quinta-feira, 4 de junho de 2020

Laé de Souza (De Mal com a Vida)


Reclamam do meu jeito e da minha cara carrancuda. E dá para ser diferente? De manhã acordo com algazarra e gritos de garotos que correm atrás de uma bola e sobre patins. Num mesmo ritual de anos, vou até a janela e vejo aquele doido, só pode ser, que todos os dias, metido num calção listado, circula o parque correndo sempre a consultar um cronômetro que carrega no pulso. Uma folheada nos jornais me aumenta o mau humor. Só notícias ruins. Na televisão e no rádio, prolifera o pornô. Não bastasse o rock. Cuja culpa por eu ter começado a odiar é do desajustado do meu filho, sempre com o som ligado nas alturas, estourando meus tímpanos. Criei tanta ojeriza, que hoje a simples visão de uma guitarra me perturba a ponto de, se não me segurarem, quebrá-la na cabeça do roqueiro.

Agora, são mocinhas de pernas de fora e letras pornográficas fazendo sucesso. Não suporto mais o Tchan, dança do Bumbum, da Garrafa, do Maxixe, do Pirulito, Tanajura e outras mais, que certamente virão. Não que eu seja contra mulheres sensuais, mas estes batuqueiros já estão abusando e isso ninguém pode negar. Se não derem um breque, a coisa vai degringolar.

Até a minha música preferida, Índia, já não posso mais ouvir sem que me venha na mente a figura desdentada do Tiririca. Minha vontade é arrancar-lhe o restante dos dentes com um soco e, copiando Mike Tyson, morder-lhe as orelhas. Depois deste moço, nunca mais Índia será  a mesma.

Me tiraram o cigarro sob argumentos de melhorar minha saúde, já não posso sentir o gosto da fumaça e o cheiro do tabaco queimando. Sinceramente, só balela, pois continua a rouquidão e a tosse que me acompanham há anos. O cansaço, a falta de ar depois de qualquer esforço ainda são os mesmos. O nervosismo que sempre me acompanhou, segundo diz o pessoal que me cerca, está cada dia pior. Cá para mim, por dois motivos: a falta do cigarro e o conluio dessa gente que insiste em me atazanar. Quando vejo figuras de montanhas, cascatas e cavalos, fico em delírio, sonhando com um Malboro entre os dedos e grandes baforadas. Quando caio em mim, vejo que é tudo ilusão. Reconheço que implico com coisas mínimas e infernizo a vida de quem está perto. Mas também, como todo ex-fumante, condeno os que fumam e reclamo quando vem uma fumacinha, embora intimamente goste de sentir o cheiro. Aponto placas e exijo o cumprimento dos meus direitos de não-fumante.

Me proibiram a bebida, sob argumentação médica de que minha saúde exigia que deixasse de tocar em qualquer espécie alcoólica. Tenho certeza de que foi boicote, motivado pelo fato de que sob efeito do álcool eu dizia certas verdades que essa gente não gosta de ouvir. E ainda mais, sempre tinha um ou outro que ousava contestar e por várias vezes parti pra cima a fim de resolver no tapa. Até na entrada do ano, enquanto brindam com champanhe e se enchem de beber, me dão um suco e não descuidam. Como sinto inveja quando vejo um fulano cambaleando , em ziguezague jogar-se numa calçada e ali ficar sem dar a mínima para a vida.

Ah! essa turma que fica pegando no meu pé não perde por esperar. Qualquer dia, eu ainda apronto uma com eles. E vai ser antes dessa morte que só para me atormentar demora em chegar.

Fonte:
Laé de Souza. Acredite se quiser. SP: Ecoarte, 2000.

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