segunda-feira, 1 de junho de 2020

Aparecido Raimundo de Souza (W ou B?)


O ESTILISTA CAPILAR QUE ME ATENDEU NA NOVA barbearia que inaugurou esta semana, na sobreloja do prédio onde tenho meu escritório para empresários que precisam lavar dinheiro e enganar a Receita e a Polícia Federal, na Avenida Presidente Vargas, quase colado à Candelária, a primeira impressão que me deixou foi a de que não tinha nádegas. Pelo menos o suficiente para ser notado. A jeans bege que usava, preso a um cinto de couro preto, bem acima do umbigo, juntamente com a camisa branca, por dentro da calça, dava a ele, ares de uma linguiça mal empetecada e seca e, ainda por cima, amarrada pelo meio.

A única coisa que não combinava com a calça, nem com o cinto, tampouco com a camisa e os sapatos amarelos, era o celular minúsculo no bolso. Os cabelos longos que lhe caíam até a altura da região ínfero-posterior da cabeça estavam presos por uma pregadeira vermelha em formato de peixinho, coincidentemente da mesma cor da capinha que protegia o aparelho telefônico.

Diante dos espelhos enormes, a figura do barbeiro se destacava. Sentado na cadeira de assento verde, com almofadas e bolinhas da mesma cor, eu podia observá-lo de todos os ângulos. Visto pela traseira, parecia um pau de arrimo que comumente as pessoas idosas usam para se locomoverem. Não se distinguiam os contornos de um ser normal, ou seja, onde terminava as costas, emendava o que deveria ser o traseiro, e onde este acabava, tinha início as pernas. Mas, no conjunto, um perfeito e estranho varapau.

Na realidade, o cidadão se assemelhava a uma dessas tábuas usadas em andaimes de prédio, posta em pé, ora se movendo de um lado, ora de outro. De frente, lembrava um periscópio de submarino na posição em que os marinheiros o colocam para observar a superfície. Se olhado pelas laterais, principalmente à direita, vinha, à cabeça, a figura de um cachorro vira-lata fujão, depois de ter revirado o lixo na cozinha e esparramado o que havia dentro, pela casa afora.

Verdade seja dita: tirando essas bizarrices todas, o cara era ágil, desembaraçado e veloz, na tesoura. Cortava meu cabelo com a precisão de um profissional que conhece profundamente o serviço que executa. Devido à sua destreza, mal dava para acompanhar os movimentos cadenciados de suas mãos na tesoura, trabalhando o couro cabeludo, aparando as pontas aqui e ali até ficar tudo do jeitinho como lhe havia ordenado.

De repente interrompeu o desbaste e perguntou muito solícito, se aceitava um café quentinho saído naquele exato momento. Optei pela água gelada. Uma moça simpaticíssima, estatura mediana, rosto claro, olhos pretos e grandes, acondicionada num vestido azul-marinho colado ao corpo, deixando entrever os contornos de uma calcinha minúscula, veio lá de dentro, com uma bandeja, e me serviu, zelosa e apressurada. O traje da elegante, em contraste com a severidade do patrão, não excluía, de forma alguma, a graça e a formosura do feitio. Em seguida fui galardoado com o jornal todo desfolhado com relatos de alguns dias atrás.

– Escuta, companheiro, não foi na semana passada que o Lula botou na cabeça o boné do MST?

– Acho que sim, senhor...

– E não foi também, na mesma época que o Papa João Paulo II pregou a castidade para os jovens?

– Sim, senhor. Por que as perguntas?

– Esse jornal é velho demais. Por favor, amigo, devolva ao lugar de onde veio.

O rapaz ainda tentou substituir a tal publicação por uma leitura mais em voga, contudo a revista igualmente era tão antiga que trazia resenhas de uma novela chata que havia acabado mês anterior.

Não sei se alguém já atentou para um fato corriqueiro, mas de vital importância, se levado a sério: em recepções, sejam de hotéis, casas de massagens, imobiliárias, instituições bancárias, consultórios médicos e dentários, salões de beleza e barbearias, as revistas e os jornais destinados ao público “esperante” nunca são do dia. Geralmente essas velharias ficam espalhadas pelos assentos, ou jogadas pelo chão, à espera que um boboca, para matar o tempo, se ocupe em lhe desfolhar as páginas. É raro chegar num desses lugares e dar de cara com alguma coisa realmente digna de ser lida.

Para não deixar o sujeito chateado, resolvi puxar conversa.

– Qual é seu nome, amigo?

– Bilson, senhor...!

–... Wilson?

– Não. Bilson. Bilson de Freitas.

– Com B ou com W?

– Com W, de Bilson.

Graças a Deus não precisei dar continuidade ao papo, pois a minha sessão havia terminado. Antes de me despachar, dando lugar a outro, o rapaz pegou um espelho redondo e o colocou por detrás das orelhas, a altura que eu pudesse ver se a coisa ficara a gosto. Aprovei com um aceno de cabeça e ele pareceu se alegrar com a minha satisfação.

Paguei o corte, agradeci a água, dei uma olhadela de cima em baixo para a secretária de vestido de colante azul-marinho e prometi solenemente voltar outras vezes. Não por ele, mas pelo sorriso indescritível da bela potranca, que devolveu com um tchauzinho maroto e um piscar de olhos discreto, a minha observação detalhada às suas enormes pernas roliças.

Lá fora, enquanto espiava a vitrine de uma loja de conveniências, pensei com meus botões:

– “Bem, acho que esse barbeiro tem problemas com a voz. É de fato fanhoso, ou não sabe escrever o próprio nome. Ou via outra: está a fim de tirar um sarro com os meus cornos. Ou com os meus córneos. E por que não? Bilson com W. Onde já se biu?”.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. As mentiras que as mulheres gostam de ouvir. RJ: Editora AMCGuedes, 2013

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