sábado, 18 de dezembro de 2021

Daniel Maurício (Poética) 14

 

Imagem da gata obtida no site Pinterest

Aparecido Raimundo de Souza (Copo transbordado)

ALTAS HORAS DA NOITE, o Augusto Cabeleira, o derradeiro freguês ao deixar o bar da Lili Tomba Fêmea, como sempre, mais bêbado que um gambá descontrolado, sem saber exatamente para que direção seguir, ao invés de tocar o bonde para a sua residência, por sinal, perto do estabelecimento, se enveredou por uma viela diferente e desembocou numa mais distinta que a sua. Nela só morava rico. Se não tivesse entornado todas, saberia que aquela não era a rua da sua casa, e mais, entenderia que nunca antes havia estado ali, embora o bairro onde morava fosse pequeno e tirando um ou outro beco, as outras ruelas e desvão, ele nunca havia sequer cruzado as suas esquinas.

Nesse tropeçar vacilante, segurando ora num carro estacionado, ora se apoiando em postes, entrou com tudo no primeiro portão de uma garagem escancarado que encontrou pela frente. Bateu palmas, enquanto se segurava na mureta onde havia um interfone. A moradora, uma jovem aí pelos trinta anos, acondicionada num pijama de flanela vermelho, veio atender. Assim que divisou o vulto, trôpego, ocasionado pela ingestão das doses ingeridas, Augusto Cabeleira fez a pergunta que bailava na ponta da língua:

— Boa noite, dona! Seu... seu ma... ma... rido está em casa?

A mulher, sem entender o que aquele esquisito fazia na sua frente, de pronto não disse nem sim, nem não, mas indagou, curiosa:

— Quem é o senhor? O que quer com meu marido?

— Ele... ele está?

— Sim, está. Por? Acaso precisa de alguma coisa? Quer ajuda? Vou chamá-lo...

— Des... des... des... culpe... Não há neces... Necessidade. Tchau!

Augusto Cabeleira deu meia volta com dificuldade cada vez mais acentuada e sem deixar de trocar as pernas, se afastou.

Bateu na segunda porta. A do doutor Rubião, delegado de polícia. Augusto Cabeleira não sabia, nem de longe, que o delegado de polícia da cidade morava ali. Veio atender uma senhora idosa, olhar cabreiro, expressão carrancuda e franzina. Todavia, armada de um possante trinta e oito (posto que estava acostumada a ser acordada no meio da noite, não só por pessoas da comunidade, como pelos próprios policiais que estavam a serviço de seu esposo) gritou, segurando a maçaneta que acessava todo o resto da habitação:

— Boa noite. Quem é o senhor? O que quer com meu marido? Algum problema na delegacia?

— Senhora, me diga... Ele está...?

A senhorinha não viu nada demais em responder:

— Sim, ele está no banho. Rubião acabou de chegar da chefatura. Quer que eu vá chamá-lo?

— Per... Per... dão... Foi... foi mal...

Augusto Cabeleira tratou de se escafeder dali o mais depressa possível. Se o delegado doutor Rubião viesse ter com ele, certamente seu resto de noite seria um inferno. Dormiria no xilindró. Sabia, pelos amigos de copo, que o sujeito se constituía numa carne de pescoço difícil de ser ingerida. Segundo relatos de seus companheiros, o homem não gostava de aturar beberrões. Ainda mais pinguços chatos. E ele, quando bebia, ia muito além da condição de maçante e pegajoso. Relembrara de uma história que, certa vez, contara o Botão Sem Casa, sobre Pingado Batatinha, um dos muitos amigos das noitadas que se prolongavam até altas horas.

Pingado Batatinha fora conduzido à presença da criatura, depois de ter quebrado uma cadeira nos cambitos de uma sirigaita, com a qual transara e se negara a pagar pelos serviços da prostituta. Além de uma boa sova nos costados, os fardados ainda lhe deram um prolongado banho frio de mangueira e, para acalmar os vapores do álcool, o doutor Rubião o colocou para dormir pelado no meio de outros detentos. Foi o diabo! Por conta desse evento, até hoje corre uma notícia na comunidade, alimentada, logicamente pelos boquirrotos e coscuvilheiros de plantão.

Se verdadeira, ou não, o fato traz à baila uma resenha ignóbil dando conta de que o infeliz do Pingado Batatinha saiu do prédio da brigada policial, na manhã seguinte, capengando, em face de ter sido agarrado por um sujeito alto, careca, parrudo e sem nenhum dente que pudesse lhe agradar o sorriso.

Encostou na terceira casa. Esta ao menos, tinha campainha. Tocou. Veio atender uma moça nova, e apesar da ebriedade saliente e destacada, percebeu nos braços dela, um gatinho branco:

— Pois não, senhor?

— Des... Des... culpe... Pe... pelas horas... Seu mari... seu mamariii... iiiido se encontra?

A beldade respondeu imediatamente de forma rígida e severa:

— O que quer com meu marido?

— E... Ele... es... Está?

— Quer que vá chamá-lo? Isto lá são horas de bater na casa de um advogado? Por que não foi no escritório dele? O senhor está com algum problema na justiça? Na delegacia, talvez?!

— Es... Esque... esquece... dona... tchau...

Trocando as pernas e ainda necessitando da ajuda dos carros estacionados ao longo da rua e sem perder de vista as árvores, vomitou numa delas, até as tripas. Cinco casas depois da nojeira que lhe saíra boca afora, em outra quadra, quase a ponto de ser mordido por um cachorro de modos violentos e pouco afeito a amizades, tocou a campainha de outra edificação.

Pintou, no pedaço, apesar do adiantado das horas, um encanto de mulher. Rosto de rainha, os cabelos soltos ao acaso da noite, metida num shortinho minúsculo mostrando uma barriguinha tipo tanquinho, um umbigo com um piercing grudado em formato de coração, as pernas compridas, sem falar no resto. A encantada abriu a porta de supetão e saiu afoita, como se esperasse a chegada de um príncipe encantado montado num cavalo branco como nos filmes dos contos de fadas.

Augusto Cabeleira quase teve um desmaio repentino, diante daquele augusto pedaço de mau caminho, que fazia emergir, de uma só vez, todos os pecados voluptuosos e devassos existentes dentro de si:

— Boa noite, senho... Senho... senhorita... por acaso... por aca... acaso... seu ma... marido se encon... se encontra?

— Bem, meu senhor... Ele ainda não chegou...

Augusto Cabeleira teve um breve reconforto na alma tomada pelo consumo das cervejas e pingas que emborcara goela abaixo:

— A senhori... A senhorita tem cer... a senhorita... tem... cer... cer... teza?

— Claro. Acha que não conheço meu marido e não sei quando está ou não em casa?

— En... Então, por... por genti... gentileza... chega um porco... Mais per... perto...

— Como é que é, cavalheiro? Porco? Que porco?!

— Eu... Eu disse... eu disse porco? Não, me desculpe. Pedi pa... pedi, para chegar um pouco... um pouco mais... mais perto... de onde a senhori... de onde a senhoooooorita tirou o porco?

E completou, quase indo de fuça ao chão:

— Por que eu faria isso? Por... Porco? Pelo amor... pelo amor de Deus... chega mais perto.

— Eu é que pergunto: Por qual motivo eu faria tamanha idiotice de chegar mais perto do senhor? Nem lhe conheço!

— Desculpe... Por favor, me perdoe... roro... rogo, chega mais perto e venha ver...

— Ver o que, senhor?... Vou chamar a polícia.

— Não, não precisa. Só venha até aqui... se aproxima um bocadinho mais...

— Insisto, meu senhor, para eu ver exatamente o quê?

— Venha... Venha conferir se eu não... venha ver e me dizer, com todas as letras, se não sou eu... Se não sou eu... dro... droga... venha fazer uma acareação e me dizer, se eu não sou o seu marido...

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Auta de Souza (Poemas Escolhidos) – 7

CARIDADE DA LUZ


Santa - a moeda amiga ao tornar-se carinho
em todo lar sem pão que a penúria flagela,
enaltecida sempre - a roupa mais singela
que protege a nudez ao vento e ao desalinho!...

Glorificado seja - o pouso que tutela
o enfermo relegado às pedras do caminho,
preciosa - a afeição para quem vai sozinho,
trancando-se na dor em que se desmantela!...

Nobreza em toda ação que represente amparo
do auxílio de um vintém ao apoio mais raro,
que a simpatia expresse e a bondade presida!...

Brilhe em tudo , porém , com mais força e grandeza
a palavra do bem que apure a natureza,
iluminando o amor e libertando a vida!…
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MENSAGEM DE IRMÃ

Enquanto a carne em treva brande a vara
da amargurosa dor que te alanceia,
acende, em paz, a lúcida candeia.
da sublime esperança que te ampara.

A fé transforma a noite em manhã clara.
Não te canse o deserto... Ara e semeia
e arrancarás da imensidão de areie
a flor da primavera e o pão da seara...

Que o grilhão do passado te não prenda.
Faze do amor a rútila oferenda
do próprio ser ao mundo estranho e escuro!

E ave de luz tornando ao pátrio ninho,
encontrarás, feliz, o áureo caminho.
para a esfera de glórias do Amor Puro!
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PERDOA

Repara a fonte diligente e boa
escravizada ao solo em que destila.
acolhendo, a cantar, doce e tranquila,
a saliva do charco que a magoa.

Envolvente e translúcida coroa
que afaga e nutre o coração de argila
passa ajudando ao chão em que se asila,
tanto mais pura, quanto mais perdoa...

Como a fonte que olvida toda a ofensa,
abraça na bondade a luz imensa
que te guarda, no mundo, a alma sincera.

E, estendendo o perdão por onde fores,
encontrarás na cruz das próprias dores
a alegria divina que te espera...
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PRESENÇA DO AMOR

Deus abençoe o pão que dás à porta
aos romeiros cansados da agonia,
o teto aos que se vão em noite fria
na dor em que a nudez se desconforta.

Deus te abençoe o raio de alegria
com que a força da fé se te transporta,
no rumo da esperança semimorta
para trazê-la à glória de outro dia.

Deus te abençoe por tudo quanto fales
para extinguir tristezas, dores, males,
que se amontoam na penúria imensa...

Deus te abençoe, porém, com mais ternura
a presença da paz e da aventura
de todo amor que dês sem recompensa…
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QUERIDA NINA

Querida irmã, que amamos ternamente,
mensageira do bem, linda e singela,
que Deus te guarde a luz brilhante e bela
e a pureza de lírio alvinitente.

És para nós o amor que se desvelo,
a generosa fé, que segue à frente,
consolo ao coração aflito e crente
quando negrejam sombras de procela.

Jardineira da paz e da ternura,
como é sublime a rica semeadura
que te engrandece o místico jardim!...

Deus te guarde e esperança nobre e calma
e espalhe no céu claro de tua alma
as estrelas do amor que não tem fim!...

Fonte:
Francisco Cândido Xavier. Auta de Souza. Ebook obtido na Biblioteca Espírita.

Júlia Lopes de Almeida (No muro)


A Julião Machado


Ao fundo do quintalzinho, o alto muro branco estava na sombra. De um único canteiro, à esquerda, evolava-se o aroma de manacás em flor. Do outro lado, a haste débil de uma árvore nova, uma arália talvez, balançava, em meneios vagarosíssimos, a sua folhagem mimosa e leve.

Tudo em silêncio na casa. As crianças dormiam já, abatidas pelo calor; a criada mal dera as boas-noites, e lá saíra pela porta fora; só Maria Teresa, repousada da confusão do seu dia trabalhoso, cerrava os olhos preguiçosos, para cá e para lá, na cadeira de balanço, perto da janela da sua sala de jantar.

Nem o gás quebrava o silêncio que a envolvia. A claridade é uma voz; só a treva é muda. Aprazia-lhe aquele sossego a que entregava descuidada o corpo e o espírito. E assim esteve muito, muito tempo, com o seu rosto de histérica, longo e pálido, volvido para o escuro do quintalzinho estreito.

Mas a lua, que há pouco lhe clareava a frente da casa, as cortinas rendadas e os tapetes do escritório e da sala, lembrou-se de lhe galgar o telhado e de ir insinuando pouco a pouco a sua luz melíflua pelo alto muro branco do quintal.

Maria Teresa, descerrando os grandes olhos pardos, viu a claridade vir lambendo a parede, numa carícia mole e frouxa. Ela bem sabia que aquele grande laivo escuro, desenhando no alto uma ligeira curva e descendo depois em uma linha reta perpendicular, era um pouco de limo e mais nada. O muro, velho, requeria conserto; tinha, entretanto, intervalos de uma alvura virginal, que brilhavam à claridade, como linho estendido.

Maria Teresa sorriu; que visão aquela! Dir-se-ia que a longa fita escura se movia agora em uma oscilação lenta, arrastando o seu longo corpo de réptil.

Na verdade, uma cobra andaria assim?... E mais adiante, falhas de caliça, umas esguias, outras redondas, quadradas ou elípticas, entravam a mover-se, a adquirir formas estranhas, mal distintas, incertas, que no tremor da luz mal firme se dissolviam para tomar novamente corpo e forma... Ao princípio aquilo tudo era mal esboçado, confuso e inculto; mas, de repente, como a luz caísse melhor, Maria Teresa viu, como se olhasse para um espelho singular, refletida no muro a sua vilazinha mineira, de onde o marido a trouxera para a vida turbulenta da cidade.

Tal e qual! Lá estava no alto a capela da Conceição, com o campanário, a casa do padre e aquela grande nogueira, cujas nozes magníficas ela ia colher com Josefina, a irmã, e mais o namorado...

Embaixo, um pedaço de tijolo nu, não é que reproduzia, em miniatura fiel, o largo da vila, com as suas casas abarracadas, espaçadas e desiguais? E aquelas figuras, que no começo se assemelhavam a animais informes, não se moviam agora quais criaturas humanas, umas embiocadas em mantilhas a caminho do outeiro e da igreja, outras à beira do rio, lavando aqueles lençóis cor da neve que tanto brilhavam à luz?

Que tolice! Maria Teresa, melhor que ninguém, sabia que aquele tufo de vegetação que irrompia do muro não era a grande floresta da sua saudosa vila... era uma touceirinha de erva de bode que ela por desleixo não mandara ainda arrancar... Sabia; mas que lhe importava?

Aquilo representava agora ali o papel sagrado de floresta virgem... Era um dos raros pedaços da Terra não maculados ainda pelos pés do homem; o altar puro e sublime do Deus grande, poderoso e único!

Alma de crente, alma de ingênua, espírito propenso ao sobrenatural, Maria Teresa acreditava quase que os seus olhos viam uma verdade; e assim, saudosa da sua terra natal, delineava-lhe os contornos, em um grande fervor de imaginação.

Uma oscilação do galho da arália cortou com uma pincelada negra o encanto do quadro... a árvore voltou à posição natural, mas as figuras do muro pareciam já outras, embaralhadas, dançando no tremor da luz.

Era uma procissão, talvez... frades com capuzes seguiam a passo, nos seus hábitos escuros... Ao longe, na bruma, após um lago de neve, um alto castelo esguio se confundia com as nuvens...

Maria Teresa lembrou-se das velhas histórias medievais que lhe contava uma escrava da família, mulata nortista, de inteligência viva e falas mansas... a Teodora. Seria a alma dela, que a visitava nesse instante de sossego e de solidão, e, doce, quieta, bondosa, lhe reavivava, em painéis rápidos, as passagens da sua infância?

No Cavaleiro da Pluma lembrava-se de uma cena idêntica: os frades iam cantando em coro ao castelo da princesa morta. Mas, assim como nem os médicos chamados pelo rei a puderam salvar, também as orações dos frades não a ressuscitaram... E foi então que o Cavaleiro da Pluma, num corcel branco, galopou através de montes e vales e trouxe à exânime princesa a vida com um elixir roubado ao deus Cupido.

A velha Teodora estrelava as histórias com as suas frases de ouro bruto. Seria mesmo a alma esquecida da mulata que vinha num raio da lua desenhar tais coisas em um muro branco?

A Maria Teresa parecia então ouvir, em um sussurro delicado e longínquo, a voz da escrava, dizendo:

– Lembra-se, Iaiá?!

Pobre Teodora! De nada se esquecera Maria Teresa, a não ser dela, a sua escrava velha e imaginosa, que lhe florira a infância com os seus contos sem par, histórias em que os heróis eram deuses de grandiosos feitos...

Lembrava-se da sua vila, das casas dos amigos, mesmo dos mais indiferentes, das árvores, tais como a nogueira do padre, e do rio, das noites de dança, das festas da igreja, dos pais, das irmãs, das suas rixas, dos seus abraços, das fazendas dos arredores, de tudo... menos dela, da mulata Teodora, que, já velha, passava noites em claro a embalar--lhe a rede, que lhe refrescava o corpo com o banho, que lhe penteava os cabelos, que lhe engomava os vestidos, que a perfumava, que lhe dava os primeiros doces de qualquer tachada, que lhe contava as mais compridas histórias de fadas que nunca língua humana soube dizer!

O Natal... o Ano Bom... os Reis... tudo isso despertava saudades no espírito de Maria Teresa; de todos e de tudo se lembrava com lágrimas, e em nenhuma vira nunca refletida a figura simples da velha Teodora, risonha, doce e plácida...

A alma da escrava vinha pela primeira vez fazer-se lembrada à sua Iaiá, sem um queixume. Ela, que morrera no exílio, longe da sua terra quente de palmeiras e de sol; ela, que por lá deixara os filhos, não tivera assomos nem impaciências para a criança alheia que lhe puseram nos braços ainda tristes e saudosos do seu fardo amado... e era aquela dedicação pura e heroica, que só agora ela compreendia, de relance, como se lhe fosse lembrada pela mão invisível de Deus.

E no muro branco, nos laivos do limo, nas manchas da umidade, nos esboroamentos da caliça, a lua pálida, sem nuvens, esfumava os quadros fugitivos da sua vida passada. As cenas régias das histórias da mulata eram substituídas por outras: as romarias, os pomares, a estrada e o cemitério... Lá estava o túmulo da mãe de Maria Teresa, de altos mármores e coroas de flores... lá estava o da irmã... os dos avós... os de outros parentes mais afastados...

E o da velha Teodora?

Esse, a imaginação de Maria Teresa não pôde descobri-lo... Estaria além entre as covas rasas, sem uma cruz... sem um número?

Estivesse ou não, a alma da escrava não lhe ensinou o caminho e depressa mudou para um cenário risonho o triste cenário da morte.

Maria Teresa ia desfalecer, quando se levantou de súbito e fechou a janela com brusquidão. Para que lembrar? A própria lágrima amarga é doce vista através da saudade. Que no velho muro branco a lua estendesse e recolhesse as sombras; ela fugia, salvando a sua alma abatida, à voz do marido que a chamava da porta.

Bem dizia a Teodora, no Cavaleiro da Pluma: há uma única força capaz de ressuscitar os mortos e de alegrar os vivos: o Amor.

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Versejando 93

Montagem sobre imagem da senhora no tear, obtida no Youtube
 

Rubem Braga (O padeiro)

Levanto cedo, faço minhas abluções, ponho a chaleira no fogo para fazer café e abro a porta do apartamento - mas não encontro o pão costumeiro. No mesmo instante me lembro de ter lido alguma coisa nos jornais da véspera sobre a “greve do pão dormido”. De resto não é bem uma greve, é um “lockout”, greve dos patrões que suspenderam o trabalho noturno. Acham que obrigando o povo a tomar seu café da manhã com pão dormido conseguirão não sei bem o que do governo.

Está bem. Tomo o meu café com pão dormido, que não é tão ruim assim. E enquanto tomo café vou me lembrando de um homem modesto que conheci antigamente. Quando vinha deixar o pão na porta do apartamento ele apertava a campainha, mas para não incomodar os moradores, avisava gritando: - Não é ninguém, é o padeiro! Interroguei-o  uma vez: – Como tivera a ideia de gritar aquilo? "Então você não é ninguém?"

Ele abriu um sorriso largo. Explicou que aprendera aquilo de ouvido. Muitas vezes lhe acontecera bater a campainha de uma casa e  ser atendido por uma empregada ou outra pessoa qualquer, e ouvir uma voz que vinha lá de dentro perguntando quem era, e ouvir a pessoa que o atendera dizer para dentro: “não é ninguém, não senhora, é o padeiro”.  Assim ficara sabendo que não era ninguém.

Ele me contou isso sem mágoa nenhuma, e se despediu ainda sorrindo. Eu não quis detê-lo para explicar que estava falando com um colega, ainda que menos importante. Naquele tempo eu também, como os padeiros, fazia o trabalho noturno. Era pela madrugada que deixava a redação de jornal, quase sempre depois de uma passagem pela oficina - e muitas vezes saía já levando na mão um dos primeiros exemplares rodados, o jornal ainda quentinho da máquina. como pão saído do forno.

Ah, eu era rapaz, eu era rapaz naquele tempo! E às vezes me julgava importante porque no jornal que levava para casa, além de reportagens ou notas que eu escrevera sem assinar, ia uma crônica ou artigo com o meu nome. O jornal e o pão estariam bem cedinho na porta de cada lar, e dentro do meu coração eu recebi a lição de humildade daquele homem entre todos útil e entre todos alegre - não é ninguém, é o padeiro!"

E assobiava pelas escadas.

Fonte:
Rubem Braga. Ai de ti, Copacabana. Publicado em 1960.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) XXXV

JÁ NEM SEI...

MOTE:
Viver assim... Te adorando...
Já nem sei o que fazer...
- Se é melhor viver te amando,
ou te deixar e... sofrer!

Benedito Camargo Madeira
(Pouso Alegre – MG)

GLOSA:
Viver assim... Te adorando...

é sempre tudo que eu quis,
é gostoso estar gostando,
pois te amando, sou feliz!

Mas quando aperta a saudade,
já nem sei o que fazer...
se sou feliz de verdade,
ou se te amar, faz sofrer!

Fico, então, me questionando,
responde, meu coração:
- Se é melhor viver te amando,
ou viver sem emoção?

Não sei se sigo a sonhar,
não sei que devo fazer,
se continuar a te amar,
ou te deixar e... sofrer!
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PRAZOS...

MOTE:
Passa a noite... O dia morre,
mas eu prossigo risonho,
na ansiedade de quem corre
para agarrar outro sonho!
Cyrléa Neves
(Nova Friburgo – RJ, 2016+)

GLOSA:
Passa a noite... O dia morre,

mas um outro se anuncia
e a esperança me socorre
e me envolve de alegria!

Termina o prazo, bem sei,
mas eu prossigo risonho,
pois assim, não mais terei
o meu coração tristonho!

Essa alegria percorre
todo o meu ego e minha alma,
na ansiedade de quem corre
com tranquilidade e calma!

E nessa minha ansiedade,
a mim mesmo, então, proponho,
fantasiar a realidade
para agarrar outro sonho!
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TE ENTREGUEI

MOTE:
Foi quando eu te conheci
que um grande amor vislumbrei,
desde então vivo pra ti,
meu coração te entreguei!
Dalvina Fagundes Ebling
(Cruz Alta/RS, 2020+)

GLOSA:
Foi quando te conheci

que minha vida mudou
no momento em que te vi,
minha alma se apaixonou!

Foi mirando os olhos teus,
que um grande amor vislumbrei,
e todos os sonhos meus
nesse amor eu mergulhei!

Teus pensamentos eu li
e encontrei muita ternura,
desde então vivo pra ti,
és a sonhada ventura!

Naquele instante tão lindo,
ao te ver, logo te amei,
e com meu amor infindo,
meu coração te entreguei!
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SEMPRE QUE CHEGAS...

MOTE:
Sempre que chegas cansado
e me abraças ternamente,
o meu ser apaixonado,
volta a ser adolescente!

Delcy Canalles
(Porto Alegre – RS)

GLOSA:
Sempre que chegas cansado

do trabalho para o lar,
meu beijo, por ti, esperado,
vai correndo te encontrar!

Quando chegas e sorris,
e me abraças ternamente,
tu me fazes mais feliz
e eu fico bem mais contente!

Sentir que estás ao meu lado
faz vibrar todo o meu ser,
o meu ser apaixonado,
que recomeça a viver!

Vibrando, então, de emoção,
todo o amor, em mim latente,
explode em meu coração
volta a ser adolescente!
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RIMAS DE AMOR...

MOTE:
A saudade que angustia
o meu peito sonhador,
é rima que eu não queria...
em minhas rimas de amor!

João Freire Filho
(Rio de Janeiro – RJ, 1941 – 2012)

GLOSA:
A saudade que angustia,

que faz meu pranto rolar,
a que me rouba a alegria,
não quer partir, me deixar!

Essa saudade magoa
o meu peito sonhador,
que fica chorando à toa
magoada com tanta dor!

Essa imensa nostalgia,
maior que o próprio Universo,
é rima que eu não queria...
não queria no meu verso!

Somente rimas perfeitas,
sem tristeza, pranto ou dor,
queria que fossem feitas
em minhas rimas de amor!…

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas. Glosas Virtuais de Trovas XVI. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Março 2004.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 22: Lucy Sother da Rocha

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) – 39 –

A escrita?

Gosto de apascentar a escrita. Penso e penso, escrevo, reescrevo, leio e leio, releio, releio, e no caminho ponho todos no seu lugar, os mais importantes, os menos - indagações, palavras, vírgulas, pontos e vírgulas, dois pontos, exclamações, reticências . . . Estas conduzem (ideias). E nos vamos, tantas vezes, pelos caminhos do insondável, onde tudo se busca e nada se encontra. A jornada dos escreveres tem semelhanças com as veredas dos viveres - garimpamos com ardor e mesmo na dor nos realizamos.

Escrever é bem como a vida, ser simples, claro, direto, objetivo. Dizia o mestre Drumond:  "Escrever é cortar palavras". E escreveu o mineiro Graciliano : "Escrever é rasgar, rasgar, e rasgar".

O mister das palavras não tem mistérios, cada um com suas interpretações, e o ideal de um texto está calcado antes de mais nada na leitura - que é busca, investimento, saber.
Ela dá desenvoltura e liberdade para as ideias.

O restante é com o escritor, que põe o sentimento, a capacidade e o esmero no texto. E lembro o francês Buffon: "O estilo é o homem".

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Jessé Nascimento (Solidariedade Humana)

O cidadão tinha os braços tomados por embrulhos e caminhava fazendo verdadeiros malabarismos temendo, certamente, que algum dos pacotes fosse ao chão.

Quando passava bem em frente a um ponto de ônibus, o que mais temia aconteceu: um ligeiro desequilíbrio e lá se foi um dos embrulhos projetar-se - para cúmulo do azar - justamente numa poça de lama, resultado de chuvas caídas no dia anterior.

O cidadão olhou o embrulho entristecido. E agora, o que fazer? Como apanhá-lo? Impossível? Mas deixá-lo ali, isso não. Olhou para os lados como que a pedir ajuda e também para ver se não se aproximava algum carro. Não, não vinha. Nem carro e nem ajuda.

Dobrou os joelhos e começou a contorcer-se numa dança involuntária e desgraciosa. O que não podia deixar era que os demais embrulhos caíssem também. Tentou soltar alguns dedos, firmando os demais com mais raiva e gana. Virou daqui, virou dali, nada!

Parou por alguns instantes, olhou os braços totalmente tomados, depois olhou o fugitivo no chão, já meio enlameado. Novos movimentos se sucederam, mas todos se revelaram inúteis.

Houve um momento, no entanto, em que deve ter tomado uma decisão definitiva. É agora ou nunca! Ou o pego ou o deixo!  E partiu para mais uma desesperada tentativa. Com um dos braços apertou parte dos embrulhos contra o peito com mais firmeza. Com o outro, parcialmente tomado, tentou chegar ao pacote caído. Desvencilhou dois dedos - sabe Deus como! - levou-os em direção ao pacote e... conseguiu! Bem a tempo, pois um ônibus já se aproximava, buzinando nervoso e impaciente.

Seus lábios murmuraram alguma coisa inaudível. Talvez um grito de alegria sufocado ou um palavrão a custo contido.

Tornou os olhos, paternalmente, ao molhado embrulho, já rasgando-se e reiniciou a caminhada, fazendo malabarismos.

Seu drama foi assistido, desde o início, por duas dezenas de indiferentes. Inclusive eu.

Luiz Damo (Trovas do Sul) XXI

A amizade não tem preço
nem é tão perene assim,
assim como tem começo
também pode ter um fim.
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Alguém diz: eu sonho e espero
ser um grande vencedor,
bem melhor um não sincero,
do que um sim enganador.
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Aquela aragem fresquinha
que a noite sempre irradia,
eu sinto qual fosse minha
a despedida do dia.
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Borboletas sobrevoam
rente as matas perfumadas,
tal aroma elas povoam
suas frondosas ramadas.
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Deus não dá, mas oferece
sua luz pra iluminar
a vida, quando escurece
e a força pra caminhar.
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É no outono que acontece
a colheita do produto,
porque nele amadurece
o sonho em forma de fruto.
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Escrevo, falo e não minto,
debruçado sobre um tema.
Em versos, tudo o que sinto
posso expressar num poema.
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Levo a mensagem distante,
pra perto trago a amizade,
tal a estrela cintilante
brilhando na eternidade.
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Luz é vida, paz e amor,
porém só, também não basta,
do Sol vem luz e calor
que das trevas nos afasta.
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Mesmo que nunca mereça
alcançar nobre conquista,
devo erguer minha cabeça
e seguir sempre otimista.
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Muita paz eu vim trazer,
assim no mundo nasci,
se mais não pude fazer
foi porque não consegui.
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"Nada podemos fazer";
afirmam os fracassados.
Tudo, sem nada dizer,
alcançam os esforçados.
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Nas estradas, quem caminha,
se dispõe a tropeçar,
embora a roseira espinha,
tem a flor pra compensar.
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No alvorecer da existência
os grandes sonhos florescem,
logo após a florescência
alguns definham, fenecem.
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O inverno quando está perto
a natureza descansa,
aguarda o momento certo
de renovar a esperança.
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O mundo mostra dois lados:
um devemos escolher,
não sejamos enganados
durante o nosso viver.
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O sol, sobre a terra fria,
lança seu grande fulgor,
espalha luz e energia
misturadas com calor.
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Para que sua premissa
não lhe seja refutada,
siga a linha da justiça
sendo à luz sempre pautada.
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Primavera faz da flor
a grande ornamentação,
enche de perfume e cor
toda e qualquer plantação.
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Que a dor não se dissemine
contaminando o viver,
queira Deus, não contamine
a essência do nosso ser.
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Se temermos o perigo,
dele nos afastaremos,
e andando com um amigo
o temor superaremos.
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Somos sumamente gratos
pelos dons que recebemos,
sejamos sempre sensatos
com a vida que hoje temos.
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Tantos passos foram meus,
dados com estes meus pés,
pés que me levam a Deus
sem temer qualquer revés.
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Tenho o dever de cumprir
o que me cabe, até o fim,
se do meu papel fugir
ninguém o fará por mim.
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Verão de tantas culturas
numa mesma melodia,
tem altas temperaturas
na maior parte do dia.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Eduardo Affonso (Conflito de gerações)

– Maria Eduarda, eu e seu pai precisamos ter uma conversa com você.

– Já sei. Vão começar tudo de novo.

– Não, Maria Eduarda, não vamos começar tudo de novo. Vamos continuar a conversa que vimos tentando ter com você faz tempo, mas você é rebelde, não quer conversar nem ouvir seus pais.

– …

– Quando é que você vai parar com essa teimosia? Até onde vai seguir com essa vontade de ser “diferente”?

 – Mãe, eu sou diferente!

– Não, Maria Eduarda, não é. Você é uma menina de 17 anos, igual a todas as meninas de 17 anos, com os mesmos anseios de toda menina de 17 anos. Não faz sentido você continuar se recusando a fazer uma tatuagem! Todas as suas amigas estão tatuadas da cabeça aos pés, e você aí… com a pele intacta. Até onde você vai querer ir com isso, Maria Eduarda?

– Mãe, eu não gosto. Eu acho feio. Só isso.

– Maria Eduarda, que mal faz uma mandala? Um ying e yang? Uma caveira?

– Mãe…

– Uma borboleta na nuca não mata ninguém, Maria Eduarda! Um dragão, uma fênix, qualquer coisa, mas… acho horrível ver você assim, com a pele toda… toda…

– Mãe, não começa a chorar, por favor!

– Choro, sim, Maria Eduarda. Choro de vergonha. Onde foi que eu errei na sua criação? Todas as filhas de todas as minhas amigas estão completamente rabiscadas e você aí, com a pele… virgem.

– Mas eu não sou mais virgem, tá, mãe?

– Nem sei como alguém conseguiu se interessar por você, com a pele imaculada desse jeito. No mínimo foi um daqueles rapazes esquisitos que querem ser dentistas ou – deusmilivre – engenheiros civis. Desse jeito que você anda, de cabelo castanho, com roupa sem um rasgão ou um pircinzinho que seja, você nunca vai arrumar um grafiteiro, um uebidizáiner, um crosfiteiro. Ou um confeiteiro.

– Mãe, fica tranquila…

– Como eu posso ficar tranquila sabendo que você não vai ao tatuador uma vez por semana, nem que seja para fumar narguilé? Que não tem uma serpente subindo pelo pescoço, uma flor de lótus na virilha, uma frase em latim no omoplata, nada!

– Mãe…

– Faz pelo menos uma tribal no tornozelo, filha!

– Mãe, eu…

– Um infinito no pulso, uma âncora no antebraço, qualquer coisa…

– Mãe, eu acho que…

– Você não sabe a vergonha que eu passo na frente das minhas amigas na yoga. Todas têm filhas tatuadas. A Gislaine tem uma filha que fechou o braço. Fechou o braço, sabe o que é isso? A filha da Marta tatuou toda a fauna do cerrado, em protesto pelos incêndios no Pantanal. Ela não é boa em Geografia, eu sei, mas o tatuador fez uma jaritataca linda no ombro dela, e um teiú que sobe pelas costelas e vai até o seio. Quando ela colocar implante, o teiú vai ficar com uma cara enorme, linda. Você vai colocar implante, não vai?

– Não, mãe, não vou.

– Maria Eduarda! Sem tatuagem aos 17 e sem implante antes dos 20! O que você quer da vida, minha filha? Sabe como as pessoas vão te olhar? Como uma aberração!

– Mãe, eu…

– Tatua nem que seja um “Fellyppe, amor eterno”, por favor!

– Eu não conheço nenhum Fellyppe, mãe.

– Não interessa. Tatua só para arrepender e tatuar alguma coisa por cima. Aposto que todas as suas amigas já se arrependeram de uma tatuagem dessas e tatuaram outra maior por cima.

– Sim, todas fizeram isso. Aos prantos.

– Viu? Custa fazer? Escolhe um nome qualquer, porque vai fazer outra por cima mesmo. Bernnardho, Artthur, Karollayne, qualquer coisa. Mas tatua, exibe, chora dizendo que se arrependeu e faz uma de rosas vermelhas, ou de uma onça, em cima. Pronto. É só isso que estou te pedindo. Para eu não ser a mãe da menina esquisita que não tem tatuagem. Faz isso por mim, Maria Eduarda. Pelo seu pai, que vem fazendo uma poupança para essas tatuagens desde que você tinha 15 anos.

– Mãe…

– Um código de barras na coxa, filha… O que é que custa? Um ideograma, uma logomarca, um pacote de miojo, qualquer coisa…  Você quer chegar à velhice como sua avó, sem parecer um muro de periferia? Sem lembrar uma obra do Dali, com relógios derretendo porque o peito caiu?

– Tá, mãe, semana que vem eu faço.

– Promete, Maria Eduarda?

– Vou pigmentar aquela manchinha branca que eu tenho no peito do pé, aí fica da cor da pele.

– Faz uma caranguejeira, filha! Fica lindo uma caranguejeira bem realista subindo pelo peito do pé!

– Não, mãe. No máximo, uma joaninha.

– Bem colorida?

– Ok, mãe, uma joaninha bem colorida. Já posso voltar a estudar?

– Pode. Te amo, Maria Eduarda. Mesmo você sendo estranha desse jeito, mamãe te ama. Mas por que você não aproveita que vai fazer a joaninha e coloca um pírcim no umbigo?

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Adega de Versos 62: Fernando Pessoa

 

Pablo Neruda (Poemas Escolhidos) – 1 -

Pablo Neruda é o pseudônimo de Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto


I
 
MATILDE, nome de planta ou pedra ou vinho,
do que nasce da terra e dura,
palavra em cujo crescimento amanhece,
em cujo estio rebenta a luz dos limões.

Nesse nome correm navios de madeira
rodeados por enxames de fogo azul-marinho,
e essas letras são a água de um rio
que em meu coração calcinado desemboca.

Oh! Nome descoberto sob uma trepadeira
como a porta de um túnel desconhecido
que comunica com a fragrância do mundo!

Oh! Invade-me com tua boca abrasadora,
indaga-me, se queres, com teus olhos noturnos,
mas em teu nome deixa-me navegar e dormir.

II

Amor, quantos caminhos até chegar a um beijo,
que solidão errante até tua companhia!
Seguem os trens sozinhos rodando com a chuva.
Em Taltal* não amanhece ainda a primavera.

Mas tu e eu, amor meu, estamos juntos,
juntos desde a roupa às raízes,
juntos de outono, de água, de quadris,
até ser só tu, só eu, juntos.

Pensar que custou tantas pedras que leva o rio,
a desembocadura da água de Boroa*,
pensar que separados por trens e nações

tu e eu tínhamos que simplesmente amar-nos,
com todos confundidos, com homens e mulheres,
com a terra que implanta e educa os cravos.

III

Áspero amor, violeta coroada de espinhos,
cipoal entre tantas paixões eriçado,
lança das dores, corola da cólera,
por que caminhos e como te dirigiste a minha alma?

Por que precipitaste teu fogo doloroso,
de repente, entre as folhas frias de meu caminho?
Quem te ensinou os passos que até mim te levaram?
Que flor, que pedra, que fumaça, mostraram minha morada?

O certo é que tremeu a noite pavorosa,
a aurora encheu todas as taças com seu vinho
e o sol estabeleceu sua presença celeste,

enquanto o cruel amor sem trégua me cercava,
até que lacerando-me com espadas e espinhos
abriu no coração um caminho queimante.

IV

Recordarás aquela quebrada caprichosa
onde os aromas palpitantes subiram,
de quando em quando um pássaro vestido
com água e lentidão: traje de inverno.

Recordarás os dons da terra:
irascível fragrância, barro de ouro,
ervas do mato, loucas raízes,
sortílegos espinhos como espadas.

Recordarás o ramo que trouxeste,
ramo de sombra e água com silêncio,
ramo como uma pedra com espuma.

E aquela vez foi como nunca e sempre:
vamos ali onde não espera nada
e achamos tudo o que está esperando.

V

Não te toque a noite nem o ar nem a aurora,
só a terra, a virtude dos cachos,
as maçãs que crescem ouvindo a água pura,
o barro e as resinas de teu país fragrante.

Desde Quinchamalí* onde fizeram teus olhos
aos teus pés criados para mim na Fronteira
és a greda escura que conheço:
em teus quadris toco de novo todo o trigo.

Talvez tu não saibas, araucana*,
que quando antes de amar-te me esqueci de teus beijos
meu coração ficou recordando tua boca

e fui como um ferido pelas ruas
até que compreendi que havia encontrado
amor, meu território de beijos e vulcões.
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* Notas:
Araucana = Relativo à Araucânia, região da América do Sul que abrange a província de Arauco, no Chile.
Boroa = é um povoado situado no município de Nueva Imperial, Região da Araucanía (Chile), nas ribeiras do rio Cautín.
Quinchamalí = é um pequeno povoado localizado na região de Ñuble, província de Diguillín , dependente do município de Chillán (Chile).
Taltal = é um município da província de Antofagasta, localizada na Região de Antofagasta, Chile.


Fonte:
Pablo Neruda. Cem sonetos de amor. Publicado em 1959.

terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Varal de Trovas n. 539

 

Contos e Lendas do Mundo (Índia: O tigre, o brâmane e o chacal)

Um tigre ficou preso em uma armadilha. Tentou, em vão, atravessar as grades, girou e as mordeu com fúria e tristeza quando não conseguiu.

Por acaso, estava passando por ali um pobre brâmane.

– Tire-me dessa jaula, por piedade! – suplicou o tigre.

– Não, amigo – respondeu o brâmane de maneira amável. – É provável que me devore se eu o
fizer.

– De jeito nenhum! – prometeu o tigre. – Pelo contrário, serei eternamente grato e o servirei como um escravo!

O tigre soluçava, suspirava, chorava e suplicava, e o coração do piedoso brâmane amoleceu. Enfim concordou em abrir a porta da jaula. Dela saiu o tigre que, capturando o pobre homem, gritou:

– Como é tolo! Como evitará que o devore agora, já que estou faminto depois de ficar tanto
tempo preso?!

Em vão, o brâmane implorou que o tigre lhe poupasse a vida. O máximo que conseguiu foi a promessa de que o tigre obedeceria a decisão das primeiras três coisas que ele escolhesse para questionar se era ou não justa aquela ação.

O brâmane primeiro perguntou a uma figueira o que ela achava da questão, mas a figueira
respondeu com frieza:

– Do que está reclamando? Eu não forneço sombra e abrigo a todos que passam por aqui, e eles, em troca, não cortam meus galhos para alimentar o gado? Não choramingue. Seja homem!

O brâmane, abatido, caminhou mais um pouco até encontrar uma búfala girando uma roda d’água. Mas não foi muito melhor, pois ela respondeu:

– Se espera gratidão, é um tolo! Olhe para mim! Enquanto eu lhes dava leite, eles me alimentavam com sementes de algodão e bolo prensado, mas agora que estou seca, me deixam presa aqui e me alimentam com lavagem!

O brâmane, ainda mais triste, pediu à estrada que desse sua opinião.

– Meu caro, senhor – disse a estrada –, que tolo é por esperar algo mais! Cá estou, útil a todos, e ainda assim ricos e pobres, grandes e pequenos, pisam em mim ao passar, sem me dar nada além das cinzas de seus cachimbos e cascas de suas sementes!

Com isso, o brâmane retornou com pesar e no caminho encontrou um chacal que lhe perguntou:

– Ei, qual é o problema, senhor brâmane? Parece deprimido como se fosse um peixe fora d’água!

O brâmane contou todo o ocorrido.

– Que confuso! – exclamou o chacal, quando ele terminou a história. – Poderia contar tudo de novo, pois não entendi nada?

O brâmane repetiu tudo, mas o chacal balançou a cabeça de maneira distraída e ainda assim não compreendeu.

– É muito estranho – disse ele com tristeza. – Mas parece que entra tudo por um ouvido e sai pelo outro! Vou ao local onde tudo aconteceu, talvez assim consiga dar minha opinião.

Eles então voltaram à jaula, perto da qual o tigre esperava o brâmane afiando os dentes e as garras.

– Você demorou muito! – rugiu a fera selvagem. – Mas agora podemos iniciar nosso jantar.

“Nosso jantar?”, pensou o pobre brâmane, enquanto seus joelhos batiam um contra o outro de medo. “Que maneira delicada de se expressar!”

– Peço-lhe cinco minutos, meu senhor! – suplicou. – Para explicar a questão ao chacal, que tem o raciocínio um pouco lento.

O tigre concordou, e o brâmane contou toda a história novamente, sem deixar nenhum detalhe de fora, demorando-se o máximo possível.

– Ah, meu pobre cérebro! Ah, meu pobre cérebro! – gritou o chacal, retorcendo as patas. – Deixe-me ver! Como tudo começou? Você estava na jaula e o tigre veio passando…

– Aaaah! – interrompeu o tigre. – Como é idiota! Eu estava na jaula.

– É claro! – exclamou o chacal, fingindo tremer de medo. – Sim! Eu estava na jaula. Não, eu não estava. Minha nossa! Minha nossa! Onde estou com a cabeça? Deixe-me ver. O tigre estava no brâmane, e a jaula veio passando. Não, também não é isso! Bem, não se importem comigo. Iniciem seu jantar, pois nunca entenderei!

– Sim, entenderá! – retrucou o tigre, com raiva da estupidez do chacal. – Eu farei você entender! Veja só. Eu sou o tigre…

– Sim, senhor!

– E aquele é o brâmane…

– Sim, senhor!

– E esta é a jaula…

– Sim, senhor!

– E eu estava na jaula. Entendeu?

– Sim… não… Por favor, senhor…

– O que foi? – gritou o tigre, impaciente.

– Por favor, senhor! Como entrou na jaula?

– Como? Do modo habitual, é claro!

– Ah, pobre de mim. Minha cabeça está começando a girar de novo! Por favor, não fique zangado, meu senhor. Mas qual é o modo habitual?

Com isso, o tigre perdeu a paciência e, pulando dentro da jaula, berrou:

– É assim! Agora entendeu como foi?

– Perfeitamente! – O chacal sorriu e, com destreza, fechou a porta. – E, se me permite dizer, acho que as coisas permanecerão como estavam!
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J. P. Steel e R. C. Temple, no Wide-Awake-Stories, Bombay e Londres, 1884, recolheram uma versão popular no Panjap. O Tigre, ajudado pelo Brâmane, quer devorá-lo. Árvore, Vaca e Caminho opinam pelo Tigre. O Chacal, pretendendo reconstituir a cena, prende o Tigre para sempre. Couto de Magalhães ouviu o mesmo episódio entre os indígenas brasileiros do idioma tupi, O Selvagem, Rio de Janeiro, 1876, onde a Onça, posta em liberdade pela Raposa, quer devorá-la. O Homem manda a Onça voltar ao fosso, deixando-a presa. O prof. Espinosa colheu uma variante em Espanha, Un bien con un mal se paga, León; a Cobra quer morder ao Homem que a salvou do frio. O Asno e o Boi foram pela Cobra mas a zorra (Raposa) exigiu a encenação inicial e a Cobra regressou ao alforje do Homem que a matou, ás pauladas, Cuentos Populares ‘Españolen, III.0, 264.°. Na Argentina, Rafael Cano, Del Tiempo de Ñaupa, Buenos Aires, 1930, quem fixou o conto, tendo como personagens o Tigre, o Homem e o zorro (raposa). Na África Oriental Portuguesa, Moçambique, o padre Francisco Manuel de Castro registrou uma variante, ouvida aos pretos Macuas e transcrita pelo jornalista brasileiro Amon de Melo, Africa, Rio de Janeiro 1941. O Perú Bravo, solto de uma armadilha pelos meninos Narrapurrapu e Nantetete, filhos de Moxia, ia comê-los quando o Coelho duvidou que ele tivesse cabido dentro da armadilha. O Peru Bravo, desafiado, voltou à prisão e ainda lá deve estar. Leo Frobenius, no African Génesis, seleção de Douglas C. Fox, New York, 1937, tem uma versão dos negros Nupes do Sudão. O caçador livrando um crocodilo de morrer fora do Niger está condenado a morte. Asubi (esteira colorida do Kutigi) e um pedaço de pano, votam a favor do Crocodilo. O Boaji (almíscar) obtém a representação da cena e deixa o crocodilo no seco, escapando o Homem.
 
Fonte:

Barão de Itararé (Versos Diversos) 5

O ACUSADO

O réu está abatido. E o promotor,
Ao tomar a palavra, diz que aquela ave
Está acusada d’um crime muito grave
E é necessário puni-la com rigor.

Logo depois, o advogado da defesa
Levanta-se, tosse, cospe para o lado
E, dando um soco violento sobre a mesa,
Suplica ao júri a soltura do acusado.

O réu, comovido, adoece de repente...
Todos os presentes tapam o nariz,
Porque a atmosfera fica um tanto impura.

O médico legista examina o doente
E declara in fidei gradi* ao senhor juiz
Que aquilo é de fato, um caso de soltura.
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* Fidei Gradi = graus de confiança
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 A POLÍTICA

Não sei porque tu queres me proibir
Que em política meta o meu bedelho.
Perdoa, mas não posso consentir,
Que tu me venhas dar um tal conselho.

A política é a causa do progresso
De todas as nações civilizadas.
O que a deprime e avilta é o excesso
De perseguições torpes e infundadas.

O meu amor, portanto, não se zangue.
O ser político, isso está em meu sangue…
Não me vás, só por isso, deixar só...

Pois, gostando de ti desta maneira,
Serei um dia, mesmo que não queira,
Politicamente, neto de tua avó.
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COMPROMETIDO

Esta paixão recolhida,
Que de novo veio a furo,
Estragou-me toda a vida,
Anarquizou-me o futuro.

Tive fortuna e um nome...
Agora não tenho nada!
Tudo o que tinha roubou-me
Essa mulher, essa fada...

Tenho o peito em polvorosa!
Preso ao rochedo da dor,
Eu sou um novo Prometeu!

Que futuro cor-de-rosa!
Que futuro encantador,
Pafúncia comprometeu!
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PERDEU

Eu tinha uma pequena (já crescida)
Que eu não podia desejar mais bela.
Era ela que alegrava a minha vida,
Era eu que alegrava a vida dela.

Mas um dia chegou ao nosso porto
Uma galera. Cheia do aspirantes,
E o meu prestígio, em breve, ficou morto
Ou, pelo menos, não era como antes.

Deixou-me... Deixei-a... Os candidatos
Eram dois aspirantes e a covarde
Esses dois namorou d’uma só vez.

Foi-se a galera... Foram-se os ingratos...
Ela tentou voltar, mas era tarde:
A recompensa foi perder os três…
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A RENDIÇÃO DA PRAÇA

O forte está sitiado. Um flanco avança,
Fazendo-lhe temíveis investidas.
Logo depois uma carga de lança.
A metralha e as balas ceifam vidas.

O bravo comandante não se cansa
Mas, ao ver as paredes já fendidas,
Perde o ultimo raio de esperança,
De retomar as posições perdidas.

O forte já está fraco... E o inimigo,
Percebendo que o forte está em perigo,
Volta à carga com força redobrada.

Rendem-se, enfim, os últimos, feridos,
E (fato extraordinário!) entre os rendidos
Não há sequer uma hérnia estrangulada.

Fonte:
Apporelly (Barão de Itararé). Pontas de cigarros: livro de versos diversos. Rio de Janeiro: O Globo, 1925.

André Kondo (A Boneca)


A neve caía sobre o norte de Honshu, congelando os caminhos de Sendai. Um vulto carregando um embrulho se esgueirou até a entrada do castelo de Akihiro, senhor da província. Uma das sentinelas, percebendo o ato suspeito, ordenou que o estranho se identificasse. Ao ouvir a voz do guarda, o vulto ergueu a cabeça. Era uma mulher, que deitou o pacote sobre a neve e fugiu.

Um choro de bebê cortou o ar congelado. O soldado pegou em seus braços uma menina. Uma menina sem braços nem pernas. Surpreso, levou a criatura ao interior do castelo. Seu comandante foi chamado e proferiu o destino da criança. Como já não tinha braços nem pernas, ficaria também sem a cabeça. Ordenou que a decapitassem. Para um guerreiro, aquele ato não seria nada além do que um gesto de piedade. Quando um samurai comete seppuku, cortando o ventre com a própria espada, tem diante de si uma dolorosa morte, que pode se arrastar por horas de agonia. É justamente para evitar esse sofrimento prolongado que a sua morte é abençoada com a decapitação.

Que vida poderia ter aquela criatura infeliz? Como poderia ela brincar? Como poderia ela viver? A morte, nessas condições, seria o melhor brinquedo, e a espada em seu pescoço, o único afago de carinho. O samurai ergueu a espada. Durante toda a vida havia sido treinado para matar e morrer sem hesitação. Mas, naquele instante, sua mão hesitou.

O que se passou na cabeça daquela mulher ao abandonar a menina em frente ao castelo? O castelo pertencia a Akihiro, um samurai que não havia conquistado a província com a espada, mas com o coração. O povo dizia que nunca houve um daimyo mais justo e gentil do que ele. Provavelmente, a mulher tinha a esperança de que o bondoso coração de Akihiro pudesse amar uma criatura incapaz de receber o amor da própria mãe. O comandante deve ter chegado a essa conclusão e suspendeu, com grande alívio do executor, a sentença de morte. O destino da menina foi entregue nas mãos de Akihiro. Sem dizer palavra, ele tomou a criança em seus braços. E foi para Akihiro que a menina deu o primeiro sorriso de sua vida.

A menina cresceu. Tinha já quatro anos quando ganhou a primeira boneca. Era uma boneca de cabelos negros, vestindo um quimono vermelho. E a menina sorria para a boneca. Aquele brinquedo era o mais próximo de outra criança que ela já havia visto.

Quando a menina completou cinco anos, Akihiro achou que seria bom ela conhecer outras crianças. A menina ficou encantada com todas aquelas “bonecas” que falavam. Ficou ainda mais encantada ao ver que as meninas andavam! Mas o encanto maior estava em um movimento sublime, um gesto que ela nunca havia sentido: um abraço.

Até mesmo Akihiro nunca a havia abraçado. Nunca lhe passou pela cabeça realizar esse gesto com a menina, afinal de contas, abraços não fazem parte da cultura de um senhor feudal. E também não poderia dar um abraço de verdade na menina, pois um abraço de verdade requer quatro braços – um par de cada pessoa. Sendo assim, abraços não faziam parte da vida da menina.

Mesmo assim, a menina sem braços adorava ver abraços. As outras crianças se abraçavam. Mas o que chamou a sua atenção é que as meninas abraçavam as bonecas também! E as bonecas tinham braços, mas não retribuíam os abraços. Sendo assim, será que ela não poderia ser abraçada também? Como se fosse uma boneca? Ela sorriu. Pediu um abraço. Não recebeu sequer um.

– Não dá pra abraçar você – disse uma menina.

– Por que não? Você pode fingir que eu sou uma boneca...

– Mas você é uma boneca quebrada...

Desde esse dia, a menina não sorriu mais. Descobriu que era uma boneca quebrada. Olhava para a sua boneca, com os braços saindo do quimono vermelho. Desejou ser ela, uma boneca com braços. Ninguém quer brincar com uma boneca quebrada. Ela não comia mais, não falava mais, não sorria mais. Adoeceu.

Akihiro procurou os conselheiros para curá-la. Comprou presentes e agrados, mas nada adiantava. O sorriso da menina sumiu, talvez tivesse partido para o mesmo lugar em que estavam os seus braços e pernas. Em algum lugar, algum lugar...

A notícia de que a menina sem braços estava doente se espalhou. Comovida, uma mulher pediu para entregar, pessoalmente, um presente para a pobrezinha. Ela era uma famosa artífice de bonecas.

A artesã enxugou as lágrimas ao olhar para a menina. Com dificuldade, a criança abriu os olhos e viu uma boneca nas mãos da mulher. Era uma boneca diferente. Uma boneca especial. A menina piscou os olhos. Nunca havia visto uma boneca tão linda quanto aquela. Seus lábios tremeram, lutando para esboçar um sorriso.

– Como... ela... se chama? – perguntou a menina.

A artesã respondeu:

– Ela se chama Kokeshi...

A menina comemorou:

– Nós temos o mesmo nome!

– Eu sei...

A artesã abraçou Kokeshi, enquanto falava algo que a menina não ouvia, porque eram palavras ditas apenas com o coração: “Perdoe-me filhinha... perdoe-me... Mamãe te ama muito”. Mas a menina não ouviu nada disso, apenas sentiu um grande calor em seu peito. Um calor que nunca havia sentido antes – o calor do abraço materno.

Quando Kokeshi nasceu, o pai da menina havia ameaçado matar a criança. Se a mulher não se livrasse do bebê, ele acabaria com mãe e filha. Desde esse dia, a mãe de Kokeshi começou a fazer bonequinhas de madeira. Ela sentia saudades e era essa a única maneira de amenizar a sua dor, a única maneira de pintar um sorriso no rosto da filha. E era uma dessas bonequinhas que a mãe levou de presente naquele dia. A boneca era tão bonita que todas as meninas quiseram ter uma.

As bonecas Kokeshi ficaram famosas por toda a província de Sendai. Bonequinhas cilíndricas de madeira, sem braços nem pernas... Só com uma linda e sorridente cabecinha redonda, porque o sorriso é o que importa na magia de uma boneca. As meninas de Sendai, maravilhadas com essas bonequinhas, passaram a brincar sempre com elas.

Desde então, todas as crianças querem abraçar, também, a sorridente menina Kokeshi.

Minha Estante de Livros (Livros de André Kondo)


Além do Horizonte

O livro narra a história real de alguém que tentou fugir da realidade. Mas para onde se pode fugir quando o que o persegue está cravado em seu peito? Até onde se pode chegar quando o dinheiro acaba e tudo o que resta é a roupa do corpo e uma surrada mochila, que carrega o peso de uma desilusão amorosa, o desprezo de um pai e a culpa pela morte do melhor amigo?

O autor tentou fugir escalando o selvagem Monte Roraima, navegando para uma paradisíaca ilha do Caribe, cruzando a selva amazônica, seguindo os trilhos da morte da Madeira - Mamoré, buscando proteção nas muralhas de uma fortaleza perdida nos confins do Brasil, pegando carona nas estradas mais remotas, pedalando uma velha bicicleta pelo Pantanal, caminhando 400 quilômetros pelas tortuosas vias do Caminho da Fé, tentando se perder na multidão da festa dos bois de Parintins e dos touros do rodeio de Barretos, se enterrando em um cemitério abandonado de uma cidade fantasma, dormindo nas ruas entre mendigos, acampando no mato entre malucos na grande Chapada dos Guimarães... e encontrando, pelo caminho, pessoas incríveis que lhe ensinaram a ter a coragem necessária para nunca mais fugir da vida. Pessoas que lhe mostraram o caminho que o levaria à paz de espírito, em algum lugar, “além do horizonte”...
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O pequeno samurai

Os samurais eram guerreiros japoneses que se destacavam pelo rigoroso código de conduta, defendendo a justiça, a coragem, a compaixão, a cortesia, a sinceridade, a lealdade e a honra. Em O pequeno samurai, Yuji narra como descobriu, com a ajuda de seu avô, que era um pequeno samurai e como isso o ajudou em sua longa jornada rumo ao Brasil. De forma sensível e emocionante, o menino descreve como foi a despedida de sua terra natal, a aventura de viajar de navio até o outro lado do mundo e a descoberta de que no Brasil também existiam samurais.

Finalista do Prêmio Jabuti, em 2009, Dupla Menção Honrosa (júri técnico e júri infantil) no Prêmio Nacional de Literatura João-de-Barro.
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Contos do Sol Poente

Após Contos do Sol Nascente e Contos do Sol Renascente, com milhares de exemplares vendidos e vários prêmios recebidos, chega aos leitores Contos do Sol Poente, que já recebeu o Prêmio Humberto de Campos, concedido pela UBE no Rio de Janeiro, como melhor original inédito de contos. Individualmente, as 18 histórias desta obra receberam outros 29 prêmios literários. Para além das premiações, a obra traz a força dos imigrantes, neste caso, os japoneses, de quem André Kondo é descendente. O sonho, a determinação, os valores e todos os componentes que perfazem a jornada de um povo em busca de uma vida melhor são encontrados nesta obra.

O Sol Poente, em contraposição ao Sol Nascente, traz a metáfora do ocaso da vida, mas não se trata de um fim, mesmo para esta já consagrada trilogia. Afinal de contas, quando o sol se põe em um lugar, significa apenas que ele está nascendo em outro.

Contos do Sol Poente ainda conta com ilustrações de Alessandro Fonseca e textos de um notável trio, todos detentores do Prêmio Jabuti: Oscar Nakasato (orelha), Antônio Torres (texto biográfico) e Célia Sakurai (prefácio).

Esta obra é um convite para buscarmos as nossas próprias sagas, antes que o Sol se ponha...
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André Kondo nasceu em Santo André e foi criado em Taubaté, filho de imigrantes japoneses. É autor de 13 obras, sendo 12 premiadas, incluindo uma tradução desta obra em japonês e outra finalista do Prêmio Jabuti. Morou na Austrália, onde fez pós-graduação pela University of Sydney, e no Japão, tendo visitado desde a gélida Hokkaido no Norte, passando por Honshu, Shikoku e Kyushu, até as ilhas tropicais de Okinawa ao Sul. A convite do Governo do Japão, recebeu a prestigiosa bolsa Gaimusho Kenshusei em 2020, tendo a honra de ser recepcionado por membros da família imperial japonesa. Recebeu mais de 400 prêmios literários, incluindo o Prêmio ProAC por Histórico de Realização em Literatura, concedido pelo Governo de São Paulo. Foi autor homenageado da 2.ª Festa Literária de Jundiaí. É membro correspondente de entidades como a ATL, ASES, AMLAC e membro da Comissão de Atividades Literárias do Bunkyo, fazendo parte da diretoria da Associação Cultural e Literária Nikkei Bungaku e da Associação Brasileira de Ex-Bolsistas Gaimusho Kenshusei. Como autor, chegou a receber o Selo Cátedra Unesco de Leitura PUC-RIO e o Altamente Recomendável da FNLIJ, em uma obra em coautoria, na qual escreveu sobre a sua família. É editor da Telucazu Edições, pela qual tem publicado autores e autoras que estão despontando no cenário literário contemporâneo, com várias obras premiadas. Site: www.andrekondo.com

domingo, 12 de dezembro de 2021

Daniel Maurício (Poética) 13

 

Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) 44, 45 e 46


CASAMENTO POR CINCO ANOS


Da ideia de prorrogar os mandatos populares defluiu a ideia de prorrogar o casamento de Bertoldo Seixas, cujo contrato matrimonial estipulava o prazo de cinco anos de vigência.

Não partiu de Bertoldo a iniciativa, mas de sua mulher Eufórbia, que alegou ser muito exíguo o período de cinco anos para se decifrar a verdadeira sociedade conjugal. Bertoldo respondeu que contrato é contrato, e como tal deve ser cumprido, a menos que haja motivo justo para rescisão.

Como Eufórbia insistisse em seu ponto de vista, Bertoldo anuiu sem convicção, e prorrogou-se o casamento por prazo indeterminado, isto é, para a eternidade.

Ao fim de seis meses de prorrogação, a mulher sentiu o peso da eternidade e propôs o cancelamento da união. Bertoldo opôs-se, alegando mais uma vez que os contratos merecem ser cumpridos. Discutiram bastante, e acordaram afinal em dissolver o vínculo.

Bertoldo e Eufórbia voltaram a casar-se por cinco anos improrrogáveis, mas com outra parceira e outro parceiro, respectivamente. Parece que são razoavelmente felizes.
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CRIME E CASTIGO

Interrogado pelo comissário, jurou inocência. Inquirido pelo delegado, voltou a jurar. Não acreditaram. Foi indiciado, pronunciado, julgado,condenado. Sempre gritando que estava inocente.

No fim de cinco anos de prisão, acabou convencido de que era mesmo culpado. Pediu que o julgassem novamente, para agravamento de pena. Em vez disto, soltaram-no porque findara a pena.

Saiu confuso, já não tinha certeza se era culpado ou inocente, ou as duas coisas ao mesmo tempo. Como toda gente.
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DESEMPREGO

— Não está me reconhecendo? Sou a terceira mulher do sabonete Araxá. Aquelas do anúncio.

— Eu sei. As três mulheres do poema de Manuel Bandeira.

— Não, do anúncio do sabonete. O poema veio depois, nós já existíamos antes.

— E que foi feito das duas outras?

— A primeira passou a trabalhar para a Sentinela Juropapo. A segunda está no galarim, só trabalha para a Secom. Eu estou desempregada, não dá para me arranjar uma boa mordomia no INPS? Sei que é difícil me aposentar, porque já tenho idade de sobra, mas…

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

Baú de Trovas XXXVIII


Se a moda seguir assim,
sempre encurtando os vestidos,
está bem próximo o fim
das fábricas de tecidos...
A. A. DE ASSIS
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Moça sabida, a Nair
também sabe gracejar:
diz que o dia é pra dormir
e a noite... pra trabalhar.
ADERBAL DE QUEIRÓS
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Vejo em ti, coroa rica,
dois males que não têm cura:
— capa de pura pelica,
— cara de pelanca pura!
ALOISIO ALVES DA COSTA
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Ele opina sobre tudo.
Gesticula, ordena, fala...
De repente, fica mudo,
porque a sogra entrou na sala..
AMÉLIA TOMAS
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Homem gordo é o "seu" Tadeu,
nunca vi tamanha pança.
— Foi com razão que nasceu
sob o signo da balança!
ANTÔNIO ROSALVO RIBEIRO ACCIOLY
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Com uma festinha à toa,
que não requer muito estudo,
qualquer secretária boa
vence um patrão carrancudo...
APARÍCIO FERNANDES
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Quando te vejo, vizinha,
corpo bem feito a gingar,
eu lembro um violão que eu tinha,
sem nunca poder tocar...
ARAÍFE DAVID
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Beijo-te a carta e bendigo
tuas juras, desta vez,
com tal amor, que mastigo
teus erros de português...
ARLINDO BARBOSA
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Sete mulheres por homem,
o censo afirma e repete.
— Gostaria de saber
quem levou as minhas sete...
ARY DE OLIVEIRA
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O furto, se praticado
pela alta aristocracia,
toma um nome arrevezado:
passa a ser cleptomania...
BENEDITO R. ARANHA
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Vem, Maria, ao meu amor,
que, com jeito, a gente arranja
botar no congelador
tuas flores de laranja...
CARLOS GUIMARÃES
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Cama nova, bem limpinha...
Nome dela numa fronha...
Ela própria, engraçadinha...
Que beleza, hein, sem-vergonha?
CHICO VEIGA
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Com aquele rebolado
que é tão fora do comum,
a mulher do delegado
também prende qualquer um...
COLBERT RANGEL COELHO
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Não tenhas medo, querida,
que agora eu quero é viver:
com este custo de vida,
quem é que pode morrer?!
EURICLES BARRETO
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Ordena a viúva triste:
— "Vistam-lhe o mais rico terno!"
Pergunto: será que existe
tanta festa lá no inferno?...
HERALDO LISBÔA
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O Eterno, lá dos confins,
é credor das nossas loas:
se fez tantos homens ruins,
fez muitas mulheres boas!...
JACY PACHECO
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Teus foros de sapiência
a outros têm iludido.
Não a mim, tenho ciência
que não és sábio, és sabido...
J. DIAS DE MORAES
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Em plástica, o doutor diz:
— Que operação oportuna!
Diminuo este nariz
e aumento minha fortuna!...
MAGDALENA LÉA
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Sobre a pinga, tagarela,
falava um pau d'água assim:
— Eu já não gosto mais dela,
ela é que gosta de mim!
NELSON FERREIRA DA LUZ
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Quero uma casa pequena,
que seja só de nós dois.
O resto, minha morena,
eu só te digo depois...
OSWALDO VALPASSOS
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Se as sogras más desta terra
se unissem num batalhão,
venceriam qualquer guerra,
sem fuzil e sem canhão...
P. DE PETRUS
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Eras do João e eu dizia:
– Que sorte tem o ladrão!
Hoje que és minha, Maria,
que inveja tenho do João!...
PAULO EMÍLIO PINTO
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Na história do educandário
há um milagre convincente:
o do professor primário,
que transforma um burro em gente.
PAULO FÉNDER
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Nos braços que me prenderam
passei anos de alegria.
Duas letras se inverteram
e fiquei com alergia...
RODRIGUES CRÊSPO
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Quem casa com mulher feia
ganha em dobro, na jogada:
mesmo cobiçando a alheia,
nunca a dele é cobiçada...
SERAFIM SOFIA
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Era coisa já sabida
que ele nascera em São João:
por isso venceu na vida
à custa do pistolão…
SEBASTIÃO VASCONCELLOS
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Seu critério nas consultas
— talvez um dos mais sutis —
é cobrar contas adultas,
pelas curas infantis.
SYLVIO MACHADO
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Todo homem é um diabo,
não há mulher que o negue.
Mas todas elas procuram
um diabo que as carregue!
TROVA POPULAR ANÔNIMA

Fonte:
Aparício Fernandes. A Trova no Brasil: história e antologia. São Cristovão/RJ: Artenova, 1972.

Sammis Reachers (Cavalo ou égua?)

O motorista Marcão havia há pouco tempo saído da manobra ou escolinha. Como é de praxe na empresa Ingá, foi posto para trabalhar no sereno ou bacurau (o turno da madrugada}, para ganhar experiência.

Em mais uma noite de serviço, após rodar pra lá, rodar pra cá, lá pelas cinco da manhã, nosso amigo Marcão, homem tímido porém mulherengo, segue sonolento, carro vazio, já em sua última viagem. A linha é a 24, Palmeiras x Gragoatá. O dia começava a clarear, e Marcão apagou as luzes do salão, deixando o carro na penumbra.

Chegando em frente ao Plaza Shopping, no sentido de quem ia para o bairro do Gragoatá, àquelas horas, tranquilo e deserto, uma mulher dá sinal. Marcão para, abre a porta, ainda sonolento e desinteressado. A moça passa na roleta. Ao perceber que não havia outros passageiros no veículo, ela diz:

- Carro vazio, hein! Que legal. Bom para namorar... E aí, como você vai querer que eu pague a passagem, no dinheiro ou... Quer fazer alguma outra coisa?

Ao ouvir tal pergunta indiscreta, nosso sonolento e tímido Marcão deu como que um pulo no banco, entre assustado e já eriçado. Pensou em seu coração;

- É hoje! É hoje que eu tiro o atraso!

Já prestes a responder à moça, Marcão, agora sim bastante interessado, acende as luzes do salão e olha bem para a menina, pelo espelho retrovisor. Era bonita, a danada! Mas Marcão nota algo estranho, olhando para o pescoço dela: a "moça" possui um enorme pomo-de-adão, um enorme gogó, como se diz. Bem, para um bom entendedor, um pomo basta: aquilo significava que aquela Coca-Cola era Fanta, que aquela égua era na verdade um cavalo: um tremendo traveco...

Já murchinho em seu banco, Marcão respondeu:

– Dinheiro mesmo...

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários. São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.