minas Gerais, órgão oficial de Minas, com um pseudônimo - algo assim como Antônio João, ou João Antônio, ou Manuel Antônio, não me lembro mais; ponhamos Antônio João. Botei papel na máquina, copiei a crônica rapidamente e lasquei o mesmo pseudônimo.

Dias depois recebi o dinheiro da colaboração, juntamente com o pedido urgente de outra crônica e um recado entusiasmado do Laio: a primeira estava esplêndida!

Daí para a frente encarreguei um menino da portaria, que estava aprendendo a escrever a máquina, de bater a crônica de Drummond para mim; eu apenas revia para  substituir  ou riscar alguma referência a qualquer coisa de Minas. Pregada a mentira e praticado o  crime, o remédio é perseverar nesse rumo hediondo; se às vezes senti remorso, eu o afogava em chope no bar alemão ao lado, e o pagava (o chope) com o próprio dinheiro do vale do Antônio João.

O remorso não era, na verdade, muito: Carlos não sabia de  nada, e o que eu fazia não  era  propriamente  um  plágio,  porque  nem  usava matéria assinada por ele, nem punha o meu nome em trabalho dele. E Laio Martins sorria feliz, comentando com meu colega de redação: "O Rubem não quer assinar, mas que importa? Seu estilo é inconfundível!"

O estilo era inconfundível e o chope era bem tirado; mas você pode ter a certeza, Carlos Drummond de Andrade, que muitas  vezes eu o bebi à sua saúde, ou melhor, à saúde do Antônio João, isto é, à nossa.

Dos 25 mil réis que Laio me pagava, eu dava 5 para o menino que batia à máquina; era muito dinheiro para um menino naquele tempo, e isso fazia o menino feliz. Enfim, lá em São Paulo, todos éramos felizes graças ao seu trabalho: Laio, o menino, os leitores e eu - e você em Minas não era infeliz.

Não creio que possa haver um crime mais perfeito.

Fonte:
Rubem Braga. A Traição das Elegantes. RJ: Sabiá,1967.

terça-feira, 21 de abril de 2020

Varal de Trovas n. 246


Paulo Mendes Campos (Segredo)


Há muitas coisas que a psicologia não nos explica. Suponhamos que você esteja em um 12.º andar, em companhia de amigos, e, debruçando-se à janela, distinga lá embaixo, inesperada naquele momento, a figura de seu pai, procurando atravessar a rua ou descansando em um banco diante do mar. Só isso. Por que, então, todo esse alvoroço que visita a sua alma de repente, essa animação provocada pela presença distante de uma pessoa da sua intimidade? Você chamará os amigos para mostrar-lhes o vulto de traços fisionômicos invisíveis:  "Aquele  ali  é papai". E os amigos também hão de sorrir, quase   enternecidos, participando um pouco de sua glória, pois é inexplicavelmente tocante ser amigo de alguém cujo pai se encontra longe, fora do alcance do seu chamado.

Outro exemplo: você ama e sofre por causa de uma pessoa e com ela se encontra todos os dias. Por que, então, quando esta pessoa aparece à distância, em hora desconhecida aos  seus encontros, em uma praça, em uma praia, voando na janela de um carro, por que essa ternura violenta dentro de você, e essa admirável compaixão?

Por que motivo reconhecer uma pessoa ao longe sempre nos induz a um movimento interior de doçura e piedade?

Às vezes, trata-se de um simples conhecido. Você o reconhece de longe em um circo, um teatro, um campo de futebol, e é impossível não infantilizar-se diante da visão.

Até para com os nossos inimigos, para com as pessoas que nos são antipáticas, a distância, em relação ao desafeto, atua sempre em sentido inverso. Ver um inimigo ao longe é perdoá-lo bastante.

Mais um caso: dois amigos íntimos se veem inesperadamente de duas janelas. Um deles está, digamos, no consultório do dentista, o outro visita o escritório de um advogado no centro da cidade. Cinco horas da tarde; lá embaixo, o tráfego estridula; ambos olham  distraídos e cansados quando se descobrem mutuamente. Mesmo que ambos, uma hora antes, estivessem juntos, naquele encontro súbito e de longe é como se não se vissem há muito tempo; com todas as  graças  da  alma  despertas, eles começam a acenar-se, a dar gritos, a perguntar por gestos o que o outro faz do outro lado. Como se tudo isso fosse um mistério.

E é um mistério.

Fonte:
Paulo Mendes Campos. O Cego de Ipanema. RJ: Ed. do  Autor, 1961.

André Kondo (A Caligrafia)


Num mar negro. Nigérrimo. As ondas quebram violentamente em alguns momentos, para acalmarem-se pacientemente em outros. Tempo. No alvo plano, uma montanha negra se eleva em questão de segundos. Tempo. A geografia nasce em singelas pinceladas, vida e morte, na ponta de um pincel. Eternidade.

Nampo contemplou o mar. Seguia um ritual meticuloso antes de iniciar uma peça de shodo*. No caminho da caligrafia não deveria haver qualquer traço negativo. Para isso, era necessário apagar qualquer sinal que pudesse macular a pureza de espírito. Era necessário que a alma deslizasse no papel como em uma caminhada com destino certo, sem desvios e imprevistos que poderiam levar a um sentimento indesejável.

As peças caligráficas de Nampo poderiam trilhar o caminho da perfeição, repousando nas paredes dos mais santificados templos e dos mais suntuosos palácios de seu tempo. Certamente, sobreviveriam, mesmo quando os tempos se tornassem outros. Para um grande mestre da arte do shodo, escrever uma peça perfeita era como traçar a própria eternidade. No sumi* negro pincelado no alvo papel, na coreografia perfeita nascia a dança dos significados. Os traços ganhavam contornos de vida.

Uma peça caligráfica é escrita para uma determinada estação do ano, sendo substituída como as folhas que caem no outono, a neve que derrete na primavera, as flores de cerejeira sopradas ao vento, os frutos colhidos, as aves que migram, as vidas que passam. Uma sazonal eternidade.

Na fugacidade desses momentos que, à primeira vista, parecem tão efêmeros, existe um traço da eternidade. Estações passam, porém, sempre retornam, em um ciclo que se repete ao longo dos milênios.

É este equilíbrio, entre o traço aparentemente efêmero do mestre de shodo e a eternidade do significado das palavras traçadas, que caracteriza uma obra-prima da arte de escrever o que não se expressa com palavras.

Às costas de Nampo, encontrava-se uma dessas peças perfeitas. Aliás, não "uma dessas", mas "a peça perfeita". Desde que a arte da caligrafia surgira, há três mil anos, nunca houve e, provavelmente, nunca haverá uma peça que se iguale àquela exposta no relicário de Nampo.

Quando aquela peça foi traçada, o mundo parou por um segundo. E, nesse único segundo, a eternidade do satori* foi alcançada. A caligrafia iluminou-se como um Buda e criou um universo, além das esferas deste mundo. Porém, para Nampo, aquelas linhas traçadas naquele papel só atestavam uma coisa: a verdade.

Em sua juventude, Nampo havia se deparado com a austeridade de uma vida que deveria alcançar a perfeição. Seu pai era o mais poderoso senhor feudal de sua época. Desejando preparar o filho para ocupar o seu lugar no poder, instruiu-o com os melhores mestres. O pai de Nampo havia conquistado o Japão com a espada, cuja arte considerava superior a todas as outras. Era na arte da espada que o pai queria que o filho se especializasse.

Se havia aulas de cerimônia do chá, era para aguçar-lhe o sentido do sabor da perfeição. Se havia aulas de música, era para afiar-lhe o ouvido para a sublime canção da vitória. Se havia aulas de sumiê*, era para aguçar-lhe os reflexos em combate. Se havia aulas de caligrafia... era para que ele pudesse escrever o seu nome na História.

Dentre todas as artes, Nampo apaixonou-se pela caligrafia. Em nenhuma outra sentia-se tão pleno quanto na arte do shodo. Porém, havia um fato que talvez o tenha levado a escolher a arte do shodo em detrimento de todas as outras: Yumi.

Yumi, sua professora de caligrafia, era uma jovem promissora, cujo talento surpreendeu até o pai de Nampo, acostumado apenas a conviver com os maiores mestres em suas respectivas artes. Havia, no traço de Yumi, uma vivacidade rara. Geralmente, os grandes mestres de shodo eram já anciãos, que passaram a vida inteira aperfeiçoando-se nesta arte de traçar sentimentos. Por isso, a jovial genialidade de Yumi tornava-se ainda mais impressionante. Tão impressionante que atraiu o amor, não apenas de Nampo, mas também de seu pai,

— Cada peça de shodo é única. Veja, podemos traçar a mesma frase, a mesma palavra, os mesmos caracteres... Porém, observe o traçado de cada uma das peças. Nenhuma peça é igual a outra. “Vê?" — Yumi explicava.

— Um dia, Yumi, traçarei uma peça de shodo exatamente igual a uma das suas.

— Acabei de explicar que peça alguma pode ser igual a outra — Yumi sorriu.

— Yumi, em todas as artes, compreendi que tudo depende do fluxo do coração. É ele quem controla a intensidade de nossos movimentos, da nossa respiração. Um dia, quero ser capaz de sentir o que você sente. Tomar-me um com você. Pois é isto o que eu mais desejo. Unir minha alma à sua— disse Nampo.

Yumi ruborizou. Sua mão perdeu a firmeza. Não conseguiria traçar o mais simples kanji naquele dia. Não sabia se sorria ou se repreendia o aprendiz, que apesar de ser filho do senhor feudal, ainda era apenas um jovem. Ainda mais jovem do que ela própria.

Nampo se esforçava para penetrar no coração de Yumi. Tal esforço apenas provocava cada vez mais o afastamento da jovem mestra de shodo. Até que, não suportando mais fugir de um sentimento que perigosamente crescia não apenas dentro de Nampo, mas dentro de si também, decidiu solicitar o seu afastamento ao seu senhor,

— Yumi, concordo em afastá-la como tutora de meu filho.

— Muito obrigada! Agradeço a compreensão e generosidade...

— Pois será, em breve, minha esposa!

Surpreendida, Yumi sabia que aquela não era uma proposta que pudesse declinar. Era uma sentença. Perpétua.

Em uma época em que o senhor feudal era senhor não apenas das terras, mas dos homens que nela viviam, em que homens se sacrificavam em seppuku com um simples gesto de seu senhor, não restou outra alternativa, senão a submissão de Yumi. E de Nampo.

Na noite anterior à união de seu pai e Yumi, Nampo a procurou. A Lua brilhava tão intensa que seria uma pena deixar de imortalizá-la em um haicai. Porém, a poesia daquela noite era outra, traçada em negras curvas. O negro da noite e não a claridade da Lua seria o mestre daquele momento.

Nampo sentia o espírito arder. Também assim queimava a alma de Yumi. Quando duas paixões tão intensas se encontram, mundos colidem e sociedades desmoronam em chamas.

A respiração, O coração disparado. As curvas se definindo. Lentamente. Cada caminho levando a um único destino: o nascer de uma peça de shodo.

— Nampo, eis a minha alma, que entrego a você...

Nampo nada disse. Quando alguém lhe entrega a alma, não há palavras. O papel estendido. As mãos quase se tocaram. Quase. No encontro das almas, o corpo nunca está presente.

A despedida.

Nampo abandonou as terras de seu pai. Vagou pelo Japão em busca de alguma paz. Acompanhava-o em sua jornada a alma de sua amada. Porém, como viver apenas com a alma, quando seu corpo também clamava por companhia? Refugiou-se em uma cabana abandonada, em um promontório distante. Nunca mais saiu dali.

No relicário, a alma-viva de sua amada: a peça de shodo de Yumi. A peça que, pacientemente, entre um shodo e outro sobre sentimentos vãos, tentava imitar. Dia após dia, no momento em que mais sentia saudade, Nampo tentava seguir os caminhos trilhados por Yumi naquela peça caligráfica. Às vezes, quase conseguia. Porém, seus destinos haviam se separado para sempre. Destarte, nunca lograva seguir os caminhos de Yumi.

Saía ao mar em um pequeno barco, comprado às custas de sua arte caligráfica. Pescava. Em canteiros que cercavam sua cabana, plantava legumes e hortaliças. Essa rotina aparentemente pequena escondia a grandiosidade da vida. O traçado dos deuses sobre a terra criava os peixes no mar, os frutos na terra. Porém, quem apenas visse peixes e frutos perderia a verdadeira essência dos traços da vida: o mar e a terra.

A cada dois meses, um emissário de uma loja do vilarejo viajava dois dias para chegar à cabana. Levava as peças caligráficas de Nampo e em troca deixava algum item essencial para o corpo do artista e outros essenciais á sua alma. Um dos itens mais importantes que ele trazia era um pequeno bloco de sumi negro, que Nampo diluía em água para traçar suas peças de shodo. Este momento para ele era sagrado. O diluir do sumi era o diluir de sua alma, que se esvaía na ponta do pincel, imortalizando-o no papel.

Por anos, essa rotina se repetiu... Anos...

Nampo, já velho, observou o emissário retornar. Ao longo do tempo, os emissários mudavam, porém, o que não mudava era o sumi, de qualidade incomparável, que Nampo recebia com incompreensível prazer. Daquela vez, o emissário demorou--se mais do que de costume. E não trouxe o sumi. Não trouxe nada além de uma carta:

Nampo, peço perdão por esta vida... 

Tudo o que pude lhe dar foi uma peça de shodo, quando o que desejava era poder dar a você o que nela estava escrito. Por anos, imaginei que seria capaz de ser forte e cumprir o meu desejo. Porém, como deve ter percebido, nunca tive essa coragem.

Nampo, devo pedir perdão por algo mais terrível ainda...

Por todos esses anos, eu o tive ao meu lado... Senti cada dia de sua vida, a cada peça de shodo que você traçava. Pois saiba que adquiri cada peça sua, cada suspiro, cada toque... E, para aumentar ainda mais a minha culpa, ousei estar ao seu lado também...

Perdão, Nampo... Por esta atitude egoísta. Cada vez que recebia uma peça de shodo sua, empenhava-me em seguir os mesmos traços. Após terminar a minha peça, espelha da sua, queimava-a junto com a madeira, para que se tomasse a fuligem que usava para fabricar os seus blocos de sumi. Empenhei-me em fazer com que o dono da loja aceitasse enviar a você apenas o sumi que eu fabricasse. Fato que ele não questionou, pois eu era uma boa cliente, comprando todos os trabalhos de shodo que você vendia por intermédio dele. Foi um arranjo fácil. O difícil foi suportar a minha mesquinharia.

Como pude viver assim todos estes anos? Como pude desfrutar de sua companhia e ainda impor a minha a você? Desconheço algo mais vil nesta vida. Por isso tudo, peço perdão.

Nampo, perdão pelos meus erros... Muito obrigado, por estar ao meu lado nestes longos anos. Nampo, perdão por partir assim, mais uma vez, e desta vez, creio, para sempre...

Se está recebendo esta carta é porque, assim como o sumi que com carinho fabriquei para você, eu também me tomei pó, para servir de sumi ao pincel dos deuses...

Yumi


Nampo olhou para o mar, olhou para a caligrafia de Yumi, pendurada em seu relicário. Ali estava escrito, com todas as curvas da vida, a palavra: amor. Nampo ansiava retribuir o presente recebido, há tanto tempo. Finalmente, o seu coração estava preparado.

Abandonando o sumi, os pincéis e o papel, abandonando sua cabana, Nampo caminhou pela praia deserta. Lembrou-se, claramente, do último momento em que vira o rosto de Yumi. Ajoelhou-se.

Com a ponta do dedo, que nunca a havia tocado, Nampo passou a traçar a areia. Finalmente conseguiu o que tanto desejava: uma caligrafia exatamente igual a de Yumi.

O que está escrito no coração é a peça de caligrafia mais sublime, a verdadeira alma da escrita da vida, pois é traçada pelo equilíbrio entre a fugacidade de um único momento... e toda a eternidade de um sentimento.

_______________________________________
NOTAS:
* Shodo ("Caminho da escritura") é a caligrafia japonesa. É considerada uma arte e uma disciplina muito difícil de perfeccionar e é ensinada como uma matéria a mais às crianças japonesas durante a sua educação primária. Provém da caligrafia chinesa e é praticado no estilo antigo, com um pincel, um tinteiro onde se prepara a tinta nanquim, pisa-papel (peso de papel) e uma folha de papel de arroz. Atualmente também é possível usar um fudepen, pincel portátil com depósito de tinta.

O shodō pratica a escritura dos caracteres japoneses hiragana e katakana, assim como os caracteres kanji, os caracteres chineses. Atualmente existem calígrafos que são contratados para a elaboração de documentos importantes. Além de exigir alta precisão e graça pelo calígrafo, cada caractere dos kanji devem ser escritos segundo uma ordem de traços específica, o que aumenta a disciplina necessária daqueles que praticam esta arte. (wikipedia)
- - - - - -

* Sumi é uma tinta de origem chinesa, tradicionalmente usada no Japão. Descoberta a sua fabricação pelos chineses como sendo uma espécie de "nanquim mais barato", e que com o comércio chegou ao Japão, onde virou uma febre, e os japoneses que aprimoraram a técnica, transformando a tinta frágil contra umidade em outra com quase a mesma composição só que com mais durabilidade, a mesma durou pouco no comércio chinês pelo fato descrito anteriormente sobre a sua durabilidade, voltando lá, a ser usado o nanquim. Enquanto o nanquim é uma tinta com origem natural, vinda de polvos e lulas que o usam como modo de defesa, a tinta sumi é a mistura de fuligem, agua e condimentos usados na sua preservação e validade como podemos dizer. A arte da utilização da tinta sumi se chama sumiê, uma arte muito antiga no Japão provavelmente sendo adquirida no século XV d.c, quando a tinta chegou ao Japão, e como era de uma fabricação muito mais barata, virou uma febre no mesmo, pois o Japão na época não era tão desenvolvido quanto a China, então deste modo, o Japão nesta area não precisou mais do comércio com a China. (wikipedia)
- - - - - –

* Sumiêarte da utilização da tinta sumi. Suiboku-ga ou Shuimohua (chinês tradicional) é uma técnica de pintura oriental que surgiu na China no século II da era cristã. Da China o sumiê foi levado ao Japão onde tornou-se mais difundido. A palavra tem raiz japonesa e significa pintura com tinta. Seu conceito não tem ligação com a pintura praticada no ocidente. Primeiro porque a arte do sumiê é uma mistura de desenho com elementos de caligrafia, que também é uma arte para os orientais. Segundo, porque o artista deve passar sua mensagem de modo resumido e sem equívocos. Daí dizer-se que é a arte do essencial. Talvez para atingir essa simplicidade que o sumiê é basicamente monocromático.

Assim como o desenho, o material usado pelo artista é bem limitado: pincéis, uma tinta especial parecida com o nanquim e papel artesanal à base de arroz. O aluno começa o aprendizado com os desenhos mais simples, quase sempre bambus. O modo de segurar o pincel e o gesto de colocar a tinta no papel deve conter um delicado equilíbrio entre a pressão da pincelada, e a maior ou menor quantidade de tinta.

Trata-se de uma arte que exige, após muito treino, grande habilidade e concentração. É por isso que poucos atingem o estágio de mestre. A representação do tema importa menos do que a composição do trabalho. Na composição, que segue regras bastante rígidas, o artista revela sua alma, a elegância do traço e principalmente a harmonia que deve existir no seu interior.

No Brasil, provavelmente o introdutor da arte do sumiê foi Massao Okinaka. Por muitos anos manteve classes de alunos interessados em aprender essa técnica tão antiga, mas absolutamente nova para os ocidentais. (wikipedia)

- - - - - –

* Satori é um termo japonês budista para iluminação. A palavra significa literalmente "compreensão". É algumas vezes livremente tratada como sinônimo de Kensho, mas Kensho refere-se à primeira percepção da Natureza Búdica ou Verdadeira Natureza, algumas vezes conhecida como "acordar". Diferentemente do kensho, que não é um estado permanente de iluminação mas uma visão clara da natureza última da existência, o satori refere-se a um estado de iluminação mais profundo e duradouro. É costume portanto utilizar-se a palavra satori, ao invés de kensho, quando referindo-se aos estados de iluminação do Buda e dos Patriarcas.

"Satori é a raison d'être (Razão de ser) do Zen, sem o qual o Zen não é Zen. Portanto todo o esforço, disciplinário ou doutrinal, é dirigido ao satori."

No Brasil, uma vez ao ano, o mestre Satyaprem orienta o Satori, método desenvolvido com similaridade à imersão dos monastérios Rinzai Zen (de silêncio e isolamento) e a auto-indagação de Ramana Maharshi, e reestruturado por Osho. Inicialmente chamado de "iluminação intensiva" (awareness intensive), trata-se de um trabalho que conduz à realização da natureza búdica – à descoberta de quem/o que se é, além do corpo, além da mente –, no qual koans rompem o nível intelectual, dando possibilidade à autodescoberta existencial.

Seu primeiro contato com o método foi em 1985, nos Estados Unidos, através de Ma Yoga Sudha, discípula e terapeuta do universo de Osho, com quem trabalhou mais tarde. Por muitos anos, Satyaprem coordenou o Satori na Osho Multiversity, na Índia, e em alguns lugares da Europa e do Brasil, país onde, desde 2001, o trabalho é exclusivamente realizado no "Festival de Carnaval com Satyaprem" e tem sido uma das maneiras com que o mestre conduz ao fim da busca, mediante o encontro com esta questão fundamental: "Quem sou eu?". (Wikipedia)


Fonte:
André Kondo. Contos do Sol Renascente. Jundiaí/SP: Telucazu Ed., 2015.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Varal de Trovas n. 245


Carlos Drummond de Andrade (O Dono)


O dono do pequeno restaurante é amável, sem derrame, e a fregueses mais antigos costuma oferecer, antes do menu, o jornal do dia “facilitado”, isto é, com traços vermelhos cercando as notícias importantes. Vez por outra, indaga se a comida está boa, oferece cigarrinho, queixa-se do resfriado crônico e pergunta pelo nosso, se o temos; se não temos, por aquele regime começado em janeiro, e de que desistimos. Também pelos filmes de espionagem, que mexem com ele na alma.

Espetar a despesa não tem problema, em dia de barra pesada. Chega a descontar o cheque a ser recebido no mês que vem (“Falta só uma semana, seu Adelino”).

Além dessas delícias raras, seu Adelino faculta ao cliente dar palpites ao cozinheiro e beneficiar-se com o filé mais fresquinho, o palmito de primeira, a batata feita na hora, especialmente para os eleitos. Enfim, autêntico papo-firme.

Uma noite dessas, o movimento era pequeno, seu Adelino veio sentar-se ao lado da antiga freguesa. Era hora do jantar dele, também. O garçom estendeu-lhe o menu e esperou. Seu Adelino, calado, olhava para a lista inexpressiva dos pratos do dia. A inspiração não vinha. O garçom já tinha ido e voltado duas vezes, e nada. A freguesa resolveu colaborar:

— Que tal um fígado acebolado?

— Acabou, madame — atalhou o garçom.

— Deixe ver… Assada com coradas, está bem?

— Não, não tenho vontade disso — e seu Adelino sacudiu a cabeça.

— Bem, estou vendo aqui umas costeletas de porco com feijão-branco, farofa e arroz…

— Não é mau, mas acontece que ainda ontem comi uma carnezita de porco, e há dois dias que me servem feijão ao almoço — ponderou.

A freguesa de boa vontade virou-se para o garçom:

— Aqui no menu não tem, mas quem sabe se há um bacalhau a qualquer coisa? — pois seu Adelino (refletiu ela) é português, e como todo lusíada que se preza, há de achar isso a pedida.

Da cozinha veio a informação:

— Tem bacalhau à Gomes de Sá. Quer?

— É, pode ser isso — concordou seu Adelino, sem entusiasmo.

Ao cabo de dez minutos, veio o garçom brandindo o Gomes de Sá. A freguesa olhou o prato, invejando-o, e, para estimular o apetite de seu Adelino:

— Está uma beleza!

— Não acho muito não — retorquiu, inapetente.

O prato foi servido, o azeite adicionado, e seu Adelino traçou o bacalhau, depois de lhe ser desejado bom apetite. Em silêncio.

Vendo que ele não se manifestava, sua leal conviva interpelou-o:

— Como é, está bom?

Com um risinho meio de banda, fez a crítica:

— Bom nada, madame. Isso não é bacalhau à Gomes de Sá nem aqui nem em Macau. É bacalhau com batatas. E vou lhe dizer: está mais para sem gosto do que com ele. A batata me sabe a insossa, e o bacalhau salgado em demasia, ai!

A cliente se lembrou, com saudade vera, daquele maravilhoso Gomes de Sá que se come em casa de d. Concessa. E foi detalhando:

— Lá em casa é que se prepara um legal, sabe? Muito tomate, pimentão, azeite de verdade, para fazer um molho pra lá de bom, e ainda acrescentam um ovo…

Seu Adelino emergiu da apatia, comoveu-se, os olhos brilhando, desta vez em sorriso aberto:

— Isso mesmo! Ovo cozido e ralado, azeitonas portuguesas, daquelas… Um santo, santíssimo prato!

Mas, encarando o concreto:

— Essa gente aqui não tem a ciência, não tem a ciência!

— Espera aí, seu Adelino, vamos ver no jornal se tem um bom filme de espionagem para o senhor se consolar.

Não tinha, infelizmente.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.

J. G. de Araújo Jorge (O Canto da Terra) 8


O CANTO DA TERRA!

Venho das profundezas da terra, do coração da terra,
onde se fundem todos os limites
e se confundem todas as idades...

Venho de onde a terra ainda está começando e onde há de terminar
e meu canto, retemperado ao fogo primitivo,
estremecerá a superfície do mundo como os abalos sísmicos
e romperá o solo, e rugirá surdamente, como a voz profunda
dos vulcões...

Ao meu canto de lavas, desaparecerão das encostas que se altearão
as terras onde há senhores e escravos,
os campos onde alguns lavram e outros esperam;
e todos os homens atônitos perceberão
que a terra não tem donos
e que nunca dominaram o coração da terra!

E as lavas descerão pelas encostas, e o céu se encherá
     de nuvens e de chamas vermelhas
e por momentos a terra estará coberta de cinzas
e o dia anoitecerá, e a noite apagará suas estrelas...

Meu canto não terá a luz serena e apostólica da estrela do  pastor
para que não seja crucificado entre ladrões,
meu canto será a voz da terra em revolta,
a voz poderosa da terra insubmissa
que levantará o dorso em corcovas de potro bravio
contra o dominador bastardo que a esporeia
e a explora!

Por isso meu canto será violento como a terra quando estremece
e sincronizará com a destruição dos tempos, provocada
pelos que terão que sucumbir...

Por isso meu canto é a voz da terra, da terra toda
  sem limites nem profundidade
e pregará que é também preciso ser fogo e ser lava
para que os donos desapareçam, para que os sobreviventes
compreendam
que nada lhes pertence e tudo lhes pertencerá,
e um mundo melhor possa ter início...

Depois do meu canto, será o silêncio,
um novo silêncio expectante de Gênesis

Depois do silêncio, será o trabalho,
e será a música, e será o vento, e será a semente que acorda,
e a terra verde, e a água clara, e o céu azul
e a nuvem que foge...
E será a terra sem donos, trabalhada e frutificando
para todas as bocas, para todas as mãos,
e será a noite serena, e a beleza ideal e eterna
das estrelas
E será a paz…
****************************************

O SÁBIO

Em meio da algazarra atordoante das partidas,
e a zoeira das alegrias
dos risos
dos foguetes,
dos trens transbordantes de quepes,
dos navios com canhões e mastros embandeirados,

ele conteve nos olhos uma lágrima grande
e brilhante...

Se perguntassem ao homem sozinho porque estava chorando
ele havia de dizer:
- estes que riem e cantam ainda estão partindo!
Eu... já estou voltando…
****************************************

ONTEM... HOJE...
(A Jacques Raimundo)

Antes dele partir a mãe chamou-o
apertou-o no peito mal contendo o pranto,
(bem o vi...)
- E então lhe disse: parte! é o teu destino!
é a pátria que precisa de ti...
Se ele quisesse pensar
se ele quisesse se lembrar
havia de dizer:
há muito tempo,
porque matei um passarinho
e destruí-lhe o ninho
minha mãe me chamou, falo-me comovida:
- nunca mais faças isso meu filho, que a vida
só Deus pode tirar...

Se ele quisesse pensar…
****************************************

ORAÇÃO DA VOLTA
(A Artigas Milans Martínez)
  
Aqui
destas terras vazias, destes chãos enxutos
nasciam sementes
que amanhã milagrosamente
seriam flores e frutos!

Aqui, se erguiam penachos louros e ressoavam ninhos,
aqueles da cor do sol pelos campos imensos,
e estes, pela borda dos caminhos
suspensos...

Aqui, havia uma casa pequena, - uma porta, uma janela -
ao centro de um cercado,
- uma criança a brincar no jardim, tagarela,
e um penacho de fumo a subir do telhado...

E por estas ruas quietas, hoje tristes, sossegadas,
e em solidão,
ruas sem alma, sem desejos,
se ouvia o riso feliz das bocas cheias
de pão,
dos lábios cheios de beijos!

Aqui havia uma escola onde um velho mestre exercia
seu magistério,
e adiante era o recreio... a algazarra, a alegria,
da garotada livre em gritos e folganças...

Hoje , - aqui é um cemitério
e onde estão as crianças?

Aqui, havia vida, hoje, não há mais nada...
Nem penachos ao vento e nem crianças contentes...
- há somente o silêncio, as visões delinquentes,
e a longa risca vermelha de uma estrada...
................................

O mundo está perdido... a terra está vencida...

Eu mereço, Senhor, vosso castigo!

Mas não sei se maldigo os homens, se maldigo a vida,
ou se vos maldigo!

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. O Canto da Terra. 1945.