terça-feira, 9 de junho de 2020

Basílio de Magalhães (A Rainha das Onças)


Era um dia, uma moça muito pobre, que tinha um filhinho. Uma vez, não tendo comida nenhuma para dar ao menino, agarrou-o e saiu de casa desesperada da vida, disposta a ir a toa pelo mundo afora. Em vez de seguir a estrada real, tomou por um atalho, perdendo-se no mato.

Quando já tinha andado muito, encontrou um velho que lhe disse:

- Ih! minha filha, você por aqui vai dar na casa da onça-verdadeira que é a rainha das onças.

- Ai! meu velho, que é que eu hei de fazer? Não sei caminho nem carreira; já estou perdida nestas brenhas e o jeito que tenho é ir aonde Deus quiser me levar.

E contou-lhe o motivo que a obrigava a andar por aqueles fins de mundo.

- Está bem. - disse-lhe o velho – Quando você chegar na casa da rainha das onças, há de ver uma muito grande, sentada na porta. É essa. Salve ela e diga que foi pedir para ela ser madrinha de seu filho.

A moça despediu-se do velho, depois de lhe ter agradecido muito o conselho e toca a andar. Andou, andou, até que deu naquele campo vasto, de admirar, tendo ao meio uma casa muito grande, que era um convento, rodeada de uma porção de onças. Na porta estava uma que era um mundo, de enorme, sentada, lambendo as patas. Com muito receio, a moça chegou perto dela, levando o filhinho pela mão e disse:

- Bom dia. Eu vim aqui pedir a vosmincê pra ser madrinha deste menino.

A onça-verdadeira, com a cara muito fechada, sem dizer palavra, pôs-se a olhar para a moça e para o filho. E as onças todas que estavam por ali, ficaram também muito quietas, olhando para os dois. Afinal, a verdadeira disse que sim. Pegou na criança, deu-lhe uns tombos, à maneira de afagos e mandou a futura comadre entrar. A moça obedeceu, ficando em pé num canto da sala, sem largar o filhinho.

Passado algum tempo, a rainha das onças perguntou-lhe se queria comer. Respondeu a moça:

- Ou! se vosmincê me der, eu quero.

Então a onça-verdadeira mandou buscar um pedacinho de carne sapecada, muito dura, e um punhadinho de farinha. A moça comeu aquele tiquinho de comida com o filho e ficou ali sossegada, sem dizer palavra, sentada ao chão com o pequeno no colo. E as onças, bem de seu, sem se importarem com ela; umas entrando, outras saindo; umas carregando água, outras rachando lenha, outras cozinhando.

Quando foi de noite, a onça-verdadeira deu umas palhas para ela fazer a sua cama mais a do filho. Pela manhã muito cedinho, varreu a casa toda, varreu o terreiro, depois acendeu o lume, que quando as onças acordaram, só tiveram o trabalho de botar a comida no fogo.

A verdadeira tornou a lhe dar aquele pedacinho de carne sapecada com um punhadinho de farinha, para ela e o filho. Depois disse:

- Comadre, você fique estes dias aqui comigo, para então se fazer o batizado do menino.

A moça disse que sim. Falava somente quando a comadre lhe perguntava alguma coisa. Todos os dias de manhã, arrumava e varria a casa e acendia o lume.

Passado algum tempo, efetuou-se o batizado do menino. A moça disse então à rainha das onças:

- Comadre, vosmincê agora me dê licença para amanhã eu ir m’embora.

No outro dia, a onça-veradeira mandou ver um cavalo com dois caçuás, encheu-os de muita roupa e muito dinheiro para o afilhado, dando-lhe também uma trombeta. A moça despediu-se da comadre e de todas as outras onças, com muitos agradecimentos e saiu por ali a fora mais o filhinho, puxando o cavalo pelo cabresto.

Assim que ela entrou no mato, o velho tornou a lhe aparecer e disse:

- Moça, as onças, agora, vão lhe atalhar no caminho para lhe matar, mas não tem nada.

Então ensinou-lhe o que devia fazer, concluindo:

- Assim elas lhe deixam ir em paz com seu filho. Todos os que têm ido lá são comidos por elas, na volta, porque não sabem o que eu acabo de ensinar a você.

Já havia andado um bom pedaço, quando a onça-verdadeira, que tinha corrido com as outras para atalhá-la no meio do caminho, gritou de lá de dentro do mato:

- Minha comadre!... Oh! minha comadre!...

A moça respondeu, conforme o velho lhe ensinara:

- O que quereis comigo, onça verdadeira?

Disse a onça:

- Quando você chegar em casa, que seu pai e sua mãe perguntarem quem foi que lhe zelou, o que é que você diz?

A moça:

- Eu hei de dizer
Que quem me tratou
Que quem me zelou
Foi quem come boi
Quem come cavalo
Quem come mocó.

Muito satisfeita, gritou a onça:

- Bravo, minha comadre! Toque a trombeta!

Ela tocou:

- Esta trombeta é de mongolô
Este cavalo é de mongolô
Este cabedalé de mongolô...

Meteu o pé no caminho, meteu o pé no caminho, que ia mesmo voando. A onça-verdadeira correu, correu, com as companheiras, indo atalhá-la de novo adiante. Tornou a chamá-la e a fazer-lhe a mesma pergunta, respondendo a moça tudo direitinho, como da primeira vez. Aí as onças voltaram, deixando-a ir-se embora.

Chegou em casa muito contente, referindo minuciosamente aos pais o que lhe acontecera. Fez logo um sobrado muito grande, muito bonito, para morar com eles, botou o filho nos estudos e ficou vivendo como rica, com os cabedais que a onça-verdadeira dera ao afilhado.

Ora, uma vizinha, com inveja de vê-la enriquecer assim da noite para o dia, começou a espremer com ela que lhe dissesse como tinha achado tanto dinheiro, de repente. Deu em cima da moça, deu em cima da moça, até que ela lhe contou tudinho, tim-tim por tim-tim.

A vizinha pegou no filho, dizendo que ia procurar também a casa da rainha das onças para ser sua comadre e fazê-la rica. Mas, chegando lá, muito malcriada e orgulhosa que era, procedeu exatamente ao contrário de quanto a moça lhe ensinara. Não varreu nem arrumou a casa, não acendeu o lume, nem nada. Quando lhe deram a comida, reclamou, dizendo que aquilo era pouco, que ela não era pinto, que aquela carne era muito dura e a farinha, mofada. Ao lhe darem as palhas para se deitar, gritou:

- Eu não sou cachorro para dormir no chão, em cima da palha...

Só vivia rindo e caçoando das onças:

- Credo! Nunca vi onça rachar lenha!... Te arrequeiro! Nunca vi onça com pote d’água na cabeça!... Cruz! Eu te arrenego!... Nunca vi onça varrer casa!...

E assim por diante.

Mal se acabou de fazer o batizado, ela disse à comadre que queria ir-se embora. A onça mandou ver um cavalo, encheu os caçuás de roupa e de dinheiro e deu-lhe uma trombeta. A mulher nem se despediu da comadre. Pegou no filho, escanchou-o no quarto e foi puxando o animal pelo cabresto, sem olhar para trás.

Quando já estava bem no meio da mata, ouviu a onça-verdadeira gritar:

- Comadre!... Oh! minha comadre!...

Ela respondeu:

- Pra lá, anzol! Eu te desconjuro!...

A onça tornou:

- Quando você chegar em casa, que seu pai mais sua mãe perguntarem quem foi que lhe tratou, quem foi que lhe zelou, o que é que você diz?

Exclamou a mulher:

- Vai-te para as areias gordas, onde morreu a primeira baleia... Ave Maria!

E assim tornou a dizer, quando, adiante, a onça-verdadeira a chamou pela segunda vez. Então as onças todas saíram do mato, sangraram-na, bem como ao menino, botando os dois corpos em cima do cavalo. Chegando à casa, fizeram aquela fogueira enorme, assaram-nos e comeram-nos, bem de seu.

Fonte:
Basílio de Magalhães. O folk-lore no Brasil. Publicado em 1928.

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