segunda-feira, 15 de junho de 2020

Aparecido Raimundo de Souza (Público Seleto)


Rego Penteado da Silva Buscapé tocou a campainha e esperou que a moça loira de olhos verdes trajada elegantemente numa blusa laranja sem mangas e sainha azul, curtinha (que divisava através da porta envidraçada) se levantasse da mesinha da recepção e acorresse atendê-lo. Tímido até dizer chega, em face de ser zarolho de nascença, não sabia explicar como chegara até ali e, pior, onde arranjara uma boa dose de coragem para enfrentar a jovem que sorria, os dentes brancos e bonitos contrastando com uns lábios maravilhosos. Sem falar na mãozinha delicada indicando, mesureira, um lugar na poltrona enorme de couro vermelho vinho:

— Bom dia, cavalheiro. Meu nome é Flávia. Queira entrar e se acomodar, por gentileza.

Ele obedeceu um pouco desconcertado e sem graça. Mas se manteve firme. Não podia simplesmente dar meia volta e correr:

— Pois não, em que posso lhe ajudar?

— Dona Flávia, é sobre o anúncio.

— O senhor veio indicado por alguém?

— Sim.

— Por quem?

— Por mim mesmo.

Flávia voltou a sorrir com o mesmo entusiasmo de antes:

— Viu nossas chamadas nos jornais?

— Nem sabia que vocês haviam colocado!

— Tudo bem. Como chegou até aqui?

Rego Penteado da Silva Buscapé apertava as mãos, nervoso. Sua tremedeira pulava como um canguru desassossegado. Logo estaria suando frio:

— Ia passando e vi a tabuleta.

— A placa?

— Isso. A placa.

— Já conhece nossos serviços?

— Não, não conheço. Gostaria que a senhora...

— Senhorita...

— Desculpe, senhorita.

— Assim está melhor. Aceitaria uma água gelada, um café ou um suco?

— Os dois primeiros. Se não for incômodo.

— Será um prazer.

Flávia se enveredou por uma porta e, minutos depois, retornou com um copo d’água e uma xícara de café, numa bandeja de aço inoxidável quadrada. Rego Penteado da Silva Buscapé virou o líquido de uma só vez. Fez o mesmo com o café. Uma espécie de choque elétrico circulava por toda a espinha. Logo se transformaria em medo gritante:

— Como é seu nome?

— Rego Penteado da Silva Buscapé. Buscapé tudo escrito junto...

— Muito bem, seu Rego Penteado. Posso lhe chamar assim...?

— Prefiro Buscapé.

— O senhor aceita mais água, outro café?

— Não, senhorita. Estou satisfeito. Com relação a como me chamar, prefiro ser tratado como Buscapé, sem o tracinho separando o Busca do pé. É menos feio. E por tudo quanto é sagrado, esqueça o seu e o senhor.

— Seu Rego, o senhor... Você quer dizer que o Buscapé é pouco usual. Acertei?

— Penso diferente da senhorita. Diria que é horrível...

— Não. Não é! Apenas um pouquinho destacado ou divorciado dos sobrenomes habituais.

— Prefiro que a senhora... Que a senhorita me chame de Buscapé. Sem o tracinho separando o Busca do pé.

— Eu poderia optar?

— Para quem?

— Não entendi!

— A senhorita falou em apitar. Vai apitar para quem?

Flávia sorriu com vontade, se desfazendo inteira em seu momento mais deslumbrante e encantador. Fora isso, irradiava felicidade por todos os poros. Soletrou vagarosamente, letra por letra (O... PE... TE... A... ERRE), fazendo biquinho: — O... P... T... A... R...

— O que é isso?

— Optar significa escolher. Posso escolher?

— Escolher o quê?

— Entre lhe chamar de Rego, de Penteado ou só de Buscapé:

— Ah, claro. E como faria tal coisa?

— Simples. Chamarei o senhor... Você de Penteado. Não cairia ou não soaria mais elegante?

— A senhorita tem razão!

— Pois bem, seu Penteado. O senhor... Você já tem uma ideia pré-determinada do que ela vai vestir?

— Senhorita Flávia, ela quem?

— Ué! A sua noiva...

— Vocês não arranjam?

— Claro que arranjamos, porém o senhor... Você ou ela, ou os dois, terão que nos informar como será o modelo. Sugiro uma listinha básica... Olhe ao seu redor. Observe que temos um vasto mostruário a inteira disposição de sua futura esposa...

Penteado coçou a cabeça. O coração, dentro do peito, batia descompassado. O suor escorria e empapava a camisa. Nessas horas, seu olho torto criava uma espécie de morcego irrequieto sobrevoando seu medo com premonições apocalípticas. 

— Para mim a garota pode ser e vir de maneira bem simples. Não faço muita questão. O que importa é o recheio, o conteúdo...

— O senhor... Você é muito espirituoso. Quer uma noiva vestida simploriamente, porém com elegância e garbo. Leve em conta que toda prometida deseja ostentar pompa, luxúria, soberba, chamar, enfim, a atenção. E aqui, meu prezado, ela se sentirá uma rainha:

— Olhe, se ela pudesse vir sem nada... Eu adoraria...

Flávia se desmanchou de novo em sorrisos de alegria e felicidade. Via naquele cliente aparentemente besta e débil de espírito, um “pato” em potencial. Bateria a meta de vendas sem fazer esforço. Quando as outras duas vendedoras chegassem do almoço, ela estaria comemorando o sucesso:

— Qual a sua idade?

— Vinte e dois anos.

— E a sua eleita?

— Eleita? Que eleita?!

— Sua namorada.

— Acho que aí pela casa dos vinte.

— Bem, toda mulher nessa idade, seu Penteado... Gosta de casar de branco, de véu e grinalda, muitas flores no altar, daminhas carregando as alianças, uma porção de padrinhos no púlpito, latinhas vazias amarradas no para-choque traseiro do carro. Essas coisinhas bobas que deixam marcas profundas para o resto da vida. O senhor... Você não irá querer decepcionar sua amada no dia mais feliz de toda a sua vida. Aliás, seu... Aliás, Penteado, saiba, de antemão, que casar com elegância e glamour, é o sonho de todas nós.

— Entendo! Senhorita Flávia, o que eu quero saber, em resumo, é o seguinte: como é que vocês arranjam...?

— O senhor... Você pode sugerir, escolher, dar palpites desde o vestido aos sapatos...

— Sei, sei. E quanto à garota?

— Que garota?

— A que vocês vão providenciar para mim?

— Pois é como eu acabei de explicar. O senhor... Você escolhe ou os dois, em conjunto, e procuram chegar a um consenso.

Penteado permaneceu um tempo olhando para uma dezena de manequins ricamente vestimentados com belos e impecáveis trajes para um cerimonial acima de qualquer suspeita, expostos com elevada suntuosidade nos fundos da peça. A caolhice parecia ter se acentuado de forma mais densa e severa:

— Dúvidas?

— Acho que sim. Eu pensei que vocês arranjassem a noiva.

— Essa é a nossa obrigação. Arranjamos a noiva da cabeça aos pés. Basta que nos diga como quer que façamos...

— Eu? Dizer?!

— Perfeitamente. Quais as suas exigências, vamos colocar assim... Quais as suas exigências?

— Veja bem, senhorita Flávia. Como expliquei logo que entrei. Estou à procura de uma moça até vinte anos, que seja da minha altura e peso. Não me incomodo se morena ou loira. Gorda ou magra. Feia ou bonita. Católica ou adventista. Macumbeira ou sem religião. De preferência sem filhos, carinhosa, meiga, que me respeite, que não me traia e, acima de tudo, que me ame. Afinal, não sei se reparou, sou estrábico do olho direito.

Flávia quase teve um treco. Ficou boquiaberta. O sangue gelou:

— Senhor... Amigo Penteado. Desculpe. Acredito estar havendo um pequeno engano aqui...

— Como, engano? O que a senhorita quer me dizer com engano?

— O senhor... Você está procurando por uma namorada?

— O tempo todo...

Flávia sorriu. Desta vez, com certa tristeza. Seu possível “pato” acabava de voar para longe de seus objetivos da depenação e da “bateção” de meta para as vendas do mês.

— Seja franca, por gentileza.

— Nós não cuidamos desse assunto.

— A propaganda ali fora fala que vocês arranjam...

— Senhor, no nosso outdoor está escrito: “ARRANJAMOS NOIVAS”, ou seja, preparamos, aprontamos, vestimos, embelezamos, as meninas para a cerimônia...

— Então, dona...

— Pelo que entendi o senhor está à cata de uma agência de matrimônio. Aqui é uma casa especializada em noivas. Repetindo, seu Penteado, ela entra aqui e sai prontinha para os braços do altar e o aconchego do futuro marido.

Rego Penteado da Silva Buscapé saltou do sofá apavorado, envergonhado e muito nervoso. A negativa dela, com relação a seus objetivos, soou definitiva, caiu por sobre sua cabeça como um fardo pesado. Seu esqueleto tremia tanto que seria capaz de urinar do modo que estava.

— Perdão, senhorita, mil desculpas...

— Não por isso. Acontece. Desculpe não poder ajudá-lo. Boa sorte.

Flávia acompanhou a criatura de volta à porta. Ao se ver sozinha, teve um acesso incontrolável de choro. Desabafou aos soluços.

— Infeliz desgraçado! Boa sorte o raio que o parta. Torto dos infernos... Por certo mereço passar por isso. Devo ter feito besteira  na missa de Santo Antônio domingo passado.

Na calçada, por sua vez, os passos apressados, Rego Penteado da Silva Buscapé se pegou arrasado e destruído. Lembrou que não respondeu sequer ao “Volte sempre e felicidades” que lhe desejou cortesmente a bela loira de olhos verdes e sainha azul curtinha. Como costuma professar a galera antenada nas coisas da modernidade, o borra botas “vazou no trecho o mais rápido que seus pés permitiram”. Se não o fizesse, morreria mil vezes de vergonha, além da que acabara de viver e sentir na pele. Sem contar que logo se deixaria abater por uma deprimência triste e alquebrada, se aquilatando, em vista disso, mais infeliz e desafortunado que o estrábico Mesrour de Voltaire.

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Texto enviado pelo autor

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