Certa manhã o Rei Leão, depois de uma noite agitada por maus sonhos e terríveis pesadelos, acordou irritado.
Os animais, tomados de pânico, reuniram-se na grande floresta. Que fazer? O Rei Leão está de mau humor, enfurecido! Como levar a tranquilidade e a calma ao espírito do poderoso e invencível soberano?
— Tenho uma ideia — começou o prudente Camelo, dirigindo-se aos outros animais. — O Rei Leão gosta muito de ouvir contar lendas e histórias maravilhosas. Se um de nós for à sua presença e lhe relatar um caso original e interessante, estou certo de que ele se acalmará e a bondade lhe há de voltar ao coração.
— Quem, entretanto, terá a audácia de aproximar-se do Rei Leão? — acudiu tristonho o Elefante — Qual de vocês conhece alguma história digna de ser ouvida por Sua Majestade?
— Nada mais fácil — retorquiu a Raposa, com trejeitos de orgulhosa. — Coragem não me falta, nem me há de faltar nunca! E se o curar-se o Rei depende apenas do relato de uma história, é-me facílimo aplicar-lhe o remédio. Conheço trezentas histórias, lendas e fábulas interessantíssimas que aprendi no decurso de longas viagens empreendidas pelo mundo. Uma dessas histórias há de, por força, agradar ao nosso impávido soberano e dissipar a agitação que maus sonhos lhe trouxeram.
— Muito bem! Muito bem! — conclamaram alegres os outros animais — Está resolvido o caso! Vamos ao palácio do Rei Leão!
Puseram-se todos a caminho, pavoneando-se, à frente da numerosa comitiva, a esperta Raposa, que sabia trezentas histórias!
No meio da jornada, porém, a Raposa parou repentinamente e assustada, a tremer, exclamou dirigindo-se aos companheiros:
— Meus queridos amigos, grande infortúnio acaba de ferir-me!
— Que foi? Que aconteceu? — indagaram todos aflitos.
— Das trezentas histórias que eu tão bem sabia esqueceu-me agora o fio de cem!
— Não te aflijas por isto — afirmaram os outros animais. — Duzentas histórias são suficientes. Uma delas há de, por força, agradar ao Rei e dissipar de seu espírito a agitação que maus sonhos lhe trouxeram.
E o cortejo novamente se pôs em marcha pela larga e verdejante estrada que conduzia ao palácio do soberano da floresta.
Momentos depois, quando já se ouviam nitidamente os urros atordoadores do Leão, a Raposa parou novamente e, ainda mais assustada, voltou-se para os que a acompanhavam dizendo-lhes com voz transformada:
— Amigos! Nova e terrível desgraça me vem surpreender!
— Que foi que te aconteceu, amiga Raposa? — acudiram pressurosos e em coro os companheiros.
— Das duzentas histórias que eu sabia na ponta da língua — balbuciou chorosa — de cem não me lembro mais!
— Não vai nisso grande mal, boa amiga — redarguiram os animais já duvidosos da segurança de tão apregoada memória. — Cem histórias dão de sobra! A metade desse número bastaria, por certo, ao próprio Sultão! Em cem casos de peripécias atraentes uma há de agradar ao Rei Leão e dissipar de seu espírito e agitação que maus sonhos lhe trouxeram.
E, isto dizendo, puseram-se novamente a caminho, levando por diante a Raposa, que parecia triste e abatida com o seu apoquentador esquecimento.
Quando o cortejo — que engrossara consideravelmente com a adesão de muitos outros
animais — chegava diante do palácio do Leão, a Raposa teve um desmaio e rolou desamparada pelo chão.
Reanimada, porém, pelos desvelos dos companheiros, reabriu os olhos e com voz sucumbida confessou tremente:
— Que desgraça, meus amigos! Não sei como ocultar-lhes que já não me lembro das cem últimas histórias de que ainda há pouco me recordava tão bem!
A infanda revelação da Raposa causou entre os animais presentes verdadeira desolação. Que fariam eles? Como remediar a situação? Já sabiam todos — pelos urros mais fortes e mais frequentes do Rei Leão — que Sua Majestade, exaltado e impaciente, se achava na sala do trono à espera do anunciado emissário que vinha trazer-lhe calma ao espírito agitado. Quem seria capaz, naquela grave emergência, de substituir a Raposa, atacada de tão forte acesso de amnésia?
O Chacal, prudente e sensato, sabedor do que acontecera à Raposa, reuniu os chefes do bando e disse-lhes:
— Meus camaradas! Sou, como bem sabeis, um animal rude e inculto! Tenho vivido sempre em soturnas grutas, isolado do mundo e dos poderosos. Aprendi, porém, com um velho mestre que tive nos primeiros anos de minha vida, uma história muito original, de que jamais me esquecerei. Estou certo de que, ao ouvir essa história, o nosso glorioso Rei Leão verá restituídas a calma e a tranquilidade ao seu espírito conturbado.
— Vai, Chacal! — exclamaram os animais — Quem sabe se não conseguirás com tua bela narrativa salvar-nos da fúria vingativa do Rei Leão!
Animado pelos amigos e companheiros, o Chacal galgou resoluto as longas escadarias do rico palácio que abrigava o exaltado soberano. A grande praça estava repleta. A população inteira da floresta aguardava ansiosamente o desfecho da arriscada tentativa. Esperavam todos, a cada instante, ouvir os uivos de dor que o pobre Chacal expediria quando estivesse sendo esmagado pelas garras impiedosas do Leão.
Decorridos, porém, alguns momentos de angustiosa expectativa, viram todos, perplexos, abrirem-se as portas do régio palácio e surgir, na larga varanda, o Rei Leão, calmo e satisfeito, a saudar risonho, com amáveis meneios de sua lustrosa juba, os súditos reunidos a seus pés. E para maior pasmo surgiu ao lado do temido Leão o abnegado Chacal, o peito escuro coberto de ricas medalhas e distintivos nobiliárquicos, a cintura envolta pela faixa dourada de ministro e conselheiro do Reino.
Os animais não se mexiam, de assombrados. Ninguém sabia explicar aquele espantoso mistério. Que teria contado o Chacal de tão extraordinário ao Rei Leão? Que história maravilhosa teria sido a que alterara tão radicalmente o gênio do monarca e fizera com que o seu narrador se tornasse digno de tão alta recompensa?
A curiosidade, mesmo entre os animais da floresta, é um fator da maior importância em todos os acontecimentos da vida. O Camelo, que fora até então um dos mais íntimos do Chacal, não podendo refrear a ânsia que o espicaçava, aproximou-se, discreto, do novo vizir do Rei e perguntou-lhe respeitosamente:
— Ilustre ministro, dizei-me, peço-vos por favor, que história contastes ao nosso glorioso soberano?
— Amigo Camelo — respondeu bondoso o Chacal — o conto que narrei ao Leão nada tem, realmente, de extraordinário. Aproximei-me do trono e contei-lhe, sem nada ocultar a peça que nos pregara a vaidosa Raposa! Sua Majestade achou-lhe muita graça e disse-me: — “É sempre assim, meu caro Chacal! É sempre assim! Longe de um rei violento e irritado todos se inspiram e apresentam ideias geniais! O verdadeiro talento e a verdadeira coragem só se revelam, porém, na ocasião exata e precisa ao defrontarem o risco e a ameaça”.
Fonte:
Malba Tahan. Lendas do deserto. Publicado originalmente em 1929, com prefácio de Olegário Mariano.
Nenhum comentário:
Postar um comentário