sábado, 20 de junho de 2020

Varal de Trovas n. 298


Cláudio de Cápua (o Gol Frustrado)


Quando jovem, pratiquei diversos esportes. O que menos me atraía vocacionalmente era o futebol. Mesmo assim, cheguei, na década de 60, enquanto estudava Agrimensura, a jogar de beque central no quadro de aspirante da Ferroviária de Araraquara.

Certa ocasião, foi organizada uma seleção de craques paulistas, veteranos da década de 60, para enfrentar a Seleção do Brasil, do técnico Dunga. Não sei por que cargas d'água fui um dos escalados ao lado de Rívelino, Ademir da Guia, Basani, Coutinho, Pepe, Djalma Santos e Julinho.

Nos primeiros minutos do 1o tempo, Júlio Botelho sofreu pênalti. A cobrança do pênalti ia ser feita, nada mais nada menos, do que pelo Pepe, o famoso "Canhão da Vila". Pepe preparava o chute...mas, de súbito, transfere a honra da cobrança para mim! E eu explodindo de alegria pela honra! Afinal, Pepe era o maior batedor de pênaltis da época!

Corri entre atônito e exultante para a bola e enchi o pé! Chutei com gosto e muita força. Seguiu-se um grito... Não de vitória, mas de dor. Vi estrelas e acordei com marca profunda no peito do pé, já que, em vez de chutar a bola... chutei valentemente o beiral de madeira do pé da minha própria cama!

(Revista Santos Arte e Cultura – Setembro 2013)

Fonte:
Cláudio de Cápua. Retalhos de Imprensa. São Paulo: EditorAção, 2020.
Livro gentilmente enviado pelo escritor.

Luiz Gonzaga da Silva (Trova e Cidadania) 17 - Solidão


Solidão significa encontrar-se só ou sentir-se só. A solidão é uma experiência vital. Juvenal Arduini (2002) cita vários tipos de solidão: solidão estéril, onde nada se planta, nada se cria; solidão excludente, a solidão dos excluídos da sociedade, dos pobres, dos discriminados, dos desempregados, dos desabrigados; solidão confinatóría, na qual a sociedade de controle procura manter os dissidentes, os que são obrigados a calar, os exilados; solidão habitada, que carrega lembranças, afetos, esperanças e frustrações; e a solidão fecunda, esta que permite a criação, invenção, arte e engenho. Esta pode ser referida também como o ócio criativo de Domênico de Masi.

Sem dúvida, a solidão fecunda é a mais cara ao trovador. Mas este, em sua criação, finalmente irá por em relevo a solidão habitada. Solidão quase angústia. E que beleza estética!


Na velha estação de trem
que a solidão dominava?
eu acenei a ninguém...
fingindo que alguém chegava...
Octávio Venturelli - RJ

Há uma dor que aos céus se eleva,
uma ânsia que não se acalma:
- Solidão! Rosa de treva
despetalada em minha alma.
Luiz Rabelo - RN

Na solidão dos conventos,
nos corredores compridos,
escuto o grito do vento
chamando as sonhos perdidos.
J. Guedes - MG

No tear da solidão,
rendeiro em dias tristonhos,
basta um fio de ilusão
para tecer os meus sonhos!
Elizabeth Souza Cruz - RJ

Exemplos de solidão estéril são postos em relevo nas seguintes trovas;

Quem se entrega à solidão
e dela se faz refém,
anda em meio à multidão,
mas não enxerga ninguém!
Ademar Macedo - RN

Não existe solidão
tão triste como a de quem,
no meio da multidão,
caminha e não vê ninguém!...
José Tavares de Lima - MG

Fonte:
Luiz Gonzaga da Silva (org.). Trova e Cidadania. Natal/RN, abril de 2019.
Livro enviado pelo autor.

A Literatura Portuguesa (Trovadorismo) I

Pela sua posição geográfica no mapa europeu, Portugal como se estivesse empurrado contra o mar, toda a sua história, literária e não, atesta o sentimento de busca um caminho que só ele representa e pode representar. Recebe influências exclusivas e marcantes tanto étnicas como culturais (árabes, germânicas, francesas, inglesas, etc.), e por essa razão gerou uma literatura com características próprias e permanentes, além da "fatalidade" de ser a Língua Portuguesa seu meio de comunicação, o que ajuda completar e explicar o quadro.

A Literatura Portuguesa reflete essa angústia geográfica: “o escritor português opta pela fuga ou pelo apego a terra, matriz de todas as inquietudes e confidente de todas as dores, centro de inspiração e nutridora de sonhos e esperanças. A fuga dá-se para o mar, o desconhecido, fonte de riqueza algumas vezes, de males incríveis e de emoção quase sempre; ou, transcendendo a estreiteza do solo físico, para o plano metafísico, à procura de visualizar numa dimensão universal e perene a inquietação particular e egocêntrica”.

Para Massaud Moisés, é uma literatura rica em poetas – Camões, Bocage, Antero, Fernando Pessoa, entre outros - “(...) A poesia é o melhor que oferece a Literatura Portuguesa, dividida entre o apelo metafísico, que significa a vivência e a expressão de problemas fundamentais e perenes (a existência ou não de Deus, o ser e o não-ser, a condição humana, s valores do espírito, etc.), e a atração amorosa da terra (representada por temas populares, folclóricos), ou um sentimento superficial, feito da confissão de estados de alma provocados pelos embates amorosos (...)”.

A riqueza da poesia contrasta com a pobreza do teatro que somente algumas poucas vezes saiu “do nível medíocre ou meramente razoável” através de Gil Vicente, Garrett e António José da Silva.

O romance decai após a morte de Eça de Queirós, em 1900. Voltando a viver uma época de esplendor após 1940, pela quantidade e qualidade de seus autores configura-se no ponto forte da literatura lusa. A crítica literária, como o teatro, pobre, somente nos últimos anos começa a despontar com vigor científico.

A Literatura Portuguesa nasceu quase simultaneamente com a nação. Em 1094, Afonso VI, Rei de Leão, um dos reinos em que a Península Ibérica era dividida (os outros: Castela, Aragão e Navarra), casa suas filhas, Urraca com o Conde Raimundo de Borgonha, e Teresa com D. Henrique. Ao primeiro genro, doa uma extensa região de terra correspondente à Galiza; ao segundo, o território compreendido entre o rio Minho e o Tejo, com o nome de "Condado Portucalense".

Após a morte de D. Henrique, D. Teresa assume o governo e se aproxima da Galiza. Seu filho, o Infante, Afonso Henriques, rebela-se contra a mãe e inicia uma revolução que culmina com a vitória dos revoltosos, na batalha de S. Mamede, nos arredores de Guimarães e o Infante é declarado seu soberano. Porém, somente em 1143, na Conferência de Samora, D. Afonso VII reconhece Afonso Henrique como rei. Portugal está politicamente autônomo.

A data utilizada como marco do início da Literatura Portuguesa é 1198 (ou 1189), quando o trovador Paio Soares de Taveirós compõe uma cantiga, Cantiga de Garvaia, palavra que designava um luxuoso manto de Corte, dedicada a Maria Pais Ribeiro também chamada A Ribeirinha, favorita de D. Sancho I. Tudo indica que já havia uma atividade literária anterior, porém desaparecida.

TROVADORISMO (1198-1418)

O Trovadorismo Português foi o movimento literário caracterizado por seu caráter popular, sem relação com a cultura da Antiguidade Clássica greco-latina. Era uma arte literária simples, voltada para o entretenimento, e devido a essa simplicidade e natureza popular tem a preferência pelo idioma galaico-português em vez de latim, que era a língua da literatura erudita da época. Recebe considerável influência da cultura provençal, através dos artistas nômades oriundos daquela região que chegaram na Península Ibérica naquela época. A lírica trovadoresca teve grande força na França naquela época, e sua influência acabou se espalhando por vários países da Europa.

Massaud Moisés destaca quatro teses para origem da poesia trovadoresca:

1) A tese arábica. Relaciona a poesia trovadoresca à cultura árabe em virtude das invasões mouras na Península Ibérica.

2) A tese popular ou folclórica. Segundo essa linha de estudo a poesia trovadoresca foi uma manifestação literária “espontânea”, surgida naturalmente a partir das manifestações e cultura do povo da época.

3) A tese médio-latinista. A poesia trovadoresca teria se originado a partir da literatura latina produzida na Idade Média. Essa literatura teria chegado na Península Ibérica e influenciado a produção literária local.

4) A tese litúrgica. A poesia trovadoresca surgiu a partir da literatura cristã/sacra da época.

Entretanto, parece que nenhuma das teses citadas acima é suficiente para determinar com certeza a origem da lírica trovadoresca, dando-nos a possibilidade de aceitar todas elas de modo conjunto. Todavia a influência da Provença na poesia trovadoresca portuguesa é incontestável e se deu principalmente pelo fato de que muitos dos trovadores portugueses tiveram certa relação com a França. (D. Afonso Henriques e D. Sancho I foram casados com princesas criadas em cortes ligadas à Provença). Além disso, muitos artistas nômades oriundos daquela região passaram pela península, e ainda, as relações comerciais e os movimento militares (cruzadas) são fatores de influência.

O Trovadorismo Português inicia-se em 1189 (ou 1198) com a “Cantiga da Guarvaia” ou “Cantiga da Ribeirinha”, de Paio Soares de Taveirós e se estende até 1418, quando Fernão Lopes é nomeado Guarda-mor da Torre do Tombo por D. Duarte.

A POESIA TROVADORESCA

Na Provença, o poeta era chamado de troubadour, cuja forma correspondente em Português é trovador, da qual deriva trovadorismo (que serve de rótulo geral dessa primeira época medieval), trovadoresco, trovadorescamente. O poeta deveria ser capaz de compor, achar os versos e a melodia para sua cantiga. Eram poemas cantados e acompanhados por instrumentos musicais e às vezes danças.

A poesia trovadoresca classifica-se em: lírico-amorosa e satírica. A primeira divide-se em cantiga de amor e cantiga de amigo; a segunda, em cantiga de escárnio e cantiga de maldizer. O idioma empregado era o galego-português, em virtude da então unidade linguística entre Portugal e a Galiza.

CANTIGAS DE AMOR

Poesia lírica onde o trovador, de acordo com a arte de trovar” confessa seu amor por uma dama inacessível aos seus apelos, entre outras razões por ser de classe social mais elevada, geralmente nobre, enquanto ele era, quando muito, um fidalgo decaído. O poema é um lamento suplicante, os apelos do trovador “colocam-se alto, num plano de espiritualidade, de idealidade ou contemplação platônica”. Trata-se de um fingimento poético, de acordo com as regras de conveniência social e da moda literária vinda da Provença. Retratam um sofrimento interior (coita de amor).

Geralmente é o próprio trovador quem confessa seus sentimentos, dirigindo-se em vassalagem e subserviência à dama (mia senhora ou minha senhora), e rendendo-lhe o culto que o "serviço amoroso" lhe impunha: as regras do "amor cortês", recebidas da Provença: o trovador teria de mencionar comedidamente o seu sentimento (mesura), a fim de não incorrer no desagrado (sanha) da bem-amada; teria de ocultar o nome dela ou recorrer a um pseudônimo, e prestar-lhe uma vassalagem que apresentava quatro fases: a primeira correspondia à condição de fenhedor, de quem se consome em suspiros; a segunda é a de precador, de quem ousa declarar-se e pedir; entendedor é o namorado; drut, o amante.

Segundo Moisés, “(...) O trovador, portanto, subordina todo o seu sentimento às leis da Corte amorosa, e ao fazê-lo, conhece das dificuldades interpostas pelas convenções e pela dama no rumo que a levaria à consecução dum bem impossível. Mais ainda: dum' bem (e "fazer bem" significa corresponder aos requisitos do trovador) que ele nem sempre deseja alcançar, pois seria por fim ao seu tormento masoquista, ou início dum outro maior. Em qualquer hipótese, só lhe resta sofrer, indefinidamente, a coita amorosa”.

O sofrimento segue uma ordem crescente, através das estrofes (cobra ou talho) sendo reforçado o estribilho ou refrão, onde o trovador pode rematar cada estrofe, reforçando a angustiante idéia fixa para a qual ele não encontra consolo.

Em síntese, nas Cantigas de Amor, o trovador destaca todas as qualidades da mulher amada colocando-se numa posição inferior (de vassalagem) a ela. A mulher é colocada num patamar elevado, idealizada, em geral por se encontrar em uma posição social superior. As cantigas de amor não possuem variedade temática, sendo a temática mais comum o amor não correspondido. Além disso, reproduzem o sistema hierárquico do feudalismo, pois o trovador passa a ser o vassalo da amada (suserana) e espera receber um benefício em troca de seus “serviços” (as trovas, o amor dedicado, o sofrimento pelo amor não correspondido).

Cantiga da Ribeirinha

(Paio Soares de Taveirós)

No mundo non me sei parelha
mentre me for como me vai,
cá já moiro por vós-e ai!
mia senhor branca e vermelha,
queredes que vos retraia
quando vos eu vi em saia!
Mau dia me levantei,
que vos entom no vi fea!
E, mia senhor, dês aquel di’, ai!
Me foi a mi mui mal,
e vós, filha de Don Paai
Moniz, e bem vos semelha
d’aver eu por vós guarvaia,
pois eu, mia senhor, d’alfaia
nunca de vós houve nem ei
valia d’ua correa.
- - - - - -
Tradução do Prof. Stélio Furlan (UFSC)
Cantiga do Ribeirinha

No mundo ninguém se assemelha a mim
enquanto a minha continuar como vai,
porque morro por vós, e ai!
Minha senhora de pele alva e faces rosadas,
quereis que vos retrate (que me afaste)
quando vos vi em manto! (na intimidade)
Maldito dia! Me levantei
que não vos vi feia!
E, minha senhora, desde aquele dia, ai!
Tudo me foi muito mal,
e vós, filha de Don Pai
Moniz, e bem vos parece
de ter eu por vós guarvaia,
pois eu, minha senhora, como mimo
nunca de vós recebe
algo, mesmo sem valor.

continua… Cantigas de amigo, de escárnio e maldizer

Fontes:
Célio Antonio Sardagna. Literatura Portuguesa. UNIASSELVI, 2010.
Massaud Moisés. A Literatura Portuguesa. SP: Cultrix, 2008.
Teófilo Braga. História da literatura portuguesa – Renascença. Lisboa: INCM, 2005. v. 2.
Imagem = não foi localizado o autor

Alberto Figueiredo Pimentel (O Avô e o Netinho)


Bastante velho já, fatigado por uma longa existência de trabalhos e canseiras, exausto de forças e doente na velhice, estava tio Benedito, o bom e estimado velhote tio Benedito: oitenta anos pesavam-lhe às costas, como um grande fardo que ele a custo carregasse.

Na sua mocidade, e mesmo durante parte da velhice, ninguém trabalhara mais que ele, honesto sempre, mourejando, dia e noite, para sustento de sua família. Não podendo fazer serviço algum, alquebrado pela idade, veio morar em casa de Augusto, seu filho mais moço, já com um filhinho de três para quatro anos, o pequenino e interessante Luís, vivo e esperto como poucos.

Velho e enfermo, qual estava, tio Benedito como que volvera à primeira infância; e, por isso, eram precisos inúmeros cuidados com ele, que mal se sustinha sozinho, trêmulo, muito trêmulo, quase sem poder andar. Quando se sentava à mesa, para o almoço e para o jantar, derramava sopa na toalha, quebrava pratos e copos, com as mãos fracas, como uma criança arteira e estouvada.

Augusto, e sua mulher, Henriqueta, aturavam-no com dificuldade, zangados, contrariados, aborrecidos principalmente com o prejuízo diário que o pai lhes dava. Afinal, não podendo mais suportar o velho, resolveram comprar uma cuia; e às horas das refeições sentavam-no no chão, perto da mesa dando-lhes a comida naquela tosca vasilha.

Quando Luisinho, o pequenino, viu que o avô não se sentava mais à mesa, ficou triste, mas não disse palavra. Estranhou aquilo porque a sua almazinha desabrochava formosamente para o bem; e se não manifestou a sua impressão, foi por supor que assim se fazia sempre com os velhinhos, que não se sentavam à mesa, nem comiam em pratos, como os outros.

O pequeno Luís era o único que verdadeiramente estimava o ancião, próximos entre si aquela primavera e aquele inverno, aquela criança e aquele velho, ambos na infância, ambos no crepúsculo da vida.

Dias depois, Augusto e Henriqueta viram o filho entretido a brincar com alguns pedaços de tábuas, um martelo e pregos, como não tinha por costume fazer.

A mãe, estranhando aquilo, perguntou:

– Que estás fazendo aí, Luisinho?

– Estou fazendo um prato, para dar de comer a papai e mamãe, quando eu for grande, e eles já estiverem velhinhos como vovô, respondeu ingenuamente a criança.

Henriqueta e Augusto entreolharam-se confusos, vexados e arrependidos da sua ingratidão, e de novo trouxeram o pai para se sentar à mesa, em sua companhia.

Desde então, trataram-no com todo o respeito, o desvelo e a consideração que os filhos devem aos pais.

Fonte:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da avozinha. RJ, 1896.

sexta-feira, 19 de junho de 2020

Varal de Trovas n. 297


Gustavo Barroso (O Batizado)


Entre as várias anedotas de caráter regionalista, que correm pelo sertão, ouvi, quando menino, centenas de vezes a seguinte:

Um vaqueiro foi à cidade de Quixeramobim, batizar uma filha de meses. Quando o padre lhe perguntou, junto à pia, qual o nome da menina, respondeu sem pestanejar, diante do espanto da assistência:

- Onça!

O sacerdote sacudiu a cabeça, pôs-lhe carinhosamente a mão no ombro, e disse-lhe que aquele nome era de um bicho feroz e não ficava bem numa criança, que, quando ficasse moça, seria alvo de risotas e chalaças, por causa do seu apelido.

- Mas eu quero! insistiu o vaqueiro.

O religioso fez outras considerações, a fim de demovê-lo, e terminou perguntando:

- Já viu alguém com nome de fera?

O matuto retorquiu, embatucando-o:

- E o Santo Padre não se chama Leão? Por que minha filha não se pode chamar Onça?

Esta historieta, que parece autóctone, é simplesmente a variante de um reconto peninsular europeu. Pode-se encontrá-la em outras regiões da América e em outra língua. Eu a li no curioso livro do grande escritor peruano Ricardo Palma - Mis últimas tradiciones:

"Tratava-se de cristianizar a um menino, e antes de leva-lo ao batismo, o cura apontava, na sacristia, os dados que consignaria mais tarde no livro paroquial.

- Que nome poremos ao menino?

- Por mim - contestou o pai, - ponha-lhe você Tigre.

- Não pode ser - arguiu o pároco.

- Pois então, ponha-lhe você Búfalo ou Rinoceronte.

- Tampouco pode ser! Esses são nomes de animais e não de cristãos.

- Não enrole, padre! Como o Papa se chama Leão?"

Esse pequeno conto, europeu de nascença, deu, entretanto, origem a um que é a expressão mais perfeita do espírito sertanejo do Nordeste. Vejamo-lo:

Ao perguntar-lhe o padre que nome queria pôr ao filho, já nos braços da madrinha, ao pé da pia, um vaqueiro lhe respondeu:

- Não sei bem, não, senhor; mas desejava um nome grande e bonito, um nome de encher a boca.

- Alexandre? lembrou o vigário.

- Não, senhor.

- Napoleão?

- Não serve, não, senhor.

- Heliodoro?

- Também não serve, seu padre.

- Então que nome há de ser?

O vaqueiro hesitou instantes e, depois, torturando nas mãos a aba do chapéu:

- Seu vigário, eu quero um nome que encha a boca da gente, um nome, assim como este, que ouvi outro dia: Amancebado!

Fonte:
Gustavo Barroso. O sertão e o mundo. RJ: Livraria Leite Ribeiro, 1923.
Obs.: A parte do conto peruano na versão original no livro de Gustavo Barroso está em castelhano, versão para o português por José Feldman.

Lóla Prata (Poetrix)


Surgiu em 1999 com a publicação do livro TRIX- Poemetos Tropi-kais, de Goulart Gomes, premiado com Menção Especial pela Academia Carioca de Letras e União Brasileira de Escritores - RJ, em 2000.

Terceto com título, com no máximo 30 sílabas métricas, criado por Goulart Gomes, de Salvador BA, em 1999. Com título. Rimas opcionais.

Diz Ana Maria de Souza Mello:

- Dou a mão à palmatória, muitos dos meus pretensos haicais são na verdade poetrix. Gosto de títulos, de rimas, de metáforas e retratos urbanos, encaixa muito bem no conceito de poetrix.

No poetrix as metáforas estão presentes e o poetrixta, transmite uma mensagem o mais completa possível, com o menor número de palavras.

Para mim poetrix é a alma, o coração, a essência de um poema grandão. Um poema que o poeta não escreveu e talvez nunca escreverá, mas se quisesse diria tudo girando em torno daquele terceto. Quando leio qualquer poema, o significado posso dizer em um poetrix.

Bom, todos os iniciantes em qualquer atividade cometem erros e com eles evoluem; não estou livre, assim apresento meus primeiros poetrix e aconselho; não tema, faça os seus.


Ana Maria de Souza Mello
CONSOLO

tenha certeza
as dificuldades da vida
serão tua fortaleza
- - - - - –

Ana Maria de Souza Mello
JURAMENTO

na saúde e
na doença, ou até
a primeira desavença
- - - - - –

Ana Maria de Souza Mello
BEIJO

beijo molhado
paixão e loucura
de um coração enamorado
- - - - - –

Ana Maria de Souza Mello
ROMANCE ACABADO

beijo distraído
cumpre a rotina
de um amor perdido
- - - - - –

Ana Maria de Souza Mello
CASAMENTO

a aliança apertada
no dedo mostra
uma imagem na alma calada
- - - - - –

Lóla Prata
FERMENTO

Levede a alma o que vale a pena
e torne leve como pena
a pena de abandonar esta vida.
- - - - - –

Lóla Prata
SERENIDADE

Navego no silêncio dos corpos
sobre as ondas de desamor
e nas marolas de esperança.
- - - - - –

Lóla Prata
POESIA I

O jogral se inflama
e a lágrima se derrama
quando o coração derrete.
- - - - - –

Lóla Prata
MIGUEL

Um amado trovador
de verdes olhos faiscantes
salpica flores dentro de mim...
- - - - - –

Goulart Gomes
A VIDA É BELA

assim me diz o destino:
antes viver, velho
que morrer, menino
- - - - - –

Goulart Gomes
DOIS PRA LÁ

na pista ou na cozinha
mulheres bonitas
não dançam sozinhas
- - - - - –

Goulart Gomes
CISMA NO PARAÍSO

entre um e outro escarro:
– a muié é clone do home?
– o home é clone do barro?
- - - - - –

Goulart Gomes
POETRIX AOS MESTRES:
VINICIUS

que seja infinito
a gota que nos lava
o eco daquele gemido
- - - - - –

Goulart Gomes
POETRIX AOS MESTRES:
CECÍLIA

nem alegre nem triste: rosa
o verso que nos sustenta
a poesia resiste, e a prosa
- - - - - –

Goulart Gomes
POETRIX AOS MESTRES:
AUGUSTO

toma poeta, esta caneta, e corta,
que o pergaminho sangra azul;
nossa arte é nossa aorta
- - - - - –

Goulart Gomes
DE BAIXO

apaguem o dragão
calem a esfinge
o que vem de baixo, atinge
- - - - - –

Álvaro Posselt
PURIFICAÇÃO

A vida tem essa pressa
Mesmo sem pecar
a gente se confessa
- - - - - –

Álvaro Posselt
PORTABILIDADE

A vida é duradoura
Pra falar com Deus
só com outra operadora
- - - - - –

Álvaro Posselt
UM TERÇO DE CULPA

com prosa não me meto
quando quero confessar
eu rezo um terceto

Fontes:
Lóla Prata. E eu sei fazer versos? Bragança Paulista/SP: ABR, 2011.
Poetrix de Goulart Gomes obtido em: Goulart Gomes. Minimal. Salvador/BA: Copygraf, 2007.
Poetrix de Álvaro Posselt obtido em: Goulart Gomes (org.). 501 Poetrix para ler antes do amanhecer. Lauro de Freitas/BA: Livro.com, 2011.

Os três livros foram enviados pelos respectivos autores.

Astúria Vasconcelos (Vinte Minutos)


Com a semana lotada, conseguiu vinte minutos para ir ao supermercado, no início da noite de sexta, no fim de semana do dia dos pais. Teve dificuldade para encontrar uma vaga que não fosse no fim do mundo. Para conseguir um carrinho de andar duplo, dos pequenos, esboçou rosnar a uma mulher com olheiras iguais às suas.

Em frente a uma pilha de pepinos, enxergou a fila do pão, maior que a de um show de rock internacional, porém com gente que não sorria nem estava com sua turma de amigos. Desistiu de encarar, foi aos pães de sanduíche industrializados, enriquecidos com ferro e zero por cento de adição dessas gorduras que matam.

Passou reto pelo freezer de bebidas geladas e desviou perigosamente dos que portavam sacos de carvão e bandejas de carne. Tomou o rumo oposto aos carrinhos com bebês e suas mães jovens, com a pele e a cintura intacta, e seus pais igualmente lindos, de barba estilosa e desenhada, plantados no meio do corredor, com todo o tempo do mundo. Fingiu não conhecer a colega de trabalho, pois além do assunto infame, não podia atrasar.

O pit stop final, no corredor de guloseimas, foi o que a intrigou. Duas funcionárias contavam a vida uma à outra, a revelia da urgência dos clientes e do patrão. Tentou alcançar a bolacha preferida do filho, com recheio de chocolate, mas o carrinho de abastecimento onde as duas se apoiavam, sorridentes, estava estacionado em frente. Empurrou, pediu ajuda à funcionária, que não a ouviu, ocupada relatando o novo amor.

- Ele me ajuda a criar, busca na escolinha, dá banho, brinca com ele, meu filho até chama de pai.

- Que bacana, tem que ser assim mesmo, afinal pai é quem cria, né.

Ficou com inveja daquelas duas, primeiro por estarem calmas no olho do furacão. Segundo, por uma delas ter um bom companheiro, algo que ela própria não conseguia por mais que tentasse. Sem refletir, invadiu a conversa:

- Se o pai é quem cria, então geralmente o pai é a mãe.

Recebeu o sorriso cúmplice das funcionárias e foi-se, decidida, em prol da dieta dos filhos, sem o tal biscoito, para a fila do caixa. Pois se o pai é a mãe, e se a mãe tem que ser também o pai, acabou-se hoje mesmo o lanche com bolacha recheada, nada saudável e fora dos limites do seu orçamento doméstico de mãe solo. Foi a única a sorrir durante a demora da fila, seu dia dos pães (pai+mãe) seria fenomenal.

Fonte:
Ebook Dia dos Pais. Editora Metamorfose. Disponível em Escrita Criativa

quinta-feira, 18 de junho de 2020

Varal de Trovas n. 296


A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) Baile Pé no Chão


Sempre que revejo algum daqueles filmões que mostram como era a vida no velho oeste norte-americano, vem-me à memória a Maringá pioneira das duas primeiras décadas – anos 1940 e 1950. Pouco mais que um vilarejo cercado de matas e cafezais por todos os lados. Gente vinda das mais diferentes origens, misturando costumes, sotaques, projetos de vida.

Naquele cenário rústico viviam as primeiras esperançosas famílias da comunidade nascente. Mas o que faziam aqui os valentes desbravadores, além de dar duro na roça ou no comércio em busca de oportunidades para garantir o pé-de-meia?

Havia uns três cinemas que exibiam fitas novas cada noite, havia uma estação de rádio com animados programas de auditório, havia alguns bares e sorveterias.

Havia até onde dançar: o Aero Clube, um espaçoso salão de madeira, que ficava na Avenida São Paulo, ao lado do bosque que futuramente viria a ser o Parque do Ingá. Bem ali onde está hoje o supermercado Mufato Gourmet.

Tinha matinê dançante todo domingo à tarde e “baile oficial” uma vez por mês. A música era costumeiramente da orquestra do Penha ou do Britinho e seus Cometas, mas em ocasiões especiais, como os bailes de debutantes, vinha orquestra de fora, como a de Nélson de Tupã ou a de Severino Araújo, do Rio de Janeiro. As moças iam de vestido chique e os moços de terno e gravata, coisa fina. Os advogados promoviam ali o Baile do Rubi. As escolas as festas de formatura. Muitos dos primeiros casamentos entre jovens maringaenses resultaram do namoro iniciado ao som de um bolero dançado de rosto colado no velho e bom Aero.

O problema era quando chovia. Como não havia nenhuma rua asfaltada ou calçada na cidade e o barro era farto e grudento, homens e mulheres iam para o baile com os pés no chão, levando os sapatos numa sacola. Chegando ao clube, entravam por um portão lateral. No fundo do salão, junto às quadras de basquete e vôlei, havia um tanque comprido, onde todos lavavam os pés antes de colocar os calçados para entrar na pista de dança.

Nos dias secos era um pouco diferente. O pessoal chegava com os sapatos nos pés, mas levando na sola a poeira vermelha das ruas. Daí que várias vezes durante a noite o baile era interrompido para que os funcionários jogassem água no salão a fim de baixar o pó. O legal era que ninguém reclamava. Era o jeito de ser da vida pioneira e todo mundo se adaptava.

O Aero Clube e seu vizinho Grêmio dos Comerciários foram os pontos de encontro, festa e namoro da população local até a virada dos anos 1950 para a década de 1960. Nesses dois salões se reuniam democraticamente todas as faixas da sociedade. A mudança começou a partir da criação de outros clubes, mais modernos, mais completos, e por isso também mais caros: Maringá Clube, Country, Hípica, Olímpico. O pioneirismo acabou ali, dando lugar à formação de uma grande aglomeração urbana igual a tantas outras.

(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 11-6-2020)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

IV Concurso de Trovas de São José dos Campos/SP (Trovas Premiadas)


HOMENAGEM A POETISA MARIA DIVA FONTES RICO

 

Língua Portuguesa – Tema: Violino



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VENCEDORES (por ordem alfabética)
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01.
EDMAR JAPIASSÚ MAIA
Miguel Pereira/RJ

Tons de violinos e de harpas,
solando nossas canções,
expelem do amor as farpas
que ferem os corações...
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02.
FLÁVIO LEVY
Campinas/SP

Só quando em meu ombro encostas
neste momento divino,
que ouço músicas compostas
por mestres do violino.
- - - - - -

03.
JAQUELINE MACHADO
Cachoeira do Sul/RS

O ressonar do violino,
nos anunciando o Natal,
é sinal que Deus-Menino,
vai levando todo o mal!
- - - - - -

04.
JORGE RIBEIRO MARQUES
Rio de Janeiro/RJ

Ao ouvir o teu violino
Perco o rumo  e a razão,
Suas cordas, bento destino,
Prendem forte o coração.
- - - - - -

O5.
JOSÉ ALMIR LOURES
Astolfo Dutra/MG

Da despedida da gente,
a lembrança que me resta,
é um violino plangente,
dizendo-me: - fim de festa.
- - - - - -

06.
JOSÉ MANUEL VELOSO GALVÃO
São Paulo/SP

Tuas cordas, dor sentida,
sei que choram, Violino...
Dor, em tons de despedida,
que há na pauta do Destino.
- - - - - -

07.
MARIA HELENA URURAHY CAMPOS DA FONSECA
Angra dos Reis/RJ

Tão longe, triste, soava
aquele som cristalino...
Era a saudade, chorava,
nas cordas do violino.
- - - - - -
                          
08.
MARÍLIA OLIVEIRA
Porto Alegre/RS

Tomba a árvore... Eis o impasse:
(quão singular seu destino)
seu corpo, ao morrer, renasce
no corpo de um violino.
- - - - - -

09.
MAX REIS
Belém/PA

Arco de crina o destino
nunca me fez a vontade.
Tira do meu violino
uma canção de saudade.
- - - - - –

10.
MESSIAS DA ROCHA
Juiz de Fora/MG

Num concerto imaginário,
o sabiá na alvorada
é um violino solitário
na orquestra da passarada.
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Idioma Espanhol – Tema: Violino

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VENCEDORES
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DELIA ESTHER FERNÁNDEZ CABO
Santa Lucía/Uruguay

El violín yace a la espera
de los brazos de María
que alzó en letras la bandera
del amor y la hidalguía.
- - - - - -


LIBIA BEATRIZ CARCIOFETTI
Santiago del Estero/Argentina

Cada cuerda del violín
es un pájaro que canta,
la leyenda es del crespín
que se ahoga en mi garganta...


FRANCISCO JAVIER LÓPEZ NARANJO
Apía, Risaralda/Colombia

El concierto de un violín,
cual la vida, ríe y llora.
Es canto de un serafín
o del caído que implora.
- - - - - -


VENANCIO CASTILLO
Caracas/Venezuela

Cuando vibran los sonidos
de tu mágico violín
acarician mis sentidos
en un éxtasis sin fin.
- - - - - –


SUSANA ANGÉLICA ORDEN
Buenos Aires/Argentina

El violín está tocando
la más bella melodía
y las almas van danzando,
al compás de su armonía.
- - - - - -


LUIS ENRIQUE FERNÁNDEZ RUIZ
Chiapas/México

Con mi traje de Arlequín
y un tricornio en la cabeza,
ejecutando un violín
elimino la tristeza.
- - - - - -


VICTORIO PEDRO CHA BANCHERO
Solís de Mataojo/Uruguay

Suena un violín armonioso
en el dulce atardecer;
hechicero  prodigioso,
colma mi alma de placer.
- - - - - -


SERGIO MEZA CARRASCO
Chillán/Chile

Orquesta la vida toca
el violín hace su entrada,
del universo es su boca
de los ángeles su espada.
- - - - - -


PASCUAL CLEMENTE TOLEDO
Chiapas/México

No temas, que sepa al fin
que busco discreto el llanto,
en las venas de un violín,
que asimila mi quebranto.
- - - - - -

10º
ADELINA DIAZ ROLDAN
Santiago del Estero/Argentina

En mi pago cuando suena
de un violín, la melodía,
la gente olvida su pena
¡ Y la troca en alegría !

Os nossos agradecimentos aos senhores trovadores, coordenadores e julgadores; sem ao quais, este concurso não teria o sucesso que teve.
Que Deus Continue a abençoar a nossa amizade.
Maria Inez Fontes Ricco (MIFORI)
Presidente da União Brasileira de Trovadores
Seção de São José dos Campos – SP – Brasil.

Fonte:
Resultado enviado por MIFORI

Aparecido Raimundo de Souza (Baile a Caráter)


O Valadares foi convidado pelos amigos da faculdade, para ir a um baile a fantasias que seria realizado naquele final de semana, numa pequena cidade perto de onde morava. Da sua casa, até o evento, precisaria pegar a rodovia e andar uns duzentos quilômetros. Assim pensando, achou por bem usar uma fantasia diferente, algo que, a seu modo de pensar, abafaria os colegas, fazendo com que todos olhassem para ele com um misto de admiração e espanto, notadamente as garotas. Na sexta-feira, foi ao shopping e alugou, numa loja especializada, algo sensacional. Uma fantasia do demônio. No dia aprazado, se vestiu, ou melhor, se fantasiou de diabo, com rabo, chifre, tridente, capa preta e tudo o que  tinha direito o senhor das profundezas. Totalmente transformado, pegou seu carro por volta das dezoito horas e se pôs a caminho.

Como não conhecia bem o pequeno patrimônio onde a sua turma realizava o folguedo, e depois de rodar uns oitenta quilômetros, chegou a um cruzamento onde, além da BR principal, duas outras estradas  secundárias se abriam para diferentes direções.  Sem placas de indicação, assinalando onde se achava, ou por qual trilho se embrenhar, resolveu pegar a via de terra à direita. Menos de meio quilômetro, avistou, algumas luzes, certamente de residências.  À medida que se aproximava, frenteou com uma torre de antena de  transmissão de telefonia. Sorriu, faceiro. De repente, estava indo para o lugar certo, ou até já houvesse chegado. Deu de cara com uma comunidade pequena, onde se contava uma dúzia de casas ladeadas por uma única avenida principal toda paralelepipedeada. Parou o carro e resolveu pedir informações.

Aconteceu que, naquela hora, quase oito e pouco da noite, todos os  habitantes assistiam a missa de domingo, com exceção de alguns gatos pingados,  a maioria moradores sem teto que dormiam na pracinha e no coreto em frente a uma pequena paróquia. Valadares abordou uns três ou quatro casaiszinhos de namorados, entretanto, nenhum (talvez levados pela sua aparência macabra) soube, ou se prestou a indicar o vilarejo que buscava. Não lhe restou alternativa, se vendo obrigado a ingressar na igreja. De longe, enquanto caminhava para ela, percebeu que a peça religiosa estava superlotada. De fato, não se enganara. Nos sábados e domingos, o vigário costumava sair da rotina, se estendendo um pouco além, no sermão, visando, claro, o desfecho da liturgia, quando os coroinhas passariam as sacolas para a recolha das ofertas, que se tornavam gordas em face de um número de fiéis que se deslocavam de localidades às mais diversas, e também dos sítios e fazendas que abundavam àquelas redondezas.

Entretanto, o inesperado tomou forma gigantesca. Quando Valadares adentrou pela porta principal, com suas botas rangendo de modo esquisito, os presentes, ao olharem para trás, deram com a visão asselvajada da besta dos quintos em carne e osso. Literalmente o pacato culto religioso se transformou num “reboliço dos infernos”. Como num abrir e fechar de olhos, caiu sobre a paz acolhedora daquelas pessoas humildes, uma espécie de premonição, como se Deus tivesse anunciado o fim do mundo num Apocalipse  abrupto.

Por conta desse imprevisto, uma parte da igreja saiu correndo pelas laterais, outra fração quebrou os vidros e pulou pelas janelas. Uma terceira corrente de amedrontados se debandou para a sacristia, fugindo pelos fundos. Mesmo norte, as beatas e os acólitos, não esperaram para ver o que viria pela frente. Igualmente tomadas pôr idêntico pânico, e no mais completo desespero, derrubaram, no furdunço, uma imagem de São Jorge com seu cavalo e tudo o que estava sendo restaurado dentro da sacristia. A barafunda se fez tão forte e pesada, tão densa e sem noção, que o dragão que se via fustigado pela lança do santo guerreiro, tratou de dar no pé, voltando, às pressas, para os confins da Capadócia.  

Loucura total. Em questão de segundos, meio do pandemônio, restou o padre rezando e tremendo pior que caniço ao sabor da ventania, metido dentro da casinha do confessionário. “O diabo”, sem entender bulhufas, se aproximou do aterrorizado sacerdote.  O sujeito, coitado, sem saída, se urinando todo e, aos prantos, as mãos em atitude de prece  e, claro, não vendo escapatória para a sua desdita, olhou para o “capiroto”  e implorou:

- Não me leve não, seu Capeta! Pelo amor do Pai Eterno... Tenha piedade desta pobre e humilde alma. Todo mundo aqui, o senhor pode perguntar... Todo mundo aqui está de prova que eu sou o único que defende o senhor.          

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

quarta-feira, 17 de junho de 2020

Varal de Trovas n. 295


Antonio Roberto de Paula (Mary Ingá)



Minha cidade ficou chique. Está falando inglês, espanhol, italiano e alemão. Meu povo está nas colunas sociais, bate pernas para o exterior, dirige carros importados e toma banhos de mar e de lojas. Minha cidade está se achando. Meu povo sabe receber como ninguém, tem etiqueta, abre as portas das mansões nos domínios da zona sul para a leva de emergentes.

Minha cidade tem pose e posse. Minha cidade está podendo. A moda de São Paulo, Nova York e Paris já desfila por aqui. Ternos italianos, sapatos de cromo alemão, cuecas francesas, camisetas e tênis de marca. Vestidos das passarelas também esvoaçam por aqui. Meu povo tem poder, influência e dinheiro.

Meu povo faz lipo, peeling e aplicações de botox. Está magro, bonito e esticado. Meu povo está sarado e elegante. Meu povo é fino, tem classe, anda ereto. Tem cartão de crédito para comprar e .se tratar. Minha cidade é quase Dallas, como a colunável dizia depois de surtos américo-megalomaníacos.

E como o meu povo está comendo bem! O povo da minha cidade come diversificado e sofisticado. Aqui ou em qualquer outra capital. Rapidinho. É só entrar no avião. Vupt e meu povo já chegou em outro céu forrado de arranha-céus para comer, beber, dormir, festejar. Como meu povo circula com desenvoltura!

Como é progressista o meu povo! Minha cidade agora está no circuito dos grandes eventos artísticos e culturais. Minha cidade tem casas de espetáculos para o meu povo se divertir, adquirir conhecimento, ficar intelectualizado. Já não existe distância entre o meu povo e o resto do mundo. Minha cidade é antenadíssima com o planeta. Minha cidade, que já não é tão minha, que já foi tão nossa, entrou no ritmo da globalização.

Fonte:
Antonio Roberto de Paula. Da minha janela. Maringá/PR: Gráfica Sthampa, 2003.

Fernando Sabino (O Dia da Caça)

 
A caçada estava marcada para as 7 horas. Desde as 6, porém, Paulo e eu já estávamos  de  pé, aguardando a chegada de seu Chico Caçador.

- Seu Chico vai trazer as espingardas?

- Vai. E cachorro também.

- Cachorro? Para que cachorro?

Olhei com pena meu companheiro de aventura:

- Onde você já viu caçada sem cachorro, rapaz?

-  Ele disse que hoje vai ser só passarinho.

- Passarinho para ele é codorna, macuco, essas coisas...

Em pouco chegava seu Chico, todo animado:

-  Tudo  pronto, meninos?

De pronto só tínhamos o corpo. Seu Chico trazia atravessadas às costas duas espingardas  de caça e usava um gibão de couro, uma cartucheira, vinha todo fantasiado de caçador. Ao seu redor  saracoteava um cachorro: - O melhor perdigueiro destas redondezas.

Na varanda da fazenda, seu Chico se pôs a encher os cartuchos, meticulosamente, usando para isso uns aparelhinhos que trouxera, um saquinho de pólvora, outro de chumbo:

- Vai haver codorna no almoço para a família toda - dizia, entusiasmado.

Despedimo-nos comovidos da família e partimos através do  pasto.

Seu Chico, compenetrado, ia dando instruções, procurando impressionar:

- Parou, esticou o corpo, endureceu o rabo? Tá amarrado. É só esperar o bichinho voar e tacar fogo!

- Seu Chico, nós não vamos passar perto daquele touro, vamos?

- Aquele touro é uma vaca.

A vaca levantou a cabeça e ficou a olhar-nos, na expectativa.

- Por via das dúvidas, me dá aí essa espingarda.

Fomos passando com jeito perto da vaca.

- Bom-dia, disse  eu.

- Buu - respondeu ela.

Ao sopé do morro o cachorro se imobilizou.

- É agora! Me dá aqui a espingarda!

- Fiquem quietos – comandou seu Chico, num sussurro.

- Que foi, seu Chico? Não estou vendo nada...

        Alguma coisa deslizou como um rato por entre o capim rasteiro, levantou voo espadanando as asas.

- Fogo! Fogo!

Paulo atirou na codorna, eu atirei em seu Chico.

- Cuidado!

- Que bicho é esse?

Seu Chico suspirou, resignado:

- Era uma codorna. Não tem importância... Olha, quando atirar outra vez, vira o cano pro ar. O chumbo passou tinindo no meu ouvido.

No ar ficaram apenas duas fumacinhas. Fomos andando, seu Chico carregou  novamente  nossas  espingardas. Assim que o cachorro se imobilizava, ficávamos quietos, farejando ao redor, canos para o ar.

- Vira isso pra lá!

- Agora! Fogo!

Mal tínhamos tempo de ver uma coisa escura desaparecer no céu, como um disco voador.

- Assim também não vai, seu Chico. Não dá tempo...

- Me dá aqui essa espingarda. Deixa eu matar a primeira para mostrar como é que é.

Andamos o dia todo pelo pasto. Nada de caça.

- Nem ao menos uma codorninha – suspirava seu Chico, quando o sol começou a dobrar o céu.

- Tem dia que eu mato mais de quinze macucos.

Andando, subindo morro, saltando cerca, atravessando valas, pisando em barro, escorregando no capim. O estômago começou a doer.

- Seu Chico, o melhor é a gente desistir. Estamos com fome.

- Hoje no jantar vocês comem perdiz. Ou eu desisto de ser caçador.

Sua honra estava em jogo. A tarde avançava e seu Chico perscrutando o pasto, açulando o cachorro. Paulo, sentado  num  toco  – desistira de andar: tirara o sapato e coçava o dedão  do  pé. Resolvi também fazer uma parada para caçar  carrapatos.  Seu  Chico  desapareceu numa dobra do terreno. De repente, pum! pum! era o caçador solitário. Teria acertado desta vez? A vaca de novo. Vinha vindo pachorrentamente pela picada aberta por ela própria.

- Cuidado, Paulo! Preveni. - Olha a vaca.

Paulo se voltou para a vaca, que já ia passando ao largo:

- Buuu! fez com desprezo.

A vaca se deteve, voltou-se nos flancos e de súbito disparou num pesado galope em sua direção. Paulo deu um salto, abriu a correr, passou por mim como um raio:

- Foge! Foge!

Atrás de nós a terra estremecia e a vaca bufava, escavando o chão com as patas.

- Seu Chico! Socorro!

Em poucos minutos e aos saltos, escorregadelas, trambolhões, cruzamos o terreno que leváramos toda a manhã a conquistar. Já na porteira da fazenda, nos voltamos para ver a vaca, que ficara para trás, entretida com uma touceira de capim.

- Devo ter falado algum palavrão em língua de vaca.

Em pouco regressava seu Chico, cabisbaixo, desmoralizado, quase chorando:

- Errei até em anu.

Procuramos consolá-lo:

- Um dia é da caça e outro do caçador, seu Chico.

Deixou conosco as espingardas e foi-se pelo pasto mesmo, evitando a fazenda e o opróbrio aos olhos dos moradores. Paulo e eu  nos coçávamos, sentados no travão da cerca, quando ambos demos um grito:

- Epa! Que é aquilo?

- Você viu?

Uma caça, uma caça enorme! Um gigantesco galináceo que ao longe ganhava o morro em disparada, sumindo ali, surgindo lá uma cegonha?

- Cegonha nada! Uma avestruz!

Saímos como loucos em perseguição da avestruz. Nas fraldas do morro disparamos o primeiro tiro.

- Socorro! berrou a avestruz.

Deu um salto e abriu fuga com suas pernocas longas, morro acima. Ah, se seu Chico nos visse agora!

- Pum!

- Socorro!

E a ave pernalta fugia espavorida, escondendo-se na vegetação. Íamos no seu encalço, implacáveis.

Pum! - trovejava a espingarda.

- Não! Não! - implorava a avestruz na sua fuga, largando penas pelo caminho.

A noite veio surpreender-nos do outro lado do morro, já às portas  da  cidade. Voltamos  para a fazenda estropiados, roupas rasgadas, sapatos pesados de barro. Fomos recebidos  com alegre expectativa:

- E então? Caçaram alguma coisa?

— Com seu Chico, nem um passarinho. Mas depois que ele foi embora quase  apanhamos uma caça esplêndida, uma avestruz  deste tamanho...

O dono da fazenda pôs as mãos na cabeça:

- Minha siriema, que eu mandei vir da Argentina!

Imagine o susto da coitadinha!

Embarafustamo-nos pela cozinha, completamente derrotados.

- Que vamos ter hoje no jantar? perguntei à cozinheira.

- Galinha ao molho pardo.

- Já matou?

- Não.

Empunhei a espingarda com decisão e voltei-me para o galinheiro, mas Paulo cortou-me os passos:

- Não faça isso! O crime não compensa.

E propôs que na manhã seguinte saíssemos para caçar borboletas.

Fonte:
Fernando Sabino. A Companheira de Viagem. RJ: Sabiá, 1972.

segunda-feira, 15 de junho de 2020

Varal de Trovas n. 294


Alaíde Lisboa (O Espelho, a Bota e a Rosa)


Era uma vez um rei que tinha uma filha muito bonita. Muitos príncipes queriam casar-se com aquela princesa tão bonita. Dentre os príncipes, três eram belos, bons e ricos.

O rei não sabia como escolher o melhor dos três para se casar com a filha. Resolveu, então propor aos príncipes que lhe trouxessem três presentes; e o príncipe que conseguisse trazer o presente de mais valor receberia a linda princesa em casamento.

Os três príncipes aceitaram a proposta do rei e partiram.

Na primeira encruzilhada, antes de tomarem rumo, combinaram que na mesma encruzilhada se encontrariam na volta de três meses depois.

O príncipe mais velho dirigiu-se a uma antiga cidade e, por cúmulo da sorte, logo na entrada viu e ouviu um menino gritando:

— Quem quer comprar um espelho mágico? Quem quer comprar um espelho mágico? Quem quer comprar um espelho mágico?

O príncipe aproximou-se do menino e perguntou:

—Qual o poder do espelho mágico?

O menino respondeu:

—O espelho mágico tem o poder de refletir tudo que se passa em qualquer parte do mundo.

O príncipe comprou o espelho e pensou:

— Com esse presente eu me casarei com a linda princesa.

O segundo príncipe dirigiu-se a outra antiga cidade e, por cúmulo da sorte, logo na entrada viu e ouviu um menino gritando:

— Quem quer comprar uma bota mágica? Quem quer comprar uma bota mágica? Quem quer comprar uma bota mágica?

O segundo príncipe aproximou-se do menino e perguntou:

— Qual é o poder da bota mágica?

O menino respondeu:

— A bota mágica tem o poder de levar a pessoa ao lugar que quiser na hora em que quiser.

O segundo príncipe comprou a bota e pensou:

— Com esse presente eu me casarei com a linda princesa.

O príncipe mais novo dirigiu-se a outra cidade, antiga também, e, por cúmulo da sorte, logo na entrada viu e ouviu um menino gritando:

— Quem quer comprar uma rosa mágica? Quem quer comprar uma rosa mágica? Quem quer comprar uma rosa mágica?

O príncipe mais novo aproximou-se do menino e perguntou:

— Qual é o poder da rosa mágica?

O menino respondeu:

— Essa rosa tem o poder de dar vida a quem estiver morrendo.

O príncipe mais novo comprou a rosa mágica e pensou:

— Com essa rosa mágica eu me casarei com a linda princesa.

No dia marcado, os três príncipes se encontraram na encruzilhada.

O príncipe mais velho mostrou aos outros o espelho mágico, e, como desejassem todos ver a princesa distante, o espelho refletiu, na mesma hora, no quarto do palácio, a princesa deitada, como se estivesse para morrer.

O segundo príncipe mostrou a bota que fazia viagens longas rapidamente e convidou os outros a irem com ele para o palácio. Num instante os três príncipes chegaram ao palácio do rei e rodearam a cama da linda princesa quase morta.

O príncipe mais novo aproximou do rosto da princesa a rosa mágica. Ao sentir o perfume, a princesa abriu os olhos, sentou-se e sorriu como se nunca estivesse perto da morte.

Tornou-se difícil escolher o príncipe que deveria casar-se com a princesa. Sem o espelho, sem a bota e sem a rosa, a linda princesa não viveria.

O pai deixou, então, que a filha mesma escolhesse de acordo com o seu coração. E ela escolheu o príncipe mais novo, o príncipe da rosa.

Mas havia também no palácio mais duas lindas princesinhas, sobrinhas do rei. A mais velha casou-se com o príncipe mais velho. A segunda casou-se com o segundo príncipe.

E foi linda a festa dos três casamentos.

Fonte:
Alaíde Lisboa de Oliveira. Histórias que ouvi contar. SP: Editora Peirópolis. Enviado por Leandro Bertoldo disponível em Árvore das Letras