sexta-feira, 1 de maio de 2020

Carlos Drummond de Andrade (A Fugitiva)


A última bomba H estava irredutível. De modo algum abandonaria o seu refúgio lodoso, a 750 metros de profundidade, no Mediterrâneo.

- Não faça isso com a gente - suplicavam-lhe três mil oficiais, técnicos, mergulhadores, marinheiros e praças, empenhados  há  quase  90 dias em sua recuperação, e que por fim a localizaram naquele fundo de mar, bem encolhida, bem desiludida.

- Daqui vocês não me tiram - respondeu-lhes a bomba. - O primeiro que me tocar, eu  explodo. Talvez este tempo de verbo não exista, mas pouco estou ligando à gramática de vocês. À gramática e ao resto. Estou farta! Farta!

Os expedicionários insistiam. Aquele domicílio era  impróprio para ela; não ficava bem a uma bomba nuclear, talhada para altas missões, dormir no fundo das águas, que nem peixe fugindo à caçada submarina. Que desmoralização para um artefato de 20  megatons! Era em seu próprio benefício que a estavam querendo tirar dali.

- Hmmm - resmungou a bomba, sem se deixar convencer.

- Vamos. Suas companheiras de viagem caíram em terra, não deram trabalho. Foram logo recolhidas, e até agradeceram nossa solicitude em reavê-las. Uma bomba normal gosta de voar, voar sempre sobre a terra inteira, divertindo-se com o turismo aéreo nos bombardeiros. Não é para destruir nada, nem sequer para assustar ninguém, pois vocês  viajam incógnitas. É por  prazer. E você recusa esse prazer que nós lhe oferecemos?

- Prazer! Prazer! Que prazer sente uma bomba em não explodir? Afinal, que fizeram as colegas em território espanhol?

- Coisinha à-toa. Apenas contaminaram as plantações em torno de Palomares, mas nós indenizamos os lavradores. Não queremos que nossas bombas dêem prejuízo a ninguém.  Uns pobres-diabos até ficaram radiantes: há muito tempo que não viam dinheiro, e dólar, jamais.

- Quantos mortos?

- Fora os tripulantes dos aviões que se chocaram, nenhum. Você mesma, aí dentro d'água, não assusta o pessoal. Nosso embaixador em Madri e o Ministro do Turismo da Espanha vieram tomar banho lá em cima, para provar que você não é de nada. Venha, já está ficando tarde.

- Estão vendo? Eu não sou de nada! Nenhuma bomba é de nada! Para que foi, então, que nos fizeram?

Como ninguém respondesse, ela continuou:

- Vocês, ao nos criarem, não deram somente uma nova  angústia à humanidade. A nós também nos rechearam de angústia. Ficamos ansiosas por explodir - e nada. É hoje, é  amanhã, e nunca se resolve. Acabamos ficando mais angustiadas do que as populações que se angustiam por nossa causa. E vocês fazem disso um jogo, vocês e os outros.  Estávamos com grandes esperanças no Vietnã, mas qual o quê. Vamos envelhecendo, outros engenhos nos passam para trás, amanhã a Lua será ocupada e equipada com armas fantásticas, astros e planetas entrarão no brinquedo, e nós apodrecendo por aí, sem uso, sem  préstimo.  Por  isso  aproveitei  o desastre de avião, e caí fora. Quero me livrar dos homens.

Falando, falando, deslocou-se entre as rochas, para melhor esconder-se. A turma aproveitou o movimento e fisgou-a, alçando-a à superfície, sob protesto. Esta não escapa à  sorte de voar sobre a Terra. Depois de recondicionada.

Nem elas escapam.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Caminhos de João Brandão. RJ: José Olympio, 1976.

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