quarta-feira, 6 de maio de 2020

Lygia Fagundes Telles (Um Chá Bem Forte e Três Xícaras)



A borboleta pousou primeiramente na haste de uma folha de roseira que vergou de leve. Em seguida, voou até a rosa e fincou as patas dianteiras na borda das pétalas. Juntou as asas que se colaram palpitantes. Desenrolou a tromba. E inclinando o corpo para a frente, num movimento de seta, afundou a tromba no âmago da flor.

Maria Camila chegou a estender a mão para prendê-la pelas asas. Não completou o gesto. Entrelaçou novamente as mãos no regaço e ficou olhando. Era uma borboleta amarela, com um fino friso negro debruando-lhe as asas.

— Deve ser uma borboleta jovem — disse Maria Camila.

— Jovem? — repetiu a mulher debruçada na janela que dava para o jardim.

— Veja, as asas ainda estão intactas. E está sugando com tamanha força… Haverá tanto suco assim?

— Essa rosa abriu ontem cedo, a senhora lembra? E já está murchando — disse a mulher prendendo com um alfinete a alça do avental.

Maria Camila voltou-se para a janela. Estava sentada numa cadeira de vime, entre os dois canteiros do jardim. No céu azul-claro, as nuvens iam tomando uma coloração rosada. Havia uma poeira de ouro em suspensão no ar.

— Você ainda não pregou essa alça, Matilde?

— Não sei onde o botão foi parar.

— Pegue outro na minha caixa. Mas agora não! — pediu ela ao ver que a empregada já se dispunha a voltar para o interior da casa. Baixou o olhar até a roseira. — A gente vai clareando à medida que envelhece mas as rosas vermelhas vão escurecendo, veja, ela está quase preta.

— E essa borboleta ainda…

— Deixa — atalhou Maria Camila. Uniu as mãos espalmadas no mesmo movimento com que a borboleta unira as asas. Suas mãos tremiam. — Há de ver que a rosa está feliz por ter sido escolhida.

— Mas desse jeito ela vai morrer mais depressa.

— É melhor deixar.

A empregada passou lentamente a ponta do avental no peitoril da janela. Acompanhou com o olhar uma andorinha que cruzou o jardim num voo raso e desapareceu atrás do muro da casa vizinha. Suspirou.

— Acho que essa borboleta já esteve ontem por aqui, a senhora não viu?

Maria Camila concordou com um leve movimento de cabeça. Examinou com espanto as próprias mãos cheias de sardas.

— É a mesma.

— Acostumou — disse a mulher num tom indiferente. Fixou o olhar vadio nos ombros estreitos da patroa. — A senhora não quer que traga o chá?

— Estou esperando a menina.

— Mas a que horas ela ficou de aparecer?

— Às cinco — disse Maria Camila apertando os olhos. Inclinou-se para o relógio-pulseira. E escondeu no regaço as mãos fechadas. — Às cinco em ponto.

Foi emergindo do silêncio da tarde o zunido poderoso de uma abelha. O riso de uma criança explodiu tão próximo que pareceu brotar de dentro do canteiro.

— Essa menina… — E a empregada fez uma pausa para ajustar melhor o pente nos cabelos grisalhos: — Eu conheço?

— Não, não conhece.

— Quantos anos ela tem?

— Uns dezoito.

— Mas então não é menina!

Maria Camila fixou no céu o olhar perplexo. Voltou a examinar o relógio-pulseira. E cruzou os braços tentando dominar o tremor das mãos.

— Desde ontem ela já rondava por aqui. Cismou com essa rosa, tinha que ser essa rosa.

— Trabalhei na casa de um padre que tinha um canteiro só de roseiras brancas. Como duravam aquelas rosas!

Por um breve instante Maria Camila fixou-se de novo na borboleta. Teve uma expressão de repugnância.

— Chega a ser obsceno…

— Mas é sabido que as vermelhas têm mais perfume — prosseguiu a empregada apoiando-se nos cotovelos.

Duas crianças atravessaram a rua aos gritos. A borboleta recolheu precipitadamente a tromba e fugiu num voo atarantado. Uma pétala desprendeu-se da corola e foi pousar na relva. Outra pétala desprendeu-se em seguida e desenhando um giro breve, caiu num tufo de violetas. Maria Camila estendeu as mãos até a corola da flor. Não chegou a tocá-la. Recolheu as mãos e ficou olhando para as veias intumescidas com a mesma expressão com que olhara para a rosa.

— Ela é conhecida do doutor?

— Quem, Matilde?

— Essa moça que vem tomar chá…

— Trabalham juntos — disse Maria Camila passando nervosamente a ponta do dedo sobre a rede de veias. — Ela está fazendo um estágio no laboratório.

— Estágio?

— Sim, estágio.

A mulher ficou pensativa. Pôs-se a coçar o braço.

— E a senhora conhece ela?

— Já vi de longe.

— É bonita?

— Não sei, Matilde, não sei.

— Estágio — repetiu a empregada. — Então é essa que às vezes telefona pra ele.

Alguém iniciou na vizinhança um exercício de piano. O exercício era elementar e tocado sem vontade.

— Deve ser — sussurrou Maria Camila apanhando a pétala que caíra na relva. Levou-a aos lábios que estavam lívidos. — Deve ser.

— Hoje cedo ela telefonou, não perguntei quem era porque o doutor não quer mais que a gente pergunte. Mas reconheci a voz, só podia ser ela.

— São muito amigos. Os velhos, os mais velhos gostam da companhia dos jovens — acrescentou a mulher dilacerando a pétala entre os dedos. Fez um gesto brusco. — Esse menino era melhor no violino, não era?

A empregada fungou, impaciente.

— Nem no violino! A gente ficava com dor de cabeça quando ele começava com aquela atormentação. Diz que a mãe cismou que ele tem que tocar alguma coisa…

— Quem foi que disse?

— A Anita, que trabalha lá. Diz que a mãe fica o dia inteiro atrás dele, dando castigo se ele não estuda. São estrangeiros.

Maria Camila olhou furtivamente o relógio. Abriu e fechou as mãos num movimento exasperado. Manteve-as fechadas.

— Ele tocava melhor violino.

A mulher fez uma careta. E ficou seguindo com o olhar gelado uma adolescente que passava na calçada. Franziu a cara como se enfrentasse o sol.

— Como é que ela se chama? Essa do chá…

O menino interrompeu o exercício. O zunido da abelha voltou mais nítido, fechando o círculo em redor de um único ponto. Maria Camila respirou com esforço.

— Acho que estou gripada.

— Gripada? — E a mulher apoiou o queixo nas mãos. — A senhora está com os olhos inchados. Quer que eu vá buscar uma aspirina?

— Não, não é preciso — disse Maria Camila movendo a cabeça num ritmo fatigado. Encarou a empregada: — Não vai mesmo pregar esse botão? Não vai?

— Mas se não sei dele…

— Pegue um na minha caixa, já disse.

A mulher empertigou-se com solenidade. Passou ainda a ponta do avental na janela, a fisionomia concentrada. Chegou a abrir a boca. E enveredou para o interior da casa.

Maria Camila relaxou a posição tensa. Olhou o relógio, sacudiu a cabeça e fechou com força os olhos cheios de lágrimas. “Que é que eu faço agora?”, murmurou inclinando-se para a rosa. “Eu gostaria que você me dissesse o que é que eu devo fazer!…” Apoiou a nuca no espaldar da cadeira. “Augusto, Augusto, me diga depressa o que é que eu faço! Me diga!…”

A janela abriu-se. A empregada estendeu o braço num gesto digno. A voz saiu sombria.

— Não achei botão igual. Posso pregar este amarelo?

Maria Camila tirou do bolso do casaco o estojo de pó. Examinou-se ao espelho. Consertou as sobrancelhas. Umedeceu com a ponta da língua os lábios ressequidos e fechou o estojo. Ficou com ele apertado entre as mãos. Voltou-se para a janela.

— Pregue esse mesmo.

A mulher vacilava, rodando o botão entre os dedos.

— É o mais parecido que achei.

— Está bem, está bem — repetiu a outra reabrindo o estojo. Passou a esponja em torno dos olhos. Examinou as mãos. — Veja, Matilde, minhas mãos estão ficando da cor da tarde, tudo nesta hora vai ficando rosado…

— O céu parece brasa, que bonito!

— A gente vai ficando rosada também — disse atirando a cabeça para trás. Expôs a face à luz incendiada do crepúsculo. E riu de repente: — Acho a vida tão maravilhosa!

— Maravilhosa?

O menino parou de tocar. Maria Camila ficou alerta, os olhos brilhantes, as narinas acesas. Olhou para o relógio. Falou com energia.

— Assim que a moça chegar, sirva o chá aqui mesmo, faça um chá bem forte. E traga três xícaras.

— Mas se é só a senhora e ela…

— O doutor pode aparecer de surpresa, é quase certo que ele apareça — acrescentou a mulher limpando do vestido os pedaços da pétala dilacerada que ficara por entre as pregas da saia. Levantou-se. Respirava ofegante. — Quero os guardanapos novos, não vá esquecer, hein? Os novos.

Passos ressoaram na calçada. Quando ficaram mais próximos, a empregada pôs-se na ponta dos pés, tentando ver além do muro da casa vizinha:

— Deve ser ela… É ela! — sussurrou excitadamente. — É ela!

Maria Camila levantou a cabeça. E caminhou decidida em direção ao portão.

Fonte:
Lygia Fagundes Telles. Antes do Baile Verde. 1970.

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