segunda-feira, 29 de junho de 2020

Helena Kolody (Poemas Avulsos) 2


ABISMAL

Meus olhos estão olhando
De muito longe, de muito longe,
Das infinitas distâncias
Dos abismos interiores.
Meus olhos estão a olhar do extremo longínquo
Para você que está diante de mim.
Se eu estendesse a mão, tocaria a sua face.
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ÂMAGO

Quem bebe da fonte
que jorra na encosta,
não sabe do rio
que a montanha guarda.
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ANOITECER

Amiudam-se as partidas...
Também morremos um pouco
no amargor das despedidas.

Cais deserto, anoitecemos
enluarados de ausências.
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ARAUCÁRIA

Araucária,
Nasci forte e altiva,
Solitária.
Ascendo em linha reta
- Uma coluna verde-escura
No verde cambiante da campina.

Estendo braços hirtos e serenos.

Não há na minha fronde
Nem veludos quentes de folhas,
Nem risos vermelhos de flores,
Nem vinhos estonteantes de perfumes.
Só há o odor agreste da resina
E o sabor primitivo dos frutos.

Espalmo a taça verde no infinito.
Embalo o sono dos ninhos
Ocultos em meus espinhos,
Na silente nudez do meu isolamento.
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ATAVISMO


Quando estou triste e só, e pensativa assim,
É a alma dos ancestrais que sofre e chora em mim.
A angústia secular de uma raça oprimida
Sobe da profundeza e turva a minha vida.

Certo, guardo latente e difusa em meu ser,
A remota lembrança dos dias amargos
Que eles viveram sem a ansiada liberdade.
Eu que amo tanto, tanto, os horizontes largos,
Lamento não ser águia ou condor, para voar
Até onde a força da asa alcance a me levar.
Ante a extensão agreste e verde da campina,
Não sei dizer por que, muitas vezes, senti
Saudade singular da estepe que não vi.

Pois, até o marulhar misterioso e sombrio
Da água escura a correr seu destino de rio,
Lembra, sem o querer, numa impressão falaz,
O soturno Dnipró, cantado por Taras...

Por isso é que eu surpreendo, em alta intensidade,
Acordada em meu sangue, a tara da saudade
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CHAMA


Chama do Absoluto,
arde o verbo em nossa lâmpada humilde.
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IDENTIFICAÇÃO


Eu me diluí na alma imprecisa das coisas.
Rolei com a Terra pela órbita do infinito,
Jorrei das nuvens com a torrente das chuvas
E percorri o espaço no sopro do vento;
Marulhei na corrente inquietadora dos rios,
Penetrei a mudez milenária das montanhas;
Desci ao vácuo silencioso dos abismos;
Circulei na seiva das plantas,
Ardi no olhar das feras,
Palpitei nas asas das pombas;
Fui sublime n’alma do homem bom
E desprezível no coração do mesquinho;
Inebriei-me da alegria do venturoso;
E deslizei dolorosamente na lágrima do infeliz.

Nada encontrei mais doloroso,
Mais eloquente,
Mais glorioso
Do que a tragédia cotidiana
Escrita em cada vida humana.
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 MERGULHO


Almejo mergulhar
na solidão e no silêncio,
para encontrar-me
e despojar-me de mim,
até que a Eterna Presença
seja a minha plenitude.
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POETA

O poeta nasce no poema,
inventa-se em palavras.
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PRECE

Concede-me, Senhor, a graça de ser boa,
De ser o coração singelo que perdoa,
A solícita mão que espalha, sem medidas,
Estrelas pela noite escura de outras vidas
E tira d’alma alheia o espinho que magoa.
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VIGÍLIA

A noite é profunda,
Silente e de trevas.

Ao lado de teu corpo, imóvel e sereno,
Estou a contemplar-te, Pai.

Por estranhos caminhos,
Cheios de neblina,
Anda minh’alma soluçante,
A clamar por ti.

Teus olhos fitam muito longe
Um olhar imensamente triste.

A chama dos círios dança sem cessar
Em tuas pupilas mortas,
Tentando desviar tua mirada
De um ponto fixo na eternidade.

Círio recôndito,
Arde meu coração e se consome.

Há longos espinhos aguçados
Esgarçando meus nervos sensíveis.

Beijo tuas mãos pálidas e tristes,
Humildes mãos cansadas,
Agora consteladas
Por líquidos brilhantes.

Por estranhos caminhos,
Cheios de neblina,
Anda minh’alma soluçante,
A clamar por ti.

Fontes:
Helena Kolody, Sempre Palavra. Publicado em 1985.
Helena Kolody, Paisagem Interior. Publicado em 1941.
Helena Kolody. Infinito Presente. Publicado em 1980.

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