sexta-feira, 1 de maio de 2020

Paulo Mendes Campos (Os Diferentes Estilos)


Parodiando Raymond Queneau, que toma um livro inteiro para descrever de  todos  os  modos  possíveis  um  episódio  corriqueiro, acontecido em um ônibus de Paris, narra-se aqui, em diversas modalidades de estilo, um fato comum da vida carioca, a saber: o corpo de um homem de quarenta anos presumíveis é encontrado de madrugada pelo vigia de uma construção, à margem da Lagoa Rodrigo de Freitas, não existindo sinais de morte violenta.

Estilo interjeitivo - Um cadáver! Encontrado em plena madrugada! Em pleno bairro de  Ipanema! Um homem desconhecido! Coitado! Menos de quarenta anos! Um que morreu quando a cidade acordava! Que pena!

Estilo colorido - Na hora cor-de-rosa da aurora, à margem da cinzenta Lagoa Rodrigo de Freitas, um vigia de cor preta encontrou o cadáver de um homem branco, cabelos louros, olhos azuis, trajando  calça amarela, casaco pardo, sapato marrom, gravata branca com bolinhas azuis. Para este o destino foi negro.

Estilo antimunicipalista - Quando mais um dia de sofrimentos e desmandos nasceu para esta cidade tão mal governada, nas margens imundas, esburacadas e fétidas da Lagoa Rodrigo de Freitas, e em cujos arredores falta água há vários meses, sem falar nas frequentes mortandades de peixes já famosas, o vigia de uma construção (já permitiram, por debaixo do pano, a ignominiosa elevação de gabarito em Ipanema) encontrou o cadáver de um desgraçado morador desta cidade sem policiamento. Como não podia deixar de ser, o corpo ficou ali entregue às moscas que pululam naquele perigoso foco de epidemias. Até quando?

Estilo reacionário - Os moradores da Lagoa Rodrigo de Freitas tiveram na manhã de hoje o profundo desagrado de deparar com o cadáver de um vagabundo que foi logo escolher para morrer (de  bêbado) um  dos bairros mais elegantes desta cidade, como se  já  não  bastasse para enfear aquele local uma sórdida favela que nos envergonha aos olhos dos americanos que nos visitam ou que nos dão a honra de residir no Rio.

Estilo então - Então o vigia de uma construção em Ipanema, não tendo sono, saiu então para passeio de madrugada. Encontrou então o cadáver de um homem. Resolveu então procurar um guarda. Então o guarda veio e tomou então as providências necessárias. Aí então eu resolvi te contar isto.

Estilo áulico - À sobremesa, alguém falou ao Presidente, que na manhã de hoje o cadáver de um homem havia sido encontrado na Lagoa Rodrigo de Freitas. O Presidente exigiu imediatamente que um de seus auxiliares telegrafasse em seu nome à família enlutada. Como lhe informassem que a vítima ainda não fora identificada, S. Ex.a, com o seu estimulante bom humor, alegrou os presentes com uma das suas  apreciadas blagues.

Estilo schmidtiano - Coisa terrível é o encontro com um cadáver desconhecido à margem de um lago triste à luz fria da aurora! Trajava-se com alguma humildade mas seus olhos  eram azuis, olhos para a  festa alegre colorida deste mundo. Era trágico vê-lo morto. Mas ele não estava ali, ingressara para sempre no reino inviolável e escuro da morte,  este rio um pouco profundo caluniado de morte.

Estilo complexo de Édipo -  Onde andará a mãezínha do homem encontrado morto na Lagoa Rodrigo de Freitas? Ela que o amamentou, ela que o embalou em seus braços carinhosos?

Estilo preciosista - No crepúsculo matutino de hoje, quando fulgia solitária e longínqua a  Estrela-d'Alva, o atalaia de uma construção civil, que perambulava insone pela orla Sinuosa e  murmurante de uma lagoa serena, deparou com a atra e lúrida visão de um ignoto e gélido ser humano, já eternamente sem o hausto que vivifica.

Estilo Nélson Rodrigues - Usava gravata  de  bolinhas  azuis  e morreu!

Estilo sem jeito - Eu queria ter o dom da palavra, o gênio de um Rui ou o estro de um Castro Alves, para descrever o que se passou na manhã de hoje. Mas não sei escrever, porque nem todas as pessoas que têm sentimento são capazes de expressar esse sentimento. Mas eu gostaria de deixar, ainda que sem brilho literário, tudo aquilo que senti. Não sei se cabe aqui a palavra sensibilidade. Talvez não caiba. Talvez seja uma  tragédia. Não sei escrever mas o leitor poderá perfeitamente imaginar o que foi isso. Triste, muito triste. Ah. se eu soubesse escrever.

Estilo feminino - Imagine você, Tutsi, que ontem eu fui ao Sacha's, legalíssimo, e dormi tarde. Com o Tony. Pois logo hoje, minha filha, que eu estava exausta e tinha hora  marcada no cabeleireiro, e estava também querendo dar uma passada na costureira, acho mesmo que vou fazer aquele plissadinho, como o da Teresa, o Roberto resolveu me telefonar quando eu estava no melhor do sono. Mas o que era mesmo que eu queria te contar? Ah, menina, quando eu olhei da janela, vi uma coisa horrível, um homem morto lá na beira da Lagoa. Estou tão  nervosa!  Logo eu que tenho horror de gente morta!

Estilo lúdico ou infantil - Na madrugada de hoje por cima, o corpo de um homem por baixo foi encontrado por cima pelo vigia de uma construção por baixo. A vítima por baixo não trazia identificação por cima. Tinha aparentemente por cima a idade de quarenta anos por baixo.

Estilo concretista - Dead dead man man mexe  mexe  Mensch  Mensch MENSCHEIT.

Estilo  didático - Podemos encarar a morte do desconhecido encontrado morto à margem da Lagoa em três aspectos: a) policial; b) humano; e) teológico. Policial: o homem em sociedade; humano: o homem em si mesmo; teológico: o homem em Deus. Polícia e homem: fenômeno; alma  e Deus: epifenômeno. Muito simples, como os senhores veem.

Fonte:
Paulo Mendes Campos. Supermercado. RJ: Tecnoprint, 1976.

Carlos Drummond de Andrade (A Fugitiva)


A última bomba H estava irredutível. De modo algum abandonaria o seu refúgio lodoso, a 750 metros de profundidade, no Mediterrâneo.

- Não faça isso com a gente - suplicavam-lhe três mil oficiais, técnicos, mergulhadores, marinheiros e praças, empenhados  há  quase  90 dias em sua recuperação, e que por fim a localizaram naquele fundo de mar, bem encolhida, bem desiludida.

- Daqui vocês não me tiram - respondeu-lhes a bomba. - O primeiro que me tocar, eu  explodo. Talvez este tempo de verbo não exista, mas pouco estou ligando à gramática de vocês. À gramática e ao resto. Estou farta! Farta!

Os expedicionários insistiam. Aquele domicílio era  impróprio para ela; não ficava bem a uma bomba nuclear, talhada para altas missões, dormir no fundo das águas, que nem peixe fugindo à caçada submarina. Que desmoralização para um artefato de 20  megatons! Era em seu próprio benefício que a estavam querendo tirar dali.

- Hmmm - resmungou a bomba, sem se deixar convencer.

- Vamos. Suas companheiras de viagem caíram em terra, não deram trabalho. Foram logo recolhidas, e até agradeceram nossa solicitude em reavê-las. Uma bomba normal gosta de voar, voar sempre sobre a terra inteira, divertindo-se com o turismo aéreo nos bombardeiros. Não é para destruir nada, nem sequer para assustar ninguém, pois vocês  viajam incógnitas. É por  prazer. E você recusa esse prazer que nós lhe oferecemos?

- Prazer! Prazer! Que prazer sente uma bomba em não explodir? Afinal, que fizeram as colegas em território espanhol?

- Coisinha à-toa. Apenas contaminaram as plantações em torno de Palomares, mas nós indenizamos os lavradores. Não queremos que nossas bombas dêem prejuízo a ninguém.  Uns pobres-diabos até ficaram radiantes: há muito tempo que não viam dinheiro, e dólar, jamais.

- Quantos mortos?

- Fora os tripulantes dos aviões que se chocaram, nenhum. Você mesma, aí dentro d'água, não assusta o pessoal. Nosso embaixador em Madri e o Ministro do Turismo da Espanha vieram tomar banho lá em cima, para provar que você não é de nada. Venha, já está ficando tarde.

- Estão vendo? Eu não sou de nada! Nenhuma bomba é de nada! Para que foi, então, que nos fizeram?

Como ninguém respondesse, ela continuou:

- Vocês, ao nos criarem, não deram somente uma nova  angústia à humanidade. A nós também nos rechearam de angústia. Ficamos ansiosas por explodir - e nada. É hoje, é  amanhã, e nunca se resolve. Acabamos ficando mais angustiadas do que as populações que se angustiam por nossa causa. E vocês fazem disso um jogo, vocês e os outros.  Estávamos com grandes esperanças no Vietnã, mas qual o quê. Vamos envelhecendo, outros engenhos nos passam para trás, amanhã a Lua será ocupada e equipada com armas fantásticas, astros e planetas entrarão no brinquedo, e nós apodrecendo por aí, sem uso, sem  préstimo.  Por  isso  aproveitei  o desastre de avião, e caí fora. Quero me livrar dos homens.

Falando, falando, deslocou-se entre as rochas, para melhor esconder-se. A turma aproveitou o movimento e fisgou-a, alçando-a à superfície, sob protesto. Esta não escapa à  sorte de voar sobre a Terra. Depois de recondicionada.

Nem elas escapam.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Caminhos de João Brandão. RJ: José Olympio, 1976.

quinta-feira, 30 de abril de 2020

Aparecido Raimundo de Souza (Romantismo Corrompido)


DONA ADRIANA DE FIGUEIREDO, setenta e dois anos, era do tipo romântica. Sonhadora. Aliás, sempre fora sonhadora. Tudo levava a sua imaginação a viajar além do alcance das vistas. Uma palavra dita aqui, outra ali, uma frase que alguém dissesse, um bichinho que pousasse na sua roupa, uma lufada de vento mais ameno que tocasse seu rosto, um raio de sol quente que a fizesse suar, uma lua bonita que surgisse resplandescente no infinito da noite, o mar, o mar, então, uau!, exercia uma onda forte em sua cabeça e a fazia navegar por terras nunca antes pisadas.

Enfim, qualquer pequena coisinha insignificante para as outras pessoas fazia dona Adriana de Figueiredo viajar  por  espaços cada vez mais espetaculosos. Seu Gabriel Figueiredo, o marido, mais velho que ela cinco anos, ao contrário da devotada esposa, nada tinha de romântico. Se mostrava vazio, longe dessas blandícias* que encantam os que vivem de pequenas melifluidades*. No geral, a criatura não se limitava a teorias, encarava sempre as coisas pelo lado positivo. Em resumo, seu Gabriel Figueiredo, na acepção da palavra, sem tirar nem "destirar", um prático de carteirinha e sindicato.

Certa manhã, ao não ver o marido sair cedo de casa, para uma viagem de um mês, três dias depois, já em clima de saudade, decidiu lhe mandar uma mensagem. Escreveu: “Amor da minha vida. Se estiver rindo, me mande um sorriso.  Se estiver chorando, me mande lágrimas. Se estiver com saudades, me mande um recadinho. Se estiver dormindo, me mande seu sonho. Quero sonha-los junto com você, e tentar fazer dele a sua melhor realidade”.

Não parou aí. Seguiu adiante: “Saiba que amo você, demais e onde quer que esteja, a distância nunca se fará pesada e densa”. Mandou. Uma hora depois o celular deu sinais de vida e dona Adriana de Figueiredo, pressurosa pela resposta, apressada para saber do companheiro de tantos anos de vida em comum, sobretudo, agitada e impaciente, com a sua ausência, leu o que a sua cara metade escrevera de volta: “Adri, estou no banheiro! O que faço?”.
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* Vocabulário (Dicionário Aurélio)
Blandícias – carícias.
Melifluidades – maneiras doces.


Fonte:
Texto enviado pelo escritor.

Humberto de Campos (A Festa da Inteligência)


Por especial deferência do sr. ministro das Relações Exteriores, foi-me permitido, anteontem, nos "Diários", tomar parte, como diplomata, nas homenagens prestadas pela intelectualidade brasileira a Sua Majestade o Rei da Bélgica. Relegado para as filas destinadas aos jovens funcionários do Itamarati, não foi sem custo que consegui aproximar-me do local distribuído aos homens de ciências e de letras, cujos paramentos, tirados às sete cores do arco-íris, davam à solenidade um tom de magnificência, de luxo, de riqueza, verdadeiramente excepcional. Ao lado dos fardões acadêmicos, faiscantes de ouro, berravam o vermelho dos capelos, o verde das murças, o negro das becas, assinalando, no tumulto das cores, os catedráticos das Faculdades de Medicina e de Direito, os membros do Instituto Histórico, os doutores da Ordem dos Advogados. E como se não bastasse o aspecto magnificente das vestimentas, cintilavam por toda a parte as medalhas, os crachás, as condecorações de todos os países do mundo, como se tivesse caído sobre aquela assembleia de sábios uma luminosa chuva de pedrarias.

A atual sociedade brasileira, educada nos costumes igualitários da República, não pode ver, entretanto, a sério, essas manifestações suntuosas da vaidade humana. Deslumbrados com o que viam, os espíritos divagavam, tontos, sem compreender a legítima expressão daquele espetáculo. Dessa verdade lamentável, tive eu vários documentos, que me causaram a mim verdadeira indignação. A minha primeira desilusão foi à entrada do Sr. barão de Ramiz Galvão, o velho e glorioso fidalgo do Império. Trajando uma casaca irrepreensível, o eminente educador trazia ao peito, do ombro à cintura, e de ambos os lados, todas as suas condecorações. Eram a da Rosa, do Brasil; a de Santiago, de Espanha; a da Ordem de Cristo, de Portugal; a da Legião de Honra, da França; a do Elefante Azul, da Pérsia; a de Estanislau, da Polônia; a da Ordem do Latrão, do Vaticano; e tudo isso no meio de passadeiras, bentinhos, cordões, amuletos, fitas, distintivos, medalhas e penduricalhos, obtidos em sessenta anos de discursos e magistério. À chegada do venerando professor, houve um deslumbramento; e o primeiro comentário, de uma senhora colocada nas proximidades do corpo diplomático, foi, logo, este:

- Meu Deus! Parece... porta de casa de brinquedos!

A entrada do desembargador Ataulfo de Paiva, da Academia de Letras, causou o mesmo pasmo, o mesmo espanto, a mesma admiração. Ornamentado com as suas dezenove condecorações, postas em destaque pela sua faixa vermelha de Cavaleiro de São Maurício e pela originalidade do seu cordão da Ordem do Dragão, da China, o ilustre magistrado estava deslumbrante. Sem perder a calma, o primeiro a registrar, com espírito, a sua situação, foi ele próprio.

- De onde vem, desembargador? - indagou, com graça, à entrada do salão, a Sra. Santos Lobo.

E ele, sorrindo:

- Da festa da Penha, excelentíssima!

Dentro, no recinto dos homens eminentes, destacavam-se, também, pela singularidade, os distintivos de Carlos Malheiro Dias. Antigo fidalgo da Casa Real Portuguesa o brilhante escritor vestia uma capa em vermelho e preto, semeada de comendas azuis, de crachás amarelos, de medalhas reluzentes, a emergirem de um oceano de fitas simbólicas, pertencentes a vinte ordens diversas. Ao vê-lo indagou uma senhora:

- Que capa é aquela do Dr. Malheiro Pias?

E a outra explicou:

- É uma capa... da "Revista da Semana", menina!

A impressão geral daquele publico republicano, foi interpretada, porém, entre tantos episódios, por uma frase, ouvida por mim no termo da festa. Comprimindo-se com arte, apertando-se com elegância, empurrando-se com delicadeza, a multidão procurava a porta de saída, quando encontrei à minha frente um grupo de moças, no meio do qual ia um cavalheiro idoso, afogado até o pescoço na sua enorme beca de professor de Direito. Oprimido de um lado, empurrado de outro. o educador defendia-se aflitamente, quando uma das filhas lembrou, compadecida:

- Porque papai não tira... o dominó?

E o Carnaval caiu na rua.

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. 1925.

quarta-feira, 29 de abril de 2020

Francisca Júlia (O Cão)


Alfredinho possuía um cão que se chamava Lobo. Era grande como os maiores da sua raça, o pelo crespo, inteiramente negro e dotado de uma coragem e força que o faziam temido por todos.

À noite, quando o soltavam no quintal. Lobo escondia-se na sombra dos muros, e aí ficava, imóvel e alerta, à espera dos ladrões. Mas estes, que lhe temiam a ferocidade, não se arriscavam a galgar o muro.

No entanto, este cão, apesar do seu aspecto feroz, dos seus olhos sanguíneos e duros, que fitavam tudo com aspereza, e da sua boca rasgada, guarnecida de dentes afiados, era manso como um cordeiro para o seu pequeno amo, que lhe alisava o pelo e lhe dava beijos no focinho.

Viam-nos sempre juntos, Alfredinho e Lobo, amigos inseparáveis, — aquele, mal sustentando-se nas perninhas fracas, este, ostentando sua corpulência de fera. Às vezes iam passear juntos até ao campo, e Lobo acompanhava o seu amiguinho, seguindo-lhe todos os movimentos, obedecendo a todos os seus gestos, num desejo de adivinhar os seus mais ínfimos pensamentos.

Alfredinho, com ser uma criança de cinco anos apenas, compreendia esta dedicação e retribuía ao seu amigo do mesmo modo, tratando-o com o maior carinho, zangando-se com os criados se lhe davam uma ração pequena ou se lha davam com grosseria.

Certa vez, um homem rico, muito amante de cães, dirigiu-se ao pai de Alfredinho e ofereceu-lhe uma soma avultada para a compra de Lobo.

O pai recusou-se a vendê-lo, dizendo:

— Este cão é o melhor amigo do meu filho, acompanha-o por toda a parte. Se algum dia este digno animal perecer, meu filho não poderá sobreviver-lhe, tal será o desgosto que há de sentir.

O homem foi-se embora, não sem ter lançado de soslaio um olhar invejoso sobre o cão.

De fato, não havia ninguém que não admirasse Lobo, o seu corpo volumoso ornado de um pelo crespo e macio, as suas patas enormes armadas de unhas pontudas e curvas, como as de um leopardo, e o seu peito largo e forte como uma couraça.

Alfredinho, quando tinha três anos, era um menino doente, extremamente débil.

Seu pai, que o amava muito, fazia-lhe todas as vontades, satisfazia-lhe todos os desejos, com medo de contrariá-lo ou aborrecê-lo. Alfredinho, porém, dotado de sentimentos generosos e boa alma, nunca abusou, como fazem geralmente as crianças da sua idade, das delicadezas de que era cercado.

Nessa época, num dia de muita chuva, em que o vento passava impetuosamente em uivos prolongados, Alfredinho, trêmulo de susto, ouviu um gemido triste que vinha da rua. Mandou ver o que era.

— Era um cão muito magro, disseram, e coberto de lepra.

Alfredinho. piedoso como era, pediu ao pai com os olhos cheios de lágrimas que recolhessem o pobre cão, que lhe dessem agasalho.

O cão entrou, encharcado da água da chuva, tremendo de frio. Seu aspecto era repugnante: magríssimo, as costelas salientes, imundo e coberto de lepra.

Todos recusaram-se a recebê-lo.

O menino tanto insistiu, chorou e bateu o pé, que o pai resolveu, não sem escrúpulo e nojo, ficar com o cão.

Deram-lhe o nome de Lobo pelo ar selvagem que tinha.

Pouco a pouco, alimentando-se bem, sujeitando-se ao tratamento da lepra que lhe cobria o pelo, o cão foi engordando, e em pouco tempo tornou-se um animal lindo e afagado por todos.

Durante o dia seguia Alfredinho aos passeios, sacudindo a cauda, fazendo-o rir com suas graças; à noite soltavam-no no quintal para defender as galinhas e as hortaliças do assalto dos malfeitores.

O seu pequeno amo, uma manhã, depois de haver pedido licença ao pai, convidou-o a um passeio ao campo, para caçar borboletas e cigarras.

O cão acompanhou-o.

Alfredinho corria pelos atalhos, escondia-se nas touças de verdura, tentando iludir a vigilância de Lobo.

Cansado, porém, de tanto brincar, deitou-se na relva e adormeceu.

O cão deitou-se também, alerta sempre contra qualquer perigo, disposto, se fosse preciso, a defender o seu querido amiguinho.

Nesse instante uma cobra traiçoeira, arrastando-se por entre as folhas, aproximou-se do lugar em que estavam, pronta para picar a criança e matá-la com sua peçonha mortal.

Lobo, que a tinha pressentido, voltou-se de repente e atacou-a em botes furiosos.

Matou-a. Enquanto a serpente estava estrebuchando no chão, crivada de dentadas, o cão, que tinha sido picado, gemia, penetrado de dores lancinantes.

Pobre e fiel animal!

Minutos após, Lobo, arrojando-se no chão, esgotado de forças, chegou até onde estava o seu amiguinho, lambeu-lhe as mãos carinhosamente e morreu num doloroso gemido.

Fonte:
Poeteiro Iba Mendes

J. G. de Araújo Jorge (O Canto da Terra) 9


PALAVRAS AO HOMEM CÉTICO
(A Monteiro Lobato - 1943)
  
Não troques ( tu que realmente tão pouco tens de teu,
tu que não tens nada além do ar que respiras,
do sol que te aquece, das estrelas do céu,)
- não troques por nada deste mundo
oh! meu irmão,
o teu direito de sofrer, de lutar e de morrer,
pelo teu pensamento
e pela tua convicção!

Por em verdade te digo, que nada vale mais
do que esse sofrimento amplo e profundo,
que nada vale mais que a tua liberdade
não importa que esteja sujeita aos rigores da vida
ou à intempérie do mundo!

Vive por ela, sofre por ela, morre por ela,
e terás para a tua vida, ou para a tua morte
a mais sublime razão,
e por pior que a tua vida tenha sido,
terá sido uma Vida, e terás sido um Homem! oh! meu irmão!

Não troques jamais os percalços e os sofrimentos,
as incertezas e os perigos
da tua independência,
nem tolhas a ousadia da tua consciência
e as ânsias do teu coração,
- por esse bem-estar da subserviência
ou pelo comodismo humilhante e bastardo
de qualquer escravidão!

Que te bastem, se preciso, o ar, o sol, as estrelas,
as alvoradas e os crepúsculos, o mar e o céu,
que não são de ninguém,
mas não vendas tua alma por um pouco de ouro
nem troques teu destino por uma migalha
que ao te matar a fome
te destrói também!

Que te bastem, se preciso, os caminhos do mundo
que nunca tiveram dono
desde a mais remota idade,
e que num mundo a seguir, em rebanhos, tocado,
pejas tu, o animal indócil, desgarrado!
- da liberdade!


Não traias teu ideal por fraqueza e impaciência,
antes vela o silêncio digno, e atento, aguarda
o instante em que terás de lutar por aquilo
que é de todos os homens, e portanto, é teu!
Que, às vezes, como o sol, a liberdade tarda
mas como o sol também, ela não falha nunca ,
e será tanto mais bela
quanto mais negra a noite que a antecedeu!
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e mil vezes bendito serás, na tua espera ansiosa, na tua revolta,
e no teu viril insubordinamento,
porque então compreendeste o silêncio da nossa dor
e a beleza heroica
do nosso sofrimento!
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PALAVRAS AO POETA DO MEU SÉCULO
(A Eudes Barros - 1940)

No teu verso
existirá a neurose de todos os homens esgotados
ou excitados
pelos prazeres,
e a neurose de todos os seres
exaustos
pelo trabalho,
pela ambição!

E a vertigem do moto-contínuo das coisas
na terra
e nos espaços!
E a volúpia doentia dos seres livres ou recalcados
nos segundos de loucura
e de sublimação . . .

E a revolta de todos os que já sentiram fome
e dos que ainda à sentirão!

E a amargura dos que não encontram nas noites frias,
às horas mortas,
senão o vão das portas
e as escadarias...

E a tragédia de mil raízes profundas e sombrias
que bruxoleia nos olhos baços
das proxenetas*...
(como o sol, quando põe estilhaços
de luz)
que parecem laivos de pus
- na água podre das poças d'água nas sarjetas!...
- na água podre das poças d'água nos pauis!

E a ousadia e o destemor da estirpe incurável
dos sonhadores e terroristas,
dos agitadores e incendiários,
dos teóricos e utopistas,
e dos revolucionários...
E o estoicismo e a abnegação dos santos, dos apóstolos
e dos missionários!

A fé cristã dos mártires, a força dos condutores
de povos
e o entusiasmo, e a coragem, e a eloquência dos novos!
E a angústia dos que já tiveram um lar
e já tiveram trabalho,
os que vivem na vida andando a esmo
numa ansiosa vigília
- os que não têm mais lar
mas ainda têm família!...

No teu verso existirá
o desespero dos anônimos e desgraçados,
dos forçados à impotência
e em verdade incapazes,
dos que nasceram escultores e perderam as mãos,
dos que trouxeram o tormento surdo
do gênio de Beethoven,
os que, adorando a música e os seus sons, não ouvem...

E a agonia cruciante dos que têm olhos para ver,
coração para sentir,
mãos para ofertar
- e, suprema e fatal de todas as ironias!
não podem chorar
nem socorrer
e só podem ofertar as tristes mãos vazias...

E a desgraça dos que chegaram ao mínimo de humanidade
pensando na dor alheia,
para sublimá-la na explosão inútil de uma obra
frágil como a areia...

No teu verso existirá a incoerência,
o paradoxo, o desconexo,
a miséria, a opulência,
e o flagrante de todas as desigualdades
e injustiças
de um século complexo...

E por isso o teu verso será o instantâneo vivo
da própria evolução,
será o monólogo, doloroso, hamletiano,
de um tempo desumano!
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PALAVRAS AO TRABALHADOR BRASILEIRO

(Aos que lutam e morrem na Baixada Fluminense)
(A Procópio Ferreira – 1941 )


Glória a ti, trabalhador obscuro, trabalhador brasileiro,
- glória aos teus músculos, à tua força, à tua vontade  
e à tua abnegação,
desconhecido obreiro
da nacionalidade
e da Civilização!  

Glória à tua coragem cabocla, ao teu desprendimento
cheio de lances épicos e bravios,
e ao teu construtivo heroísmo
tanta vez ignorado,
- glória a ti que arrostaste* as febres, as sezões*, o impaludismo*
sem desmorecimento
e repuseste em seu leito as águas de cada rio  
transviado!

A ti que mergulhaste o corpo nos pântanos infectos
e nos lodos doentios,
cheios de miasmas* mortais e multidões de insetos,
na decomposição dos corpos dos cadáveres
dos rios...

Glória a ti, que transformaste milhares, milhares e milhares,
muitos milhares de hectares
de terras incultiváveis e abandonadas
num imenso celeiro?
Glória a ti, à ferramenta humilde que põe calos de ferro
em tua mão,
glória à tua enxada
abençoada,
oh! trabalhador brasileiro!
oh! meu irmão!

Dragaste o pantanal e revolveste a terra,
e saneaste a terra, e transformaste a terra
estéril,
a gleba malsã*,
- num campo redivivo, no ventre largo e fecundo
de um novo vale, de um novo mundo
de Canaã!

Ressuscitaste assim, e libertaste assim, prisioneiras regiões
do império das maleitas,
e hoje livres os chãos dos matagais hirsutos
livres os campos das cheias, das inundações,
- as terras são promessas de colheitas
e as sementes serão flores, serão frutos
na festa das plantações!

Glória a ti, - obreiro incansável e obscuro
que a essas regiões perdidas, inúteis e sem futuro,
a essa terra escrava
onde a estrada não chegava
onde a raiz não medrava
onde o homem não punha o pé,
- levaste a tua força, o teu trabalho, a tua fé,
o teu labor, titânico, profundo,
o teu suor,
e fizeste do nada, um mundo! e farás desse mundo
um mundo ainda maior!

Glória a ti que repetiste nas carnes amaldiçoadas
daqueles chãos vazios, daqueles mortos pauis*,
(que eram como feridas gangrenadas
enchendo a terra de pus,)
- o milagre da vida, o milagre do Lázaro
da história de Jesus!

E eis que tudo ressurge, que os campos palpitam de seiva,
que as terras todas vibram ressuscitadas,
e desaparecem até, das chagas já curadas,
os sinais e as cicatrizes!
.................................................................................................

Amanhã
sobre os chãos despertos e resolutos
sobre os chãos enxutos,
ao trabalho de cada dia
e em horas mais felizes,
vergarão os galhos verdes com as mãos pesadas de frutos,
e dentro da terra úmida, numa alvoroçada alegria
se entrelaçarão as raízes!

Amanhã
os trilhos marcarão na epiderme do solo
a imagem infinita do progresso!

Os campos se encherão de penachos bizarros
e passará na noite a visão instantânea de um "expresso"
serpenteando na sombra o cordão luminoso
dos seus carros;
e pelas tardes bucólicas e platônicas
se ouvirá nos caminhos a música feliz das rodas sinfônicas
de outros carros...

Amanhã
continuarás ainda em tua luta
eterna e ininterrupta, ;
multiplicando as culturas, alargando horizontes,
replantando florestas, perfurando montes,
abrindo leitos de rios e algemando-os com as pontes,
e aproveitando as energias de suas forças dispersadas
dando rumo e correnteza às águas estagnadas!

Amanhã
continuarás perfilando pelos campos, pelas encostas
até onde a vista alcançar,
- as divisões dos cafezais de farda verde e de botões vermelhos
que parecem marchar,
- e os batalhões dos algodoais de capacetes brancos,
e os extensos canaviais de estandartes ao vento,
e os verdes milharais de espada em riste, no ar!

Até os louros trigais, filhos de velhas raças emigrantes
altivos e belos      
ondeando pelos montes, aos bandos, aos mil,
e que há bem pouco chegaram de suas terras distantes       
marcharão também com seus penachos amarelos
da cor do sol do Brasil!

Hás de ver que todos se perfilarão
ao toque de reunir dos teus músculos
maiúsculos,
na parada do trabalho que te engrandeceu,
do trabalho que marcha, que avança e se expande,
porque o Brasil é grande!
porque o Brasil é teu!

Na tua fronte plebeia
o suor de cada dia escreve uma epopeia,
e escrevem sobre a terra um capítulo heroico
os teus pés sempre nus,
- glória a ti, trabalhador obscuro, trabalhador brasileiro,
tens o peito viril de esplêndido guerreiro
condecorado de sol!
condecorado de luz!
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Vocabulário (Dicionário Aurélio)
Arrostaste – Enfrentaste.
Impaludismo – Malária.
Malsã – insalubre, maléfica, doentia.
Miasma – Emanação fétida oriunda de animais ou plantas em decomposição.
Pauis – (plural de paul) Pântanos.
Proxeneta – Intermediário, por dinheiro, em casos amorosos.
Sezões – Febres intermitentes ou periódicas.


Fonte:
J.G. de Araújo Jorge. O Canto da Terra. 1945.

Fernando Sabino (Eloquência singular)


Mal iniciara seu discurso, o deputado embatucou:

- Senhor Presidente: não sou daqueles que...

O verbo ia para o singular ou para o plural? Tudo indicava o plural. No entanto, podia perfeitamente ser o singular:

- Não sou daqueles que...

Não sou daqueles que recusam... No plural soava melhor. Mas era preciso precaver-se contra essas armadilhas da linguagem - que recusa? – ele que tão facilmente caía nelas, e era logo massacrado com um  aparte.

Não sou daqueles que... Resolveu ganhar tempo:

- ... embora perfeitamente cônscio das minhas altas responsabilidades, como representante do povo nesta Casa, não sou...

Daqueles que recusa, evidentemente. Como é que podia ter pensado em plural? Era um desses casos que os gramáticos registram nas suas questiúnculas de português: ia para o singular, não tinha dúvida. Idiotismo de linguagem, devia ser.

- ... daqueles que, em momentos de extrema gravidade, como este que  o Brasil atravessa.

Safara-se porque nem se lembrava do verbo que pretendia usar:

- Não sou daqueles que...

Daqueles que o quê? Qualquer coisa, contanto que atravessasse de uma vez essa traiçoeira pinguela gramatical em que sua oratória lamentavelmente se havia metido  logo de saída. Mas a concordância? Qualquer verbo servia, desde que conjugado corretamente, no  singular. Ou no plural:

- Não sou daqueles que, dizia eu - e é bom que se repita sempre, senhor Presidente, para que possamos ser dignos da confiança em nós depositada...

Intercalava orações e mais orações, voltando sempre ao ponto de partida, incapaz de se definir por esta ou aquela concordância. Ambas com aparência castiça. Ambas legítimas. Ambas gramaticalmente lídimas (legítimas), segundo o vernáculo:

- Neste momento tão grave para os destinos da nossa nacionalidade.

Ambas  legítimas? Não, não podia ser. Sabia bem que a expressão "daqueles que" era coisa já estudada e decidida por tudo quanto é gramaticóide por aí, qualquer um sabia que levava sempre o verbo ao plural:

... não sou daqueles que, conforme afirmava...

Ou ao singular? Há exceções, e aquela bem podia ser uma delas. Daqueles que. Não sou UM daqueles que. Um que recusa, daqueles que recusam. Ah! o verbo era recusar:

- Senhor Presidente. Meus nobres colegas.

A concordância que fosse para o diabo. Intercalou mais uma oração e foi em frente com bravura, disposto a tudo, afirmando não ser daqueles que...

- Como?

Acolheu a interrupção com um suspiro de alívio:

- Não ouvi bem o aparte do nobre deputado.

Silêncio. Ninguém dera aparte nenhum.

- Vossa Excelência, por obséquio, queira falar mais alto, que não ouvi bem - e apontava, agoniado, um dos deputados mais próximos.

- Eu? Mas eu não disse nada...

- Terei o maior prazer em responder ao aparte do nobre colega.  Qualquer aparte.

O silêncio continuava. Interessados, os demais deputados se agrupavam em torno do orador, aguardando o desfecho daquela agonia, que agora já era, como no verso de Bilac, a agonia do herói e a agonia da tarde.

- Que é que você acha? cochichou um.

- Acho que vai para o singular.

- Pois eu não: para o plural, é lógico.

O orador prosseguia na sua luta:

- Como afirmava no começo de meu discurso, senhor Presidente...

Tirou o lenço do bolso e enxugou o suor da testa. Vontade de aproveitar-se do gesto e pedir ajuda ao próprio Presidente da mesa: por favor, apura aí pra mim como é que é, me tira desta.

- Quero comunicar ao nobre orador que o seu tempo se acha esgotado.

- Apenas algumas palavras, senhor Presidente, para terminar o meu discurso: e antes de terminar, quero deixar bem claro que, a esta altura de minha existência, depois de mais de vinte anos de vida pública.

E entrava por novos desvios:

- Muito embora... sabendo perfeitamente... os imperativos de minha consciência cívica. ...Senhor  Presidente... e o declaro peremptoriamente... não sou daqueles que...

O Presidente voltou a adverti-lo de que seu tempo se esgotara. Não havia mais por onde fugir:

- Senhor Presidente, meus nobres colegas!

Resolveu arrematar de qualquer maneira. Encheu o peito e desfechou:

- Em suma: não sou daqueles. Tenho dito.

Houve um suspiro de alívio em todo o plenário, as palmas romperam. Muito bem! Muito bem! O orador foi vivamente cumprimentado.

Fonte:
Fernando Sabino. A Companheira  de  Viagem.  RJ: Sabiá, 1972.

terça-feira, 28 de abril de 2020

Arthur de Azevedo (Uma Carga de Sono)


    Como o Alfredo tinha que partir para Minas às 5 horas da manhã, entendeu que o meio mais seguro de não perder o trem, o que mais de uma vez lhe sucedera, era passar a noite em claro.

    Assim foi. Esteve no teatro até meia-noite, foi cear com alguns amigos, demorou-se no restaurante até as 2 horas, deu um passeio de carro pela Avenida Beira-Mar e, às 5 horas, estava comodamente sentado no trem, de guarda-pó e boné de viagem.

    Partiu o carro ainda ao lusco-fusco, só ali pelas alturas do Encantado o sol resolveu entrar lentamente pelas portinholas.

    O Alfredo começou então a examinar um casal que estava sentado diante dele. Começou pelo marido: era um sujeito vulgaríssimo, que se parecia com todo o mundo, e tanto poderia ser negociante como empregado público, industrial, etc. Tinha uma dessas caras inexpressivas, que se adaptam a todas as profissões.

    Passou o Alfredo a examinar a senhora e não pôde conter um gesto de surpresa reconhecendo nela uma bonita mulher que um dia encontrara num bonde das Laranjeiras, e o namorara escandalosamente.

    Havia oito meses que o Alfredo a procurava por toda a parte, passando em vão repetidas vezes pela casa daquele bairro onde ela entrara quando saiu do bonde.

    O não tê-la encontrado nunca mais lhe exacerbara a impressão amorosa deixada no seu espírito, mais que no seu coração, por aquela formosa mulher, e não se pode exprimir a alegria que lhe produziu a presença dela naquele trem, embora acompanhada por um indivíduo que, pelos modos, tinha direitos adquiridos sobre ela.

    A desconhecida animou o rapaz com um desses sorrisos com que as mulheres, num segundo, se entregam de corpo e alma a um homem, e como os dois namorados não podiam apertar a mão um do outro, serviram-se dos pés como intérpretes dos seus sentimentos. Felizmente o Alfredo não tinha calos, que, se os tivesse, ficariam em petição de miséria.

    Era impossível qualquer outra correspondência que não fosse aquela, porque o marido não arredava pé dali. O Alfredo alimentava uma vaga esperança de que ele descesse na estação de Belém para tomar café, mas qual, o homenzinho era inamovível.

    Na Barra do Pirai o casal subiu ao restaurante para almoçar, e o Alfredo subiu também, mas não lhe foi possível chegar à fala.

    Depois do almoço, o pobre namorado começou a sentir os efeitos da noite passada em claro: as pálpebras pesavam-lhe como se fossem de chumbo, e ele fazia esforços heroicos para não dormir; mas o sono foi implacável, e, quando o trem passou por Juiz de Fora, já ele dormia a sono solto, esquecido dos olhos e do pé da sua bela companheira de viagem.

    Foi perto de Palmira que o desgraçado acordou, e - oh, desgraça! - estavam vazios os dois lugares defronte dele. A moça desaparecera... quando?... onde?... em que estação?... Era impossível sabê-lo!

    O Alfredo passou os olhos estremunhados por todo o vagão, na esperança de que ela e o marido houvessem simplesmente mudado de lugar. Nada!.

    Só então reparou que tinha na mão um anúncio de hotel, desses que em cada estação atiram aos passageiros.

    Ele dispunha-se a deitar fora esse pedaço de papel inútil, quando reparou que nas costas do anúncio havia qualquer coisa escrita a lápis, com letra de mulher.

    E o Alfredo leu: "Quem ama não dorme."

    Nunca mais a viu.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos Vários.

Carlos Ribeiro Rocha (1923 – 2011)


Um dos mais notáveis poetas do Brasil. Nascido na cidade de Ipupiara, Bahia, próximo à Chapada Diamantina, em 4 de novembro de 1923, faleceu em 27 de novembro de 2011, em Salvador, Bahia.

Carlos Ribeiro Rocha é no dizer do sociólogo e crítico literário, Mário Ribeiro Martins, “o poeta da natureza, para quem a oportunidade não sorriu, mas cuja poesia é um sorriso eterno.”

Filho de Manoel Ribeiro dos Santos e de Maria Ribeiro. Nascido em Ipupiara, foi registrado em Gentio do Ouro, Bahia. Foi criado pelo seu pai adotivo Herculano Rocha e dona Bibi. Durante muito tempo viveu em Santo Inácio, Bahia. Mudou-se para Xiquexique, tornando-se contador. Transferiu-se para Salvador e depois para Itamaraju, Bahia, onde um de seus filhos é Juiz do Trabalho. Em 2002, retornou a Xiquexique, residindo ao lado de suas filhas Maria Luiza e Eunice. Em 2010 foi residir em Salvador.

Autodidata, o poeta baiano, com o apoio da comunidade, fundou em Santo Inácio, o Ginásio Diamantino (CNEC), do qual foi professor de Português durante dois anos seguidos. No início de sua carreira também fora professor municipal e particular em Ibitunane, Ibipeba e Ipupiara.

Por concurso público, tornou-se Coletor Federal, tendo residido em Santo Inácio, Xique-Xique, Itamaraju e Salvador, mas foi no interior da Bahia, onde teceu a maioria dos seus versos.

Cronista, sonetista e trovador fluente, aprendeu com a natureza e com os livros, sem frequentar, contudo, as salas de um Colégio, como ele mesmo afirma em suas trovas:

Colégio sem endereço/é o que me fez bacharel…/Nas trovas que sempre teço/é que brilha o meu anel.” “Sem Colégio, encontro tudo/ no livro da Natureza,/e como não tive estudo,/sou ave no visgo presa.” “O nome do meu Colégio?/Ninguém suas letras soma:/Nunca tive o privilégio/de receber um diploma.

Editou alguns livros, entre outros: “Harpa Sertaneja”, “Pingos De Mim”, “Meditações, Lições”, “Café Requentado”, “28 Sons” e “Coroa De Sonetos”.

O poeta não se prendeu a formas e a nenhuma corrente literária, por isso sua poesia é gostosa de ser lida, é harmônica e livre, como ele mesmo diz: “Não sou parnasiano, não pertenço/a escola alguma da arte modernista,/porquanto escrevo como sinto e penso… Se anel não tenho, mesmo de ametista,/ nas maravilhas desse livro imenso/ hei de encontrar a glória da conquista.

Sensível aos problemas brasileiros, especialmente do trabalhador simples e desvalido do Nordeste, empunha sua pena e diz: “ Pega da enxada – seu fuzil sagrado, e as ervas más fulmina do roçado, cantando sempre a chula da vitória. Eu te amo, lavrador abandonado… Se não podes por mim ser amparado, quero, ao menos, contar a tua história!

Não esqueceu, porém, das crianças abandonadas: “Cheirando cola, sem comida, sem escola, sem um barraco ao menos como lar, dá pena ver meninos a cumprir duros destinos, só aprendendo a roubar!… Faz vergonha aos Presidentes ver meninos nas vielas, com as bocas cheias de dentes e sem nada nas panelas”…

Com um toque de mestre, ele fala dos garimpeiros: “Ousado e firme, o garimpeiro busca,/no seio virginal do solo amado,/ a gema rara, que deslumbra e ofusca,/apagando as agruras do passado… Aquela joia pondo sobre a palma,/o altivo garimpeiro sente na alma/a brisa da ventura, tão serena! Também o bardo, com valor e calma,/um verso vai buscar no fundo da alma,/coberto ainda de saudade e pena!

Muito mais se poderia dizer da poesia de Carlos Ribeiro Rocha, que, não obstante ter participado do Anuário de Poetas do Brasil, Rio de Janeiro, organizado pelo saudoso Aparício Fernandes, em 1978, volume 1 e 1979, volume 4, infelizmente só é conhecido na Bahia e nos meios alternativos, onde goza de prestígio e do merecido respeito, mas seu nome consta no Dicionário Bio-Bibliográfico Regional do Brasil, do escritor Mário Ribeiro Martins, no site usinadeletras.com.br em Ensaios.

Membro de diferentes entidades sociais, culturais e de classe, entre as quais, Academia Anapolina de Filosofia, Ciências e Letras, Ordem Brasileira de Poetas Sonetistas, Clube Baiano de Trovas, Academia Brasileira de Trova. Fundou, juntamente com outros confrades, a Academia de Letras de Xiquexique, onde ocupou a Cadeira 01, sendo seu Presidente.

Fonte:
Filemon F. Martins. Carlos Ribeiro Rocha e sua poesia. Disponível em Usina de Letras.

Ruth Guimarães (Os Três Desejos)


Um velho e uma velha, numa noite de frio, de muito frio mesmo, quando os animais se extanguiam em suas tocas, e o vento descabelava as árvores, sentaram-se diante de um bom fogo de lenha, na taipa do fogão.

Sentaram-se e ficaram. Não conversavam, pois não tinham assunto. Pouco saíam de casa, não trabalhavam, a não ser na sua rocinha, não frequentavam a casa dos outros, não liam jornais, nem livros, nem iam ao cinema, nem a teatro, não viajavam. Portanto, não tinham assunto. Deixaram-se estar muito calados, espiando as alegres labaredas, e esfregando de vez em quando as mãos engelhadas (envelhecidas). Foi ficando tarde, e eles não se animavam a ir para a cama, onde não se aqueceriam os seus velhos ossos, por falta de cobertores. Havia mais: a cabana tinha frinchas por todos os lados. Somente diante do fogo estavam bem. E assim foram ficando.

Já fazia muitas horas que estavam calados, olhando o fogo. A lenha se consumiu, no lugar das chamas ficou um brasido (grande quantidade de brasas) vermelho, alegre, com uns estalidos frequentes, o ar acima dele cintilava, relumeava, parecia vivo, o fogo era como um duendezinho que segredava coisas.

Sentiram fome. O velho olhava desconsolado do brasido para o fumeiro, onde não se pendurava nem um triste pedaço de chouriço. A velha seguiu-lhe o olhar e pôs em palavras o pensamento de ambos:

- Que bom, se caísse nesse brasido um pedaço bem grande de linguiça de carne de porco, temperada com uma pimentinha do reino e alho e cebola. E caindo, começasse a chiar, estalando, o cheiro se espalhando pela casa inteira. Ai, como havia de ser delicioso comê-la!

Nessa hora, os anjos do céu estavam dizendo amém. No mesmo instante caiu na brasa, tal como a velha dissera, um pedaço bem grande de linguiça de porco. Grossa, gordurenta, os pedaços de toucinho aparecendo, através da tripa fina, transparente, bem curada e seca. A linguiça se retorcia, assando, e o cheiro se espalhou, de bom tempero e de vianda (carne) curtida como se deve. Engoliam os velhos em seco, antegozando o momento de manducar (comer) o bom-bocado, quando o velho se lembrou de uma coisa em que ainda não pensara. Com efeito, se o pedido de linguiça fora tão prontamente atendido, um outro pedido, de dinheiro, por exemplo, seria atendido no momento, do mesmo modo.

– Estúpida – rosnou para a mulher. – Pedir linguiça. Bem se vê que você nasceu pobre, num monte de lixo. Por que não pediu riqueza, não pediu joias, não pediu dinheiro? Por que?

A velha se encolheu:

- Que sabia eu de pedidos? Como podia adivinhar que… que…

- Estúpida – tornou a gritar o velho, exasperado. - Sabe o que eu queria?

E antes de raciocinar, levado pela raiva, formulou o segundo desejo:

- Que essa linguiça saísse das brasas e se pendurasse no seu nariz!

O pedaço de linguiça deu um volteio, subiu e, diante do velho estupefato, grudou-se ao nariz da mulher.

– Uai! – berrou a mulher.

Agarrou-se à linguiça com as duas mãos, puxou, o velho foi ajudá-la.

– Aiaiaiaiaiai! Ai ai!

Puxa que puxa, a linguiça nada de sair.

A velha, desesperada, gritou:

- Eu quero já já, que essa linguiça…

- Não! – gritou o marido, tapando-lhe a boca com a mão. – Não. Vamos pedir uma coisa mais valiosa. Mulherzinha do meu coração! Deixa a linguiça aí, que não está incomodando tanto. Vamos pedir uma bonita casa.

– Não! – berrava a velha.

– Então um terreno com um formoso lago no centro.

– Não.

– Então uma arca cheia de moedas de ouro.

– Não e não.

Aproveitando-se de um momento em que o marido se distraiu e não teve tempo de lhe tapar a boca, ela falou, depressa:

- Quero que se desprenda do meu nariz essa linguiça.

E assim, viram eles satisfeitos os seus três desejos.

Fonte:
Ruth Guimarães. Lendas e Fábulas do Brasil. 1964.

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Aparecido Raimundo de Souza (Infinita às Latitudes)


(Obs. do Blog: As palavras com asteriscos, o significado está no vocabulário ao final do texto)
 
Para Ellen, minha neta, com uma dúzia de velinhas esta noite...

ELLEN TEM UM SORRISO VEROSSÍMIL que me encanta mais que qualquer joia preciosa de altíssimo valor. Quando estou a seu lado, traço caminhos incógnitos, dentro de sendas que ainda não foram percorridas. Embora velho na idade, com o acúmulo de décadas sobre os costados, me hipnotizo diante de pequenas coisas corriqueiras, e volto a ser menino embalado na energia das suas primaveras. Às vezes, me assemelho a folhas soltas ao vento, espalhadas como meses de um ano anfigúrico* e assombrado.

Apesar desse incidente, o destino cansado dos meus janeiros passados, se endireitou e se aprumou. Criou vida nova dentro das picadas que percorremos mundo afora. Belezas insuspeitáveis desfraldaram formas eloquentes e afloraram, espavoridas, rugindo como feras circunspectas me fazendo esquecer a fadiga dos dias tristes e enfadonhos, me desmemorizando completamente dos momentos lúgubres e consternados e à espera de um milagre que parecia impossível. Um insólito que não se fez esperar e se iniciou prodigioso quando ela nem pensava em ser concebida na barriga da mãe. 

A vozinha dela... Só o sussurro da sua fala chegando suave em meus ouvidos se faz bastante para me inebriar, dando a impressão de perceber, ao longe, uma espécie de cantar melodioso como um viveiro de pássaros.  Me lembro como se fosse hoje... Num dado instante tresloucando plenitudes, ela nasceu. Coroou choramingando e se faz milagre e se expandiu como partículas desprendidas de brechas taciturnas. Com o passar do tempo, abriu novos desvãos, fazendo surgir, magnânimes, entre receios e mistérios, uma nova e cálida esperança, esperança até então destituída de brilho e cor. 

Nesse carrossel girando em meio a um parque das emoções, mais de uma década se consumiu. A minha princesa, num cotidiano que se renovou a cada minuto, seguiu faceira, ilustrando, com a sua meiguice, o quadro do meu agora, fazendo, ao deslizar meticuloso de sua mão sobre o mágico pincel, que a paisagem entojada* do meu porvir fosse mais sutil, elegante e meticulosamente sonhadora. Talvez até mais branda... Como chuva benfazeja lavando e iludindo meu cansaço de pés descalços e claudicantes, ela quem sabe mais à frente, mais à depois, me arranje, junto às benignidades do Eterno, a chave-chance, para que o meu anfêmero*, por aqui, seja mais gostoso de ser vivido.

Doze anos atrás, Ellen chegou arrebentando fadigas e rabugices. Preencheu espaços vagos dentro da solidão que me sufocava o direito de ser feliz. Num passe de suntuosa galardia, coagulou as minhas dores, solidificou as angústias, sarou meus machucados abertos e renovou, com forte dose de adrenalina a alma espuriada*, ao tempo em que tendenciou o meu agora-hoje envolto em grossas camadas de tristezas e dissabores, num grandiloquente estado novo, como se eu tivesse renascido, inteiro e intocável, noutra encarnação espiritual.

A danadinha não parou por aí. Viajou mais longe. Soube agitar com gestos imperceptíveis as minhas particularidades. Desbancou as dependências carentes que me acorrentavam. Modificou, num piscar de gestos ternos, meus domínios e habitações, colocando,  em  lugar (do que até então se fazia negrura, treva e sombra), uma luminosidade resplandescente, contagiosa, imensurável e perene. De súbito, meu corpo compungidamente escravizado e prisioneiro, se  safou do recluso em que se achava encarcerado.

Um ser forte e remoçado dentro de mim se avivou, se agigantou e se desprendeu, sobretudo se desagarrou da subjugação, do amarrado, do tolhido de movimentos.  Em razão disso, de inopinado, como bomba de pavio aceso, explodi.  Revivi, renasci, me reformei dos pés à cabeça, investido nas brasas incandescentes dessas horas pungentes que se multiplicaram dentro do comprazimento que passou a fluir intermitentemente no interior de minha pequena e agora imensa alma e,  de roldão,  se  abriu e se alargou em clima de festa.

Na mesma agulha da bússola do tempo, a aura dos meus percalços, até então obscurecida e adoentada por uma insatisfacão esquisita, igualmente se livrou do horror, e reacendeu como estrela de primeira grandeza no absoluto do meu olhar. Deixei de ser um palhaço obumbrado* com o incêndio do circo, um qualquer, sem eira nem beira, peso morto e cativado, pomo das desavenças que eu mesmo criei em meu próprio derredor chumbado aos grilhões de uma espécie rara de filariose galopante. Estou, pois, graças a ela, vivendo num gozar de sopros livres. Abandonei, num desvio insulado, as elocubrações desnecessárias que me apoquentavam os  sentidos. 

Mudei o curso dos meus horizontes. Ellen me fez liberto. Deixei de ser pedra atada a cânhamo no pescoço das minhas imbecilidades. Percebi, a tempo, que não valia a pena morrer num mar revolto em solidariedade a um afogado intransigente. Eu precisava seguir em frente, viver. Viver por mim, por ela. Viver intensamente. Afinal de contas, a minha mocinha se tornou meu objetivo maior, a parcela viril das minhas alacridades*, meu respirar de alento, meu resistir fervoroso, enfim, meu  minuto imperceptível. Ellen versejou a solmização* do meu novo canto de paz, e nesse momento ocupa o lugar mor do meu irrepetitível nesse corre-corre que às vezes ainda tenta me tirar do sério.

Tem essa linda e encantada garotinha, o dom, o condão  mavioso de multiplicar meus pensamentos acima da gravidade de qualquer instante que pense em me fazer desanimar. Por ela, agora e sempre, viajarei dentro de meus devaneios a mil por hora. Transpassarei abismos verticais sem limites, ao derradeiro em que sentirei, no coração, o desejar irrequieto e palpitante da minha felicidade se agitando, fremente, frenética, excitada, ebulitiva, tempestuosa e arteira, como bandeira ao sabor do conflagrado. Ellen, doze anos atrás, germinou de Érica, a minha primeira filha e, além de um pedacinho do meu delicioso presente de Deus, se fez neta também e mais que isso, virou filha e neta. Neta e filha.

Se faz, se fez, mais que a soma de duas. Se tornou múltipla, tátil, dentro do meu espírito de avô coruja, de pai bobão, avô babão, adulador, derretido, que voltou a ser criança grande diante da sua irrequietabilidade moleca. Ellen é proprietária de visões que cingem o mundo. É dona de sorrisos que fazem renascer o amor a cada tocar de pele na sua melhor forma de expressão. Essa pétala de flor rara e maviosa, vai um pouco além do impossível: generosamente benevolente, a minha Ellen enfeita meus dias pósteros.

Tornou mais coeso esse segredo lacrado às minhas horas. Aqueceu como se o astro-rei lá do divorciado firmamento decorasse, cá embaixo, um novo céu à minha imaginação de avô. Nesse fundir de fortes emoções, eu pai, avô, avô, pai... Posterguei  e ainda agora, adio, abjuro, denego. Me perco sem saber como não ser Feliz e Realizado. De fato, sou realizado e feliz. Na verdade, embora prosperamente entrelaçado e irmanado a um Ser Superior que me vigia dia e noite, confesso, NUNCA PODEREI SER EU, COMPLETAMENTE, SEM ESSE AMOR EM MIM…
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Vocabulário (Dicionário Houaiss):
Alacridade – grande alegria, animação intensa; vivacidade.
Anfêmero – cotidiano, diário.
Anfigúrico – desordenado e sem nexo.
Entojada – presunçosa, vaidosa.
Espuriada – ilegítima, adulterada.
Obumbrado – obscuredio, sombreado.
Solmização – solfejo.


Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Silvia Araújo Motta (Cordel Coletivo: As Gigantes Lições do Coronavírus) II


Mote do Poeta-Cordelista Marconi Araújo.
Presidente da Academia de Cordel da Paraíba.

“A lição do corona é tão gigante
que é marcante pra toda geração.”


Cordel Coletivo Virtual nº 7.147

[Quarentena é normal] poeta diz...
Acredite! Lô Borges faz cantar
Quem chegar à janela vai olhar
infinita esperança! Fé bendiz:
Medicina promete ver raiz ...
Pandemia aqui, cresce mais agora;
O Grupo Hermes Pardini, a arte enflora:
Ser humano quer ver o sol brilhante.
“A lição do corona é tão gigante
que é marcante pra toda geração.”
****************************************

Cordel Coletivo Virtual nº 7.149


A mudança no mundo vai chegar;
A quarentena vem trazer também
além da dor, saudade de um alguém
que já está em segundo plano,agora.
Sem abraço e sem beijo foi embora.
Vida mais leve muda o foco nato
na elevação do ser, entendo o fato.
Todos somos um; sigo o sextante.
“A lição do corona é tão gigante
que é marcante pra toda geração.”
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Cordel Coletivo Virtual nº 7.150


Precisamos ter paz em nossa vida;
em tudo ver o lado bom que existe.
Deus tem poder de cura, mas persiste:
É preciso cuidado, pois partida
vai depender saber que o mal insiste.
Raiz do Bem encontra seu lugar:
ao meditar o som do mantra, ao dar:
esperança e buscar  força; avante.
“A lição do corona é tão gigante
que é marcante pra toda geração.”
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Cordel Coletivo Virtual nº 7.151

Hospitais de Campanha vem criar
urgente ação que ajuda quer trazer.
Profissionais atendem, fazem crer
que a vocação que salva vida é mar:
a maré alta, aos olhos faz amar ...
Ondas de paz que estão no próprio ser
em Deus  Supremo; acolhe o bem-querer,
mas  o livre-arbítrio põe estrela errante ...
“A lição do corona é tão gigante
que é marcante pra toda geração.”
****************************************

Cordel Coletivo Virtual nº 7.152


Os curados são poucos, mas com alta,
voltam ao lar! Festejam, vão cantar .
Tudo enfrentaram! Crise fez chorar.
Família, amigos fazem muita falta.
Agradecer a Deus está na pauta.
A pandemia espalha dor e parte ...
O contágio é que assusta ver encarte.
Contaminados? Vida não garante.
“A lição do corona é tão gigante
que é marcante pra toda geração.”

Fonte:
Recanto das Letras

Malba Tahan (A Lenda do Lago de Szira)



Das profundezas a ti clamo, ó Senhor!
Davi, Salmos, 130, 1.


Nas imensas planícies geladas da Sibéria, muitas léguas distante da pitoresca Korelinsk, existe um lago — Szira-Kul —, reservatório imenso de águas salgadas, no fundo do qual o professor Iezhov, geólogo russo, descobriu as ruínas de antiquíssima cidade.

Como explicar a existência daqueles palácios e templos sepultados nas profundezas do lago de Szira?

Interessante e sugestiva lenda tártara explica a origem das misteriosas ruínas que dormem sob o tranquilo lençol das águas do famoso lago siberiano.

Ouçamos a curiosa fantasia.

Reza a lenda que no vale estreito, que as águas do Szira cobrem atualmente, existia, outrora, próspera e rica cidade habitada pelos tártaros Ouigur — povo guerreiro que chegou a dominar grande parte da Ásia Central. Em suntuoso templo dessa rica metrópole encontrava-se, sob grande laje, sepultado o corpo de Almagor, o último rei Ouigur.

Quis o destino que os mongóis de Gengis Khan invadissem os domínios de Almagor. Atacada pelo poderoso inimigo, a cidade foi facilmente vencida e saqueada. Os bárbaros conquistadores massacraram os homens e escravizaram as mulheres.

No dia em que a cidade caiu em poder dos mongóis, rompeu-se, como por encanto, a pedra que cobria o túmulo do rei Almagor. A sombra imponente desse monarca surgiu e fez-se ouvir, lúgubre, impressionante a sua voz:

— Chorai, ó mulheres tártaras! Chorai lágrimas salgadas de aflição e desespero! Chegou o último dia do povo Ouigur!

Sensibilizadas com as palavras do rei tão querido, que o amor à pátria fizera erguer da tumba, as mulheres puseram-se a chorar. E prantearam suas amarguras, dia e noite, sem descanso. Ordenaram os vencedores que elas dessem fim àquelas lamentações aflitivas. As mulheres de Ouigur, porém, não atenderam à intimação dos tiranos e continuaram com seus gemidos e soluços. Era ordem do rei Almagor, e que faziam elas senão obedecer ao rei?

Os guerreiros de Gengis Khan, exasperados com aquelas lamúrias intermináveis e impelidos por indomável furor sanguinário, degolaram, sem piedade, todas as prisioneiras. As infelizes escravas, porém, mesmo depois de mortas, continuaram a chorar incessantemente, e as suas lágrimas ardentes e abundantes, em gotas e gotas sem fim, formaram caudalosa corrente. Esse rio de prantos invadiu o vale, submergindo jardins, palácios e mesquitas luxuosas.

Surgiu, assim, formado pelas lágrimas das inditosas esposas tártaras, o lago de Szira, em cujo seio dorme, para sempre, a cidade de Almagor.

E ainda hoje (afirmam os menos incrédulos) o viajante que se aproxima, no silêncio da noite, das margens do famoso lago ouve o eco de estranho clamor, longínquo e misterioso, que se perde pelas estepes geladas. É a voz do rei Almagor no seu último e desesperado apelo:

— Chorai, ó mulheres tártaras, chorai!

Asseguram os sábios pesquisadores, é mais fácil, talvez, acreditar nessa lenda do que descobrir, dentro dos ditames, postulados e princípios da ciência, uma hipótese capaz de explicar a origem daquelas ruínas misteriosas que repousam no fundo de um lago gelado em meio da planície siberiana.

Fonte:
Malba Tahan. Novas Lendas Orientais.

Agatha Christie (Resenha de Livros) 9


A MORTE DA SRA. MCGINTY
Mrs. McGinty’s Dead


James Bentley estava desempregado, sem dinheiro e devia dois meses de aluguel à Sra. McGinty. Assim, o assassinato dela parecia um caso muito simples, já que Bentley tinha todos os motivos para cometer o crime. Levado a julgamento, ele é considerado culpado e condenado à morte. Mas o superintendente Spence duvida do veredicto e pede a Hercule Poirot que investigue o crime. Poirot se depara com um assassino impiedoso e sabe que precisa trabalhar depressa para evitar que um homem inocente seja enforcado e, também, para salvar sua própria vida.
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UM PASSE DE MÁGICA
They Do It with Mirrors


Uma atmosfera estranha ronda a velha mansão de Stonygates. Assustada, a proprietária Carrie Louise - uma mulher gentil, rica e bondosa que trabalha com jovens delinquentes e é incapaz de cometer qualquer injustiça - recorre à velha amiga Miss Marple. Três dias depois da chegada da simpática velhinha de St. Mary Mead, um dos funcionários da casa é assassinado, e ela começa a suspeitar que a amiga está sendo lentamente envenenada.
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CEM GRAMAS DE CENTEIO
A Pocket Full of Rye


Na Vila do Tejo tinha acontecido três assassinatos, quando uma velha senhorita - “encantadora, inocente, branca e risonha” - chegou à porta da luxuosa e sinistra mansão. O elegante e eficiente inspetor Neele, encarregado da investigação dos três homicídios, não imaginava que essa doce velhinha, a senhorita Marple, possuía um olfato especial para o crime, um profundo conhecimento das paixões humanas e uma mente extraordinariamente lúcida. Poucos minutos depois da chegada, Marple descobre a relação e a coerência de alguns detalhes, aparentemente absurdos e incongruentes, que o assassino deixou nos corpos das suas vítimas: um punhado de grãos de centeio, num bolsinho da primeira, e um pregador de roupa preso ao nariz da terceira. Baseando-se na letra de uma antiga canção infantil, Marple emprega sua infalível lógica para revelar ao inspetor Neele a identidade de um criminoso aparentemente livre de qualquer suspeita.
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DEPOIS DO FUNERAL
After the Funeral

Considerada desequilibrada e tola pelos parentes. Cora Albernethie tem o estranho costume de sempre acertar em seus inusitados palpites. Se este “hábito” muitas vezes lhe traz pequenos problemas e inimizades, um dia ocorre o pior: ela acaba tendo que enfrentar a própria família quando decide afirmar, após o enterro de seu irmão Richard, que ele foi assassinado. Todas as evidências estão contra esta nova “intuição” de Cora, mas o incansável detetive Hercule Poirot sabe que os fatos mais evidentes podem às vezes funcionar como uma cortina de fumaça, por trás da qual a verdade costuma se esconder.
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UM DESTINO IGNORADO
Destination Unknown


Um a um, os maiores gênios da ciência somem misteriosamente. O último é Thomas Betterton, um jovem pesquisador, responsável pela descoberta de um novo processo de fissão nuclear. Intrigada com o caso, a Scotland Yard convoca o agente Jessop para investigar a motivação por trás dos desaparecimentos. Mas isso não seria suficiente. O serviço secreto inglês também recorre à bela Hilary Craven, enviada para uma missão suicida: assumir a identidade da esposa de Betterton, partindo para um destino ignorado…
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MORTE NA RUA HICKORY
Hickory, Dickory, Dock


Três erros de datilografia numa carta, escrita pela eficiente secretária Srta. Lemon, chamam a atenção do perfeccionista patrão Hercule Poirot. Uma série de pequenos furtos cometidos em uma pensão de estudantes atormentam a supervisora. Dois fatos aparentemente sem ligação são as peças principais de um quebra-cabeça, que vai sendo montado por Poirot. Aos poucos, o jogo vai tomando forma e o detetive percebe que está na trilha de um perigoso assassino.
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A EXTRAVAGÂNCIA DO MORTO
Dead Man’s Folly


Tão perigoso quanto brincar com fogo é brincar de assassinato, uma vez que esse tipo de brincadeira pode se transformar em uma trágica realidade. A personagem Ariadne Oliver, autora de romances policiais, organiza um jogo na mansão do milionário George Sttubs, uma variante do Caça ao Tesouro, então transformado em Caça ao Assassino. Mas, logo, ela tem a intuição de que um assassino de verdade poderia se aproveitar do jogo para matar alguém. Por isso, convida Hercule Poirot para fazer a entrega dos prêmios. Confirmando as suspeitas de Ariadne, uma vítima de mentira torna-se um cadáver de verdade. Quem terá estrangulado a pobre menina? O infalível Poirot acaba encontrando a resposta para esta e outras perguntas, embora não possa impedir que o assassino mate outras vezes. Afinal, como diz o grande detetive, “o assassinato é um hábito”.
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TESTEMUNHA OCULAR DO CRIME
4.50 from Paddington


Os criminosos deveriam tomar cuidado com as velhas senhoras, cujos olhos cansados tudo veem, e cujas mentes, conhecedoras da natureza humana, podem supor as piores intenções por trás da mais inocente aparência. O assassino deste romance cai na besteira de estrangular uma mulher em um trem enquanto é observado discretamente pela velha senhora Macgillicuddy. Mas o azar do estrangulador não termina aí, porque a senhora Macgillicuddy é amiga da solteirona Miss Marple, uma simpática Poirot de saias, tão sagaz quanto o grande detetive belga.
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PUNIÇÃO PARA A INOCÊNCIA
Ordeal by Innocence


Um incidente inesperado impede Jacko Argyle de cumprir pena de prisão perpétua pelo assassinato de sua mãe adotiva, a milionária Rachel Argyle: ele morre de pneumonia na cadeia, poucos meses depois da condenação. Mas algum tempo depois o caso, que já parecia encerrado, sofre uma súbita reviravolta com a chegada de um desconhecido, o estranho Dr. Calgary, que afirma a inocência de Jacko. Quem seria então o culpado? Caberá a Calgary desvendar o mistério, que a própria família Argyle insiste agora em esconder.
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UM GATO ENTRE OS POMBOS
Cat Among the Pigeons


O famoso e mundialmente conhecido colégio Meadowbank, um símbolo da tradição britânica pode ficar com sua reputação arrasada após uma série de assassinatos que poderiam parecer impossíveis aos olhos das professoras e alunas. Três assassinatos inexplicáveis no pavilhão de esportes da instituição. A polícia local não consegue explicar os crimes e nem encontra uma pista que possa ajudar a solucionar o enigma. Até que entra em ação o detetive belga Hercule Poirot. Ele põe as suas “pequenas células cinzentas” para funcionar e segue uma trilha de sangue e espionagem que começa em Ramat, no Oriente Médio, e vai até os muros de Meadowbank.
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A AVENTURA DO PUDIM DE NATAL
The Adventure of the Christmas Pudding


Durante um Natal que prometia ser monótono e aborrecido, Hercule Poirot lança mão de sua inteligência e seu senso de humor para impedir o roubo de um valiosíssimo rubi… Com seu faro inconfundível, Miss Marple investiga o cruel assassinato de uma mulher… No interior de um baú espanhol, um cadáver desafia as autoridades e o talento do genial detetive belga… Estas e outras aventuras integram a nova coletânea de contos que trazem a marca registrada da “velha dama” Agatha Christie, e que os leitores certamente hão de saborear com indiscutível prazer.

A Aventura do Pudim de Natal
Para tentar resolver o caso do roubo de um rubi, Poirot é convidado a passar o Natal em uma casa que celebra a festa da forma tradicional inglesa. No dia de Natal ele recebe um bilhete avisando a não comer o pudim de passas. Analisando o comportamento das pessoas da casa Poirot tenta descobrir onde está o rubi desaparecido e quem o roubou.

O Mistério do Baú Espanhol
Na manhã seguinte à uma reunião informal na casa do Major Rich, seu mordomo William Burgess encontra o Sr. Clayton morto dentro do baú espanhol da sala de estar. O Major Rich é preso por suspeita do assassinato. A Sra Clayton pede a Poirot que descubra quem realmente matou seu marido, pois não acredita na culpa de seu amigo.

O Reprimido
O Sr Reuben Astwell é encontrado morto no seu escritório. Antes de sua morte, ele tinha discutido com seu irmão, sua mulher e seu secretário. Mas quem acaba sendo incriminado é o seu sobrinho, pois o mordomo o ouviu chegar em casa antes da morte do tio. Hercule Poirot é chamado para descobrir se o sobrinho realmente matou o Sr Astwell ou se foi outra pessoa.

O Caso das Amoras Pretas
Durante um jantar com o seu amigo Henry Bonnignton, Hercule Poirot conversa com a garçonete e descobre que um cliente sempre vai ao restaurante nos mesmos dias e horários e sempre pede os mesmos pratos há 10 anos. Quando fica sabendo que o cliente mudou seus hábitos repentinamente fica desconfiado e resolve investigar o motivo da mudança.

O Sonho
Hercule Poirot é chamado à casa do Sr. Benedict Farley para um encontro. Lá ele diz a Poirot que sempre sonha que se mata com um tiro. Pouco tempo depois o sonho se torna realidade e o detetive investiga essa morte para tentar confirmar se foi um suicídio ou se alguém se aproveitou desse sonho para assassinar o Sr. Farley.

A Extravagância de Greenshaw
A estranha moradora de uma casa mais estranha ainda é assassinada com uma flecha no pescoço, e nenhuma das pessoas que moram na casa tiveram a oportunidade de matá-la. Ninguém sabe quem ficará com sua herança. Felizmente Miss Marple está por perto para desvendar esse mistério.

Fonte:
http://users.hotlink.com.br/pmgi/agatha/index.html

domingo, 26 de abril de 2020

Hélio Serejo (Porque é Triste o Jaburu)


Nessa hora dúbia que ainda é dia e ainda não é noite, uma imensa tristeza se apodera dessa ave esquisita. É o jaburu, num dormitar profundo, nem sequer agita o longo pescoço, parecendo então um empalhado espécime de museu.

Nas grandes noites da cheia, move as asas poderosas e caminha de um lado para outro, lento e meditativo, como a montar guarda naquela lagoa que é, desde há muito tempo, o seu pouso, a sua morada.

Vive sempre só e quando acontece aparecer um intruso abre-lhe guerra e luta ferozmente.

Na hora crepuscular o seu voo nos faz lembrar velhas imagens de contos de fadas.

Quem viajar pelos sertões de Mato Grosso, mormente pela zona sul, há de encontrar à margem dos rios, ou à beira das lagoas, uma ave cinzento escura, pernas grossas, triste e esquisita, que tem, constantemente a cabeça voltada para a terra...

É o jaburu...

Todas as tardes, ali escorado ele está numa perna só, tristonho e cabisbaixo.

Sobre a tristeza mística dessa ave há a seguinte versão:


Mandi, indiozinho guerreiro, quebrando os preceitos sagrados da sua religião, deixou-se um dia apaixonar perdidamente por Ituna a mais formosa mulher da tribo de Morembi.

O pai queria fazê-lo cacique, mas para isso era preciso, conforme dizia o pajé, que o filho não se casasse enquanto não passassem cinco luas, depois de ter recebido do pai o tacape de guerreiro e o diadema de morubixaba. Mas Mandi, que já havia consultado as águas da lagoa sagrada, sabia perfeitamente que a primeira lua muito longe estava ainda. Por isso não podia esperar. Antes perder a soberania de cacique do que ficar sem o amor daquela que Tupã mandara do céu, para alegria de seu coração na terra.

E Mandi não esperou, nem tampouco ouviu as súplicas angustiosas do pai velhinho e doente...

Karin revoltou-se e, num momento de ódio, rogou uma praga terrível contra o filho.

Todas as tardes, inevitavelmente, Mandi ia encontrar-se com Ituna à beira da lagoa sagrada e ali ficavam, horas a fio, a contemplar a majestade de Phoébus, que se ocultava aos poucos, na curva ensanguentada do horizonte.

Mas nunca estavam sós.

Uma ave de plumagem cinzento-escura, pescoço encolhido, descansando sobre uma das pernas, vinha fazer-lhes companhia. E os dois se divertiam a jogar migalhas de frutas adocicadas ou miolo saboroso do "quipiá" para aquela ave mansa e esquisita apanhar com o seu bico grosso e forte. E em pouco tempo eram três que todas as tardes vinham admirar, à beira da lagoa, a sublimidade da luta do dia contra as trevas...

Ficara tão manso o jaburu que vinha tirar-lhes da palma da mão a fruta adocicada ou o miolo saboroso.

Uma tarde, porém, umas nuvens densas e pesadas englobavam-se para os lados do poente, com prenúncio de borrasca iminente.

Na tribo dos Araés ia uma balbúrdia medonha.

Karin, o valente e destemido guerreiro cacique, estava agonizante. As sombras daquela noite sem alvorada começavam a cair lentamente, sobre sua cabeça.

De quando em quando, pavoroso e medonho, um relâmpago rasgava o céu. O pajé, mãos cruzadas, cabeça caída sobre o peito, rezava baixinho. Mulheres e crianças imitavam-no.

Quando percebeu que era chegada a hora, Karin chamou Mandi e entregou-lhe o tacape de guerreiro e o diadema de morubixaba.

Lá fora "coroando", o novo tuchaua, um grupo de Araés dançava ao som de uma música fúnebre...

Mandi beijou a fronte bronzeada do pai e retirou-se. Na frente da palafita, mãos em conchas, sem dar atenção aos que o saudavam, olhou em baixo e viu, por entre o clarão de um relâmpago, o vulto de Ituna que o esperava.

Não pôde conter-se. Atirou para um lados os troféus sagrados que há pouco o pai lhe dera, e desceu a encosta em desabalada carreira. Lá estava Ituna, a formosa virgem que Tupã mandara do céu para a alegria do seu coração na terra.

Mandi contornou-lhe o corpinho delgado com seus braços longos e vigorosos e ia forçá-la para satisfação do seu incontido e lúbrico desejo, quando um raio, rasgando as trevas, veio cair-lhe em plena cabeça, fulminando-o juntamente com a índia virgem. No outro dia já muito tarde, o pajé encontrou-os caídos sobre a relva úmida, os corpos estreitamente unidos, num abraços impressionante — o abraço da morte.

Lá estava também, meio idiotizado, o cismarento jaburu. Nessa mesma tarde um grupo de Araés abria duas tíbis nas terras de Pendejan, o heróico tuchaua, pai de Karin, que ali tombara um dia, em defesa da tribo varado pelas balas dos guerreiros brancos. Uma delas para receber o corpo do bravo cacique; a outra aberta ao lado da lagoa sagrada para sepultar os dois jovens que tombaram fulminados, ante os olhos irados de Tupã, na hora da consumação do pecado...

O jaburu, tristonho e imóvel tudo presenciara sem nada compreender.

E quando a última pá de terra caiu sobre a tíbi dos dois pecadores, ele voou e partiu.

Mas todas as tardes voltava, vinha esperar como de costume que alguém lhe atirasse a fruta adocicada ou o miolo saboroso. Mas em vão. Nunca mais os viu voltar, alegres como dantes!

Dai por diante o jaburu tornou-se mais triste ainda; as penas foram caindo aos poucos e a cabeça vergou sob o peso tremendo da dor... Mas ele não desanimava. Todas as tardes, ali estava descansando sobre uma das pernas, em cima daquele amontoado de terra, os olhos cravados no chão, na esperança de ver surgir, debaixo dos seus pés, aquelas duas almas amigas.

E é por isso que o jaburu é uma ave assim tão triste e esquisita e vive à margem dos rios ou à beira das lagoas, tendo sempre os olhos amargurados voltados para a terra.

Fonte:
Hélio Serejo. in Jornal do Folclore. São Paulo. janeiro de 1960.

Filemon F. Martins (Poemas Escolhidos) VII


A TERRA PROMETIDA

Parti buscando a Terra Prometida,
a Terra da fartura e da bonança
e procurei, sofrendo, pela vida,
a Canaã do Amor e da Esperança.

Transpus montanhas, vales e na lida
meu coração exausto sempre avança.
Jamais fiquei no chão e de vencida
minha busca não para e nem descansa.

Disposto a desvendar qualquer segredo,
venci mares, penhascos sem ter medo
de garranchos, juremas e cipós...

Mas quando chego ao fim desta corrida,
percebo que esta Terra tão querida,
está aqui, Brasil de todos nós!
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A VELHICE


A velhice chegou? Tudo termina?
Assim imaginei logo em seguida,
mas vejo que à distância descortina
uma esperança nova não vivida.

A idade traz canseira que domina,
o corpo fica lento e sem guarida,
não há força capaz, tudo se inclina
e se encaminha para o fim da vida.

Meu cérebro, porem, nunca se abate
e busca a primavera neste embate
que a vida experiente me legou.

E ao constatar que a vida continua
vibrante na paixão que se cultua,
parece que a velhice não chegou!
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A VOZ DO TEMPO

O tempo vai levando cruelmente
vidas, amores, glórias e venturas.
Dissabores espreitam lá na frente
e os sonhos viram pó e desventuras.

Ao procurar motivo que contente
um coração cansado das agruras,
minha oração se eleva docemente
e busca a paz que desce das alturas.

Mas o tempo não para e nem descansa,
não permite sequer uma esperança
que me deixe mudar o itinerário...

Impossível fugir do meu destino
já traçado, talvez, desde menino:
- levar sozinho a cruz do meu calvário!
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BUSCA

Quando a noite chegou apresentando a lua,
uma brisa soprou trazendo o teu perfume,
meu coração buscou, feliz, a imagem tua,
mas não estavas lá, daí o meu queixume.

E desde então, tristonha a vida continua
à procura de luz, buscando novo lume
que possa conduzir a nau que já flutua
no tenebroso mar que a vida se resume.

Eu já perdi o rumo e não sou mais criança
para viver submisso em troca da esperança
de te reencontrar, quem sabe, qualquer hora.

Tarde demais. O tempo passa cruelmente
levando a vida, o amor, a paz, deixando a gente
nesse vazio pesado e triste que apavora!
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CONFIDENTE

Velho mar, meu eterno confidente,
quantas vezes chorei ao confessar:
esta mágoa que fere, inconsequente,
e o tempo que não pode mais voltar.

E me dizes, então, naturalmente;
só o amor é capaz de me curar,
enquanto tuas ondas, mansamente,
os meus pés, com carinho, vem beijar,

Exerces sobre mim grande fascínio,
porque tens sobre todos o domínio
e és tão frio nas tuas mutações.

Ao contrário de ti, eu sofro tanto,
e fico aqui a derramar meu pranto,
onde sepulto as minhas ilusões!
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NA PRAIA

Caminho, sem destino, pela praia,
— por que me fere a solidão assim?
Percebo que à distância o sol desmaia
talvez, para esconder o amor de mim.

O mar, aos prantos, seu furor ensaia
mostrando seu poder quase sem-fim,
mas vou partindo sem que a noite caia
enquanto as ondas fazem seu motim.

Minhas marcas se perdem lá na areia,
porque depois com força a maré-cheia
vem e apaga as pegadas que deixei...

Também a minha sorte me maltrata
como a maré que passa, a vida ingrata
vai apagando tudo o que sonhei!
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O GRITO DO POETA

No meu viver de cidadão, proscrito,
carrego a dor imensa do Universo.
Meu canto desolado traz, aflito,
as tristezas do mundo controverso.

De desespero clamo, sofro e grito,
tudo em vão, pois o povo está imerso
na inércia poética do mito,
— não compreende mais o que é perverso.

A Esperança se esvai a cada aurora,
o poder corrompido se agiganta,
parece não haver outra saída...

Meu protesto, em verdade, não tem hora,
minha voz, do poeta ainda espanta
os vendilhões da Pátria adormecida!

Fonte:
Filemon Francisco Martins. Anseios do coração. São Paulo: Scortecci, 2011.
Livro enviado pelo poeta.