Todas as vezes que o Emir Motavakel-Billah dava audiência pública em seu luxuoso divan, acontecia algo de singular, isto é, ocorria um episódio qualquer surpreendente, digno de ser escrito e conservado nos anais do Califado. E isso, afirmavam os funcionários do palácio, sucedia sempre. Era certo, era fatal. Maktub! (1)
Quando o soberano, naquele ano, depois do último dia da Lua de Ramadã (2), marcou a chamada Sessão da Plena Justiça, uma onda de curiosidade agitou os nobres e auxiliares da corte:
— Que iria acontecer? Que novo caso surgiria, de improviso, entre os nômades, cheiques (3) , mercadores e caravaneiros?
E ficaram todos na expectativa: Aguardemos o que está para acontecer — diziam. A vida é uma sucessão de surpresas preparadas pelo Destino. Fugir ao Destino é impossível. Maktub!
Ora, naquele dia, exatamente, tudo correu com natural e decepcionante naturalidade. O Califa, seguindo a rotina enervante, ouviu as queixas (eram sempre as mesmas), atendeu aos solicitantes, socorreu várias pessoas que precisavam de auxílio urgente e determinou que fossem sanados certas irregularidades e abusos do serviço público. Já ia, afinal, o soberano árabe encerrar a sua fecunda e benemérita audiência e proferir o clássico Inch’Allah! (Assim quis Allah) quando o preclaro e prestigioso Welid ben Obeid, o vizir secretário, preveniu-o, respeitoso:
— Deveis, ainda, ó Rei!, ouvir o que deseja aquele desconhecido. Tenho a impressão de que se trata de um simples pescador que vive do outro lado do rio.
E apontou para um homem, de cara chupada, que se achava um pouco afastado, com uma cesta na mão, recostado a uma coluna. Trajava uma modesta abaya azulada.
— Sim, sim — assentiu com veemência o Califa, cofiando a barba. — Vamos ouvi-lo. Ouahyat ennébi! Que pretenderá ele, nesta sessão?
A um sinal do vizir, o solicitante aproximou-se do Rei, proferiu a saudação clássica (salam aleikoum!) e disse, a seguir, com fervoroso respeito:
— Chamo-me Kalil, ou melhor, Kalil Iamam. Sou pescador e venho da aldeia de Suan, onde vivo com minha esposa e três filhos. A minha vinda hoje, a este divan, tem, apenas, um objetivo: moveu-me o desejo de oferecer pequeno e desvalioso presente ao nosso glorioso Emir! (Que Allah vos cubra de benefícios!).
E, depois de proferir tais palavras, o pescador colocou aos pés do Rei a cesta que trouxera com peixes. Mas (coisa curiosa!) a tal cesta não estava cheia. Longe disso. Tinha peixes só até à metade. Ora, sempre que um pescador de Damasco, de Bagdad ou de qualquer outro recanto do Islã, oferece uma cesta de peixes ao Rei, esta cesta deve estar repleta, a transbordar de pescados. Assim determina a velha praxe; assim reza a tradição; assim é que é correto.
Sem se mostrar ofendido com a desatenção do ofertante, o Califa Motavakel-Billah olhou, com simpatia, para a cesta meio vazia; olhou, a seguir, também, com muita simpatia, para o pescador que se achava de pé, em atitude respeitosa, braços cruzados. Os seus trajes eram modestos, mas não se sentia nem desmazelo nem miséria; ostentava, em contraste com a abaya (longa túnica) azulada, um turbante cinzento desbotado, tracejado de pequenos remendos; tinha o rosto escanhoado denegrido pelo Sol; os olhos escuros, cor de tâmara; testa larga; em idade deveria estar rondando a casa dos quarenta e sete ou quarenta e oito anos bem vividos.
Depois de ligeira pausa, o Rei tirou de pequena bolsa (das três que trazia presas ao cinto) e entregou-a ao pescador, dizendo com voz pausada e em tom paternal:
— Acabo de receber de ti, meu bom e atencioso amigo, uma cesta meio cheia; e em troca, para retribuir a essa gentileza, a essa expressiva fineza de tua parte, ofereço-te esta bolsa meio vazia!
O pescador, de relance, percebeu a intenção, o propósito astucioso do Rei; a bolsa continha moedas, mas essas moedas mal atingiam a metade da bolsa.
E o valioso Califa, preocupado em parecer original (a corte estava reunida e assistia à audiência), repetiu com certa ironia, acentuando bem as palavras:
— Estás vendo, ó pescador Iamam!, recebi de ti esta bela cesta meio cheia; e, em troca, ofereço-te esta modesta bolsa meio vazia!
— Por Allah! — volveu o pescador, com um sorriso ladino, quase instantâneo. — Pelos sete méritos do Profeta! (4) Há um engano, ó Emir!, de vossa parte. Eu, sim, que vos ofereci uma cesta meio vazia; e recebo de vossas mãos, em troca, esta valiosa bolsa meio cheia.
E acrescentou com ênfase, vibrando a um súbito calor de emoção:
— A verdade deve ser dita e reconhecida, ó Rei! Aquele que dá, dá sempre a cesta meio vazia; aquele que recebe, recebe, sempre a bolsa meio cheia. Que valem sete ou oito peixes? Uma lembrança... e nada mais. A dádiva, porém, de um Rei generoso e justo não é um simples presente, é um elogio!
Aquelas palavras, proferidas com tanto desembaraço e clareza, pelo pescador do turbante desbotado, surpreendeu o Califa dos árabes. Disse, então, Motavakel, dirigindo-se a seus vizires e secretários, num irreprimível espanto:
— Ualahi na telabi! Estão vendo? Este bom e modesto pescador tem a alma de filósofo! É um verdadeiro filósofo!
Sorriu o pescador e replicou com certa afoiteza:
— Perdão, ó Emir dos Crentes!, é muito natural que um pescador seja filósofo, pois sei de muitos filósofos que são pescadores.
Houve um momento de silêncio no largo divan do Rei. Vizires, cheiques e secretários, homens do estudo e do saber, surpreendiam-se com as réplicas oportunas e judiciosas do modestíssimo pescador de Suan.
— Filósofos pescadores? — estranhou o Califa — Ouallah!
E, voltando-se para o seu digno vizir Welid ben Obeid, que era um sábio, um verdadeiro ulemá, interpelou-o com assombro, incrédulo:
— E tu, ó esclarecido vizir!, que conheces os Livros da Sabedoria, os escritos dos alfaquis, os comentários do Profeta, tira-me desta dúvida: Julgas que esse pescador proferiu a verdade? Há filósofos que são pescadores? Não será isso uma fantasia desatada?
Welid ben Obeid, o sábio (que Allah o tenha entre os eleitos), inclinou-se diante do Rei e assim falou (as suas palavras denunciavam certa emoção):
— A julgar por mim, ó Príncipe dos Crentes!, esse bom e honrado pescador disse a verdade. A pura verdade. Quando me sinto fatigado de ler e de ouvir os filósofos, de analisar, letra a letra, os ensinamentos dos Inspirados, as sentenças dos doutores, os hadis do Profeta, tomo de minha rede, dos meus apetrechos de pesca, e vou, com meu filho mais moço, até o rio fazer um pouco de pescaria. Procuro repouso, para o meu conturbado espírito, tornando-me pescador. A pesca é, para mim, tranquilidade e paz. Esqueço, por momentos, os problemas torturantes da alma, as inquietações da Dúvida, e ponho-me a pescar. É uma delícia pescar. A vida passa e o pescador, absorto em sua faina, não sente o passar tristonho da vida! Em cada minuto de espera vive, o incansável e paciente pescador, um ano de intensas emoções. A vida mais vivida, ó Rei do Tempo!, não é a vida do filósofo, é a vida do pescador.
O eloquente Welid ben Obeid, mestre entre os mestres, aclarou, com solene exaltação:
— Posso, pois, assegurar-vos, ó Emir!, que esse pescador disse a mais pura verdade. Há, realmente, pelos quatro cantos do mundo, filósofos que são pescadores. Volveu, então, o Califa:
— As tuas palavras, meu caro vizir, são como brincos preciosos de ouro puro para os meus ouvidos. Admito, agora, que esse pescador tenha dito a verdade. Aceito que um filósofo possa ser pescador. Sim, aceito e acredito. O que me parece estranho e inaceitável é que um pescador seja filósofo!
— Peço humildemente perdão, ó Emir! — acudiu por sua vez o pescador, com certa desenvoltura — Mas nada há, nem pode haver, de estranho no fato de um pescador ser filósofo. Muitas e muitas vezes, quando me sinto cansado de pescar, o corpo dolorido pela faina, largo a minha pesada rede, as minhas linhas, a caixa com iscas, e vou até à Mesquita Otman ouvir as lições dos ulemás que ensinam Filosofia e debatem os graves problemas do Ser e do Não-Ser. Procuro repousar para a fadiga do meu corpo, tornando-me filósofo. A Filosofia é, para mim, tranquilidade e paz. Esqueço, por um momento, os problemas e tropeços de minha vida de pobre, e ponho-me a filosofar. É uma delícia filosofar! A vida passa e o filósofo, enlevado em suas abstrações, não sente o passar inexorável da vida. Sinto aqui discordar do sábio analista Welid ben Obeid! A vida mais bem vivida, mais sentida, é a meu ver, não a vida serena do pescador, mas a vida intensa do filósofo!
— Iallah! — exclamou o Califa, esfregando as mãos, num petulante ar de inteligência. — Pela sombra da Caaba! É realmente curioso o que acabo de ouvir. O filósofo Welid ben Obeid, o sábio, descansa de seus estudos, pescando; o diligente pescador Kalil descansa de sua faina de pescador, estudando os altos problemas filosóficos!
E o Rei dos Árabes, depois de ligeira pausa, rematou com a mais afetuosa simplicidade:
— Já ouvi contar que Jesus, filho de Maria, quando quis escolher os seus primeiros discípulos foi procurá-los, não entre os filósofos, mas sim entre os pescadores. Que Allah, o glorificado, proteja os pescadores e esclareça os filósofos!
Vizires e escribas da corte comentavam:
— Já era de esperar!
No final da audiência real, eis que ocorre o imprevisível: Um pescador humilde e pobre vira filósofo; um filósofo, rico, prestigioso, sábio de renome, grão-vizir do Rei, vira pescador. Maktub! (estava escrito!) Mas, afinal, a semente da dúvida estava lançada entre os sábios e doutores bagdalis:
— Quem tem a vida mais bem vivida? O pobre Iamam, o pescador, ou o rico Welid ben Obeid, o filósofo?
Dizia o douto Sibawaihi, o analista:
— A vida mais bem vivida terá aquele que viver na Paz, no Dever e no Amor, isto é, aquele que viver na Verdade de Deus!
Uassalam!
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Notas:
1 Maktub - Estava escrito. Tinha que acontecer. Admite o fatalismo dos árabes que a nossa vida, com todas as suas peripécias, está escrita no Livro do Destino. Maktub é o particípio passado do verbo Katb, escrever.
2 Ramadã - Período da Quaresma entre os muçulmanos.
3 Cheique - Chefe. Homem de prestígio.
4 Profeta - Refere-se a Maomé, o fundador do Islamismo. Maomé nasceu em 570 e faleceu em 632. É pelos árabes chamado O Profeta.
Fonte:
Malba Tahan. O Gato do Xeique e Outras Lendas.
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