sábado, 13 de junho de 2020

Humberto de Campos (As Loções Miraculosas)


A coisa mais fácil de inventar, é. neste mundo, o tônico para cabelo. Não há barbeiro por mais modesto e preguiçoso, que não possua a sua formula prestigiosa, destinada a fazer rebentar uma cabeleira encaracolada na calva mais rebelde e, se possível, numa bola de bilhar. Quanto à utilidade real dessas loções, desses tônicos, dessas tinturas miraculosas, prova-a o número, sempre crescente, de carecas, existente no Rio de janeiro.

O mais curioso é, no entanto, o entusiasmo, a fé, a convicção, com que os "fígaros" fazem a propaganda do seu preparado. Concluída a barba do freguês, o bárbaro, empunhando ainda a navalha, propõe à vítima:

- Vamos, agora, a uma fricção do nosso tônico?

Agredido assim, o freguês encara o agressor, medindo-o de alto a baixo, com raiva; ao dar, porém, com os olhos na lamina faiscante, aberta a dois palmos do seu pescoço, capitula, forçosamente, concordando, desarmado:

- Ponha!

Autorizado a cometer o crime nefando, o barbeiro passa, então, a fazer o elogio do seu remédio.

- É um prodígio, senhor doutor! - assegura. - Se ele caísse numa pedra, no chão, a pedra criaria cabelo!...

O mais curioso propagandista desse gênero foi, entretanto, o de que deu noticia, há muitos anos, na imprensa do norte, um saudoso jornalista paraense. Apanhado, certa vez, de surpresa, em uma cadeira de barbearia, esse mártir foi intimado, de súbito, pelo homem da navalha:

- Então, uma loçãozinha para nascer o cabelo; não?

O desventurado ia recusar terminantemente a proposta, mas o barbeiro atalhou, abrindo a navalha:

- É um verdadeiro milagre, o meu preparado. Basta cair na calva, para o cabelo começar, logo, a nascer. É assombroso! É prodigioso! É formidável!

E enquanto esfregava na cabeça do freguês a água do pote perfumada, contou:

- O senhor quer ver o que é a minha loção? Uma vez, estando eu a fabricar este preparado, peguei um jarro, que estava cheio dele, e coloquei-o em uma prateleira, pregada à parede. Debaixo da prateleira, que é alta, ficava o meu baú, um baú grande, de couro curtido, todo pregueado, daqueles antigos, sólidos, enormes, que se faziam em Portugal. Pois, bem; o jarro, que estava rachado, começou a vazar o liquido na prateleira, que o fazia cair, por seu turno, sobre o baú; e de tal forma que, na dia seguinte, ao abrir a porta encontrei o baú...

- Molhado. não? - interrompeu o jornalista.

E o fígaro, sério:

- Não, senhor; coberto de cabelo!

E esfregou-lhe a careca, com força.

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado em 1925.

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