quinta-feira, 25 de junho de 2020

Manuel Bandeira (Antologia Poética) 3


AUTO-RETRATO

Provinciano que nunca soube
Escolher bem uma gravata;
Pernambucano a quem repugna
A faca do pernambucano;

Poeta ruim que na arte da prosa
Envelheceu na infância da arte,
E até mesmo escrevendo crônicas
Ficou cronista de província;

Arquiteto falhado, músico
Falhado (engoliu um dia
Um piano, mas o teclado
Ficou de fora); sem família,

Religião ou filosofia;
Mal tendo a inquietação de espírito
Que vem do sobrenatural,
E em matéria de profissão
Um tísico profissional.
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BACANAL


“Quero beber! Cantar asneiras
No esto brutal das bebedeiras
Que tudo emborca e faz em caco...
Evoé Baco!

Lá se me parte a alma levada
No torvelinho da mascarada
A gargalhar em doido assomo...
Evoé Momo!
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BOI MORTO


Como em turvas águas de enchente,
Me sinto a meio submergido
Entre destroços do presente
Dividido, subdividido,
Onde rola, enorme, o boi morto.
Boi morto, boi morto, boi morto.

Árvores da paisagem calma,
Convosco – altas, tão marginais! –
Fica a alma, a atônita alma,
Atônita para jamais.
Que o corpo, esse vai com o boi morto.
Boi morto, boi morto, boi morto.

Boi morto, boi descomedido,
Boi espantosamente, boi
Morto, sem forma ou sentido
Ou significado. O que foi
Ninguém sabe. Agora é boi morto.
Boi morto, boi morto, boi morto!
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CABEDELO


Viagem… roda do mundo
Numa casquinha de noz:
Estive em Cabedelo.
O macaco me ofereceu cocos.
Ó maninha, ó, maninha,
Tu não estavas comigo!...

- Estavas?...
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CANÇÃO DO VENTO


O vento varria as folhas,
O vento varria os frutos
O vento varria as flores...
E a minha vida ficava
cada vez mais cheia
de frutos, de flores, de folhas.

O vento varria as luzes,
O vento varria as músicas,
O vento varria os aromas...
E a minha vida ficava
cada vez mais cheia
de aromas, de estrelas, de cânticos.

O vento varria os meses
E varria os teus sorrisos...
O vento varria tudo!
E a minha vida ficava
cada vez mais cheia
de tudo.
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CONFISSÃO


Se não a vejo e o espírito a afigura,
cresce este meu desejo de hora em hora...
Cuido dizer-lhe o amor que me tortura,
O amor que a exalta e a pede e a chama e a implora.

Cuido contar-lhe o mal, pedir-lhe a cura...
Abrir-lhe o incerto coração que chora,
mostrar-lhe o fundo intacto de ternura,
agora embravecida e mansa agora...

E é num arroubo em que a alma desfalece
de sonhá-la prendada e casta e clara,
que eu, em minha miséria, absorto a aguardo...

Mas ela chega, e toda me parece
tão acima de mim.., tão linda e rara...
Que hesito, balbucio e me acovardo.
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CONSOADA


Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável*),
talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
- Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.
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Nota:
* Caroável – que procura ser amável (através de palavras ou gestos); afável, gentil, afetuoso.

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