sexta-feira, 5 de junho de 2020

Monteiro Lobato (Pedro Pichorra)


(conto publicado em 1910)

Quem dobra o Morro da Samambaia, com a vista saturada pela verdura monótona, espairece na Grota Funda ao dar de chapa com uma sitioca pitoresca. E passa levando nos olhos a impressão daquela sépia afogada em campo verde: casebre de palha, terreirinho de chão limpo, mastro de santo Antônio com os desenhos já escorridos pela chuva e a bandeira rota trapejante ao vento. Dois mamoeiros no quintal apinhados de frutos; canteiros de esporinhas com periquito em redor e manjericões entreverados. Um pé de girassol, magro e desenxabido, a sopesar no alto a rodela cor de canário; laranjeiras semimortas sob o toucado da erva-de-passarinho.

Nos fundos da casa vê-se o lavadouro, descoivarado apenas, num poço onde o corgo rebrilha três palmos d’água. Sobre um tabuão emborcado a meio, lá está batendo roupa a Marianinha Pichorra, mulher do Pedro Pichorra, mãe de nove Pichorrinhas. É ali o sítio dos Pichorras e até a Grota Funda já é conhecida por Fundão da Pichorrada.

Por que os antigos Pereiras de Sousa, do Barro Branco, vieram a chamar-se Pichorras? É toda uma história.

Pedrinho ia nos onze anos. Já se destabocara e já preferia, em matéria de fumo, o forte, bem melado. Na véspera realizara o sonho de toda criança da roça — a faca de ponta. Dera-lha o pai como um diploma de virilidade.

— Menino, de ora em diante você é homem. Agredido, não gritará por gente grande; é mão na faca, pé atrás e corisco nos olhos.

Não lhe falou assim o pai, mas leu Pedrinho essa fala na lâmina rebrilhante. Por isso irradiava de orgulho, imaginando pegas, aloites, tempos-quentes e tocaias onde a “sardinha” alumiasse.

O pai, naquele momento de pé na soleira da porta, assuntava o céu. Viu que chover não chovia — e:

— Pedrinho! — gritou para os fundos.

— Pai?

— Vá pegar a égua.

O menino passou mão do cabresto e mergulhou no pasto. Minutos depois repontava trotando em pelo a Serena, égua velha, de muita barriga mas aguentadeira.

— Dê milho, do mole, e arreie.

O pequeno debulhou duas espigas no embornal e, enquanto a égua mascava o lambisco, alisou-a, ajeitou-lhe no lombo pisado um saco velho, depois a carona, o lombilho, o pelego.

— Não coche demais a barrigueira. Tem potrinho.

O menino folgou dois dedos o arrocho e esperou um bocado, enrolando o cigarro, até que a Serena parasse de mastigar. Por fim, arrumou o freio e montou.

— Agora você vai no sítio do Nheco e diz praquele tranca que dou o capadete pelos vinte e cinco mil-réis.

Pedrinho abriu cara de quem estranhava a ordem.

— Sozinho?

— Ué! E a faca, então? Não é “companheiro”?

O argumento valeu. Pedrinho, sem mais palavra, deu rédea e, lept! lept!, arrancou estrada afora.

O pai, alisando maquinalmente um palhão de milho, acompanhou-o com os olhos até perdê-lo de vista na primeira curva. Depois monologou:

— “Sozinho”? Ué! Até quando? Precisa acostumar. Onze anos. É homem. Eu com dez varava sertão.

Pedrinho trotava pela fita vermelha da estrada, sobe e desce morro, quebra à direita, à esquerda, pac, pac, pac... Ia pensando na volta. Teria tempo de transpor a figueira antes de escurecer? A figueira... Passavam-se ali coisas de arrepiar o cabelo. Pela meia-noite — diziam — o capeta juntava debaixo dela sua corte inteira para pinoteamento de um samba infernal. Os sacis marinhavam galhos acima em cata de figuinhos, que disputavam aos morcegos. E os lobisomens, então? Vinham aos centos focinhar o esterco das corujas. Almas penadas, isso nem era bom falar! Quando o Quincas da Estiva contava casos da figueira, não havia chapéu que parasse na cabeça. Mas de dia, nada; passarinhada miúda só, a debicar frutinhas. Foi o que o menino viu naquela tarde ao cruzar com a árvore. Mesmo assim passou rápido e encolhidinho — por via das dúvidas.

Chegou ao Nheco ainda com sol e deu o recado.

Nheco, marotíssimo, coçou o cabelo de milho da barbicha e embromou:

— Pois não. Mas... “não vê” que o toicinho baixou. De Minas tem descido um “poder” de capadaria que mete medo. De sorte que você diga pro pai que nestes “causos” eu não sustento o trato. Se ele quiser vinte e três mil-réis... Diga assim, ouviu? Vinte e três, ouviu?

Pedrinho desandou para trás, pensando consigo: “Safado!”. E veio todo o caminho absorvido em xingar mentalmente o aproveitador. Ao defrontar com a figueira o medo agarrou-o. Escurecia. A luz do céu estava morrendo, pálida no alto, laranja esmaiada no poente. Por felicidade cruzaria a figueira antes da noite. Fechou os olhos, conjurou o encardido santo Antônio da família e transpôs dum galão o passo perigoso.

— Arre!... — exclamou com desabafo, olhando para trás e vendo a árvore maldita diminuir de porte. E pac, pac, pac, estrada afora, rumo ao sítio paterno. Mas escureceu e, já perto de casa, vai senão quando a égua empina a orelha e passarinha.

— Égua velha passarinhou é saci! — sugeriu dentro dele o medo. E o menino retransido viu de repente no barranco um saci de braços espichados, barrigudo, “com um olho de fogo que passeava pelo corpo”.

— Nossa Senhora da Conceição, valei-me!

Assustado por aquele berro, o “olho do saci voou pelo ar, piscando”... Pedrinho bateu em casa de cabelos em pé, olhos saltados. Agarrou-se com o pai, trêmulo, sem fala. A custo desfez o nó da língua.

— O saci, pai!...

— ?

— ... pra cá da figueira... na curva... Barrigudinho... preto...

O pai deu-lhe água na cuia.

— Sossegue um pouco, menino.

E depois duma pausa:

— Você está bobeando, Pedrinho. Não há saci destas bandas.

— Juro, pai! Por Deus do Céu que vi.

E contou a viagem por miúdo, até a aparição.

— Altinho? Pretinho? — indagou o pai.

— Pretinho era, mas chatola, barrigudo, assim que nem pichorra grande.

— Então não é saci — concluiu o velho, entendidíssimo em demonologia rural. E depois:

— Fedeu enxofre?

— Não.

— ‘ssobiou?

— Não.

— Mexeu do lugar?

— Não. Só o olho. O olho andava e voava.

O caboclo refletiu um bocado, até que por fim uma ideia lhe iluminou a cara.

— Onde foi isso — pra cá do corguinho?

— É...

— No barranco?

— É...

— O olho andou e depois voou, piscando?

— Tal e qual...

— E o corpo ficou parado?

— Isso mesmo...

O velho clareou a cara e, desmanchando as rugas da testa, disse rindo:

— O que mais não se aprende neste mundo!... Sabe o que você viu, menino? Você viu o saci pichorra...

E mudando de tom, depois de refletir durante um par de minutos:

— “Quedele” a faca?

— Pra quê? — perguntou o menino, desconfiado.

— Deixe ver, dê cá a faca.

Pegou dela e pô-la à cinta. E, ríspido:

— Vá dormir.

Pedrinho, compreendendo a degradação, ergueu-se com lágrima nos olhos.

— E a faca?

— Fica comigo. Pra você, porqueirinha, é canivete marca anzol ainda.

E com infinita ironia:

— Vá dormir, Pedro Pichorra!...

O menino recolheu-se, sacudido de soluços. O velho pegou do borralho um tição para acender na brasa viva o cigarro. Baforou uma fumaça com o pensamento no falecido sogro Chico Vira, o caboclo mais medroso da Estiva.

— Por quem havia de puxar o Pedrinho, pelo Chico Vira...

E assim o rebento masculino dos Pereiras do Barro Branco virou, por troça do próprio pai, o tronco duma nova família, essa Pichorrada que hoje põe a nota sépia da sitioca na verdura da Samambaia. Tudo porque a velha Miquelina havia deixado naquele dia a pichorra d’água a refrescar ao relento à beira do barranco, e um vaga-lume-guaçu pousara nela por acaso, justamente quando o menino ia passando...

Fonte:
Monteiro Lobato. Cidades Mortas.

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