Entre meus conterrâneos, os econômicos mineiros, é um motivo de orgulho, de ampla e sorridente satisfação, confessar que uma gravata custou muito mais barato do que parece. No Rio é exatamente o contrário, o sentimento de exaltação interior nasce quando se pode dar para a gravata um preço alto que surpreenda o interlocutor.
Não conheço outra cidade em que a roupa tenha tanta importância como aqui no Rio. O carioca é duma ironia corrosiva, terrivelmente desmoralizadora para homens, instituições e ideias graves, uma ironia também especialmente inimiga de qualquer pose ou afetação. Excetua-se a roupa; a roupa é sagrada. Um Charles Chaplin, uma Eleanor Roosevelt, um Mikoyan, um Oppenheimer, um Salk, um Alexander, um Schweitzer, um Picasso, um Casperson, um T. S. Eliot, um outro nome qualquer entre os expoentes contemporâneos em seus ramos de arte, ciência ou ofício, nenhum deles conseguiria manter por muito tempo aqui no Rio a aura de respeito que os cerca onde estejam. Sobretudo se cuidassem pouco de sua encadernação, de sua roupa.
Muito possivelmente, ganhariam um apelido, veriam os seus cacoetes imitados nas ruas e nos palcos mambembes, e passariam a ser conhecidos do povo através de um defeito mesquinho, e não pela soma de suas qualidades. Qualquer estrangeiro famoso, caso venha morar nesta cidade, pode agradecer aos céus se não for rotulado de chato. O carioca decidiu-se por uma grande simplificação da natureza humana, classificando a humanidade em chatos e bons sujeitos; com a nuança única de admitir que certos tipos, embora chatos, são no fundo uns bons sujeitos.
Sob este aspecto, São Paulo, com a sua compostura, com o seu culto a toda pessoa que emerge do anonimato, é o antídoto do Rio. Para o estrangeiro, a Capital paulista é um respiradouro: depois da passagem pelo Rio, onde não o levaram muito a sério, o chamado ilustre visitante vai contemplar, refletida no olhar respeitoso do paulistano, a verdadeira dimensão de sua glória.
E assim sempre foi, assim continua sendo, assim vai ser: o carioca tem o gosto e o dom de igualar os homens, de refugar as sofisticações, de considerar apenas em cada pessoa, independente de qualquer outro valor, a sua capacidade de convívio. O resto o povo destrói facilmente com duas ou três maldades de espírito.
Menos a roupa. A roupa, o problema de vestir-se, o preço e a aparência das peças de seu vestuário, transformam o sorriso zombeteiro do carioca numa expressão soturna e sofredora. É o seu ponto fraco, uma zona que resiste à sua ironia e pode torná-lo infeliz.
Diante dum carioca típico, alegre, divertido, com respostas humorísticas para tudo, experimentem, no momento exato de sua rigolade, colocar em dúvida a qualidade de sua roupa ou de sua elegância. Atingido por uma dolorosa pedrada, ele perderá instantaneamente o rebolado.
Sempre me chamou atenção no Rio a simplicidade com que as pessoas falam de suas dificuldades financeiras, de seus sacrifícios de orçamento, de suas turras, por falta de pagamento, com os fornecedores. Esta admirável franqueza desaparece por completo quando se trata de roupa. Neste capítulo, o carioca mente, exagera o preço de seus ternos e de suas camisas, mesmo porque as brigas com os fornecedores e os sacrifícios orçamentários são em grande parte devidos às verbas que se desviam para alfaiates e camisarias.
O proletário francês veste-se mal e come bem; o proletário alemão prefere vestir-se burguesmente e comer mal. É com este que se parece o proletário carioca. E as outras classes o acolhem mais complacentemente se ele passa fome mas se apresenta bem vestido. A roupa vem assim compensar uma fome que não é de pão. Estamos diante de um preconceito complexo, inextirpável do meio social do Rio, terra que inventou e venera a lista dos dez mais, que realiza quase semanalmente um concurso de elegância, terra lucrativa para os comerciantes de tecidos e de roupa feita. Deu-se comigo outro dia uma experiência engraçada: fui ao centro da cidade de blusa, coisa que me aconteceu várias vezes, mas só então acrescida de um pormenor que introduziu um caráter inédito à situação: levava debaixo do braço uma pasta de papéis, feita de nylon.
Sim, pela primeira vez fui à cidade de blusa e pasta. Qualquer um desses fatores quase nada significa isoladamente; reunidos, alteraram radicalmente o tratamento que me deram todas as pessoas desconhecidas.
Quando tomei um táxi, vi que o motorista torceu a cara, mas não percebi o que se passava, pois experimentei Semelhante má vontade em outras circunstâncias. Reparei também certa estranheza do motorista quando lhe dei de gorjeta o troco, mas permaneci opaco ao fenômeno social que se realizava. Em um restaurante comum, sentei-me para almoçar. O garçom, que até então eu não vira mais gordo, tratou-me com uma intimidade surpreendente e, em vez de elogiar os pratos pelos quais eu indagava, entrou a diminuí-los: "aqui a gororoba é uma Coisa só; serve para encher o bandulho".
Não sou de raciocínio rápido mas, em súbita iluminação, percebi, com todo o prazer da novidade, que eu estava vestido de mensageiro: pasta e blusa. Ao longo da tarde, fui compreendendo que, até hoje, não tinha a menor ideia do que é ser um mensageiro. Pois eu lhes conto. Um mensageiro é, antes de tudo, um triste. Tratado com familiaridade agressiva pelos epítetos de amigo, chapa e garotão, o que há de afetivo nestes nomes é apenas um disfarce, pois atrás deles o tom de voz é de comando. "Quer deixar o papai trabalhar, garotão", disse-me o faxineiro de um Banco, cutucando-me os pés com a ponta da vassoura.
Entendi muitas outras coisas humildes: o mensageiro não tem direito a réplica; é barrado em elevadores de lotação ainda não atingida; posto a esperar sem oferecimento de cadeira; atendido com um máximo de lentidão; olhado de cima para baixo; batem-lhe com vigor no ombro para pedir passagem; ninguém lhe diz "obrigado ou por favor"; prestam-lhe informações com relutância; as mulheres bonitas sentem-se ofendidas com o olhar de homenagem do mensageiro; os vendedores lhe dizem "não tem" com um deleite sádico.
Foi uma incursão involuntária à natureza de uma sociedade dividida em castas. Preso à minha classe e a algumas roupas, dizia o poeta, vou de branco pela rua cinzenta. No fim da tarde, eu já procedia como um mensageiro, só me aproximando dos outros com precaução e humildade, recolhendo de meu rosto qualquer veleidade de um sorriso inútil, jamais correspondido. Dentro de mim uma vontade de sofrer. Por todos os mensageiros do mundo, meus irmãos. Por todos os meus irmãos para os quais a humilhação de cada dia é certa como a própria morte. Porque o pior de tudo é que as pessoas não sorriam. O pior é que ninguém sorri para os mensageiros.
Fonte:
Paulo Mendes Campos. O Cego de Ipanema. RJ: Ed. do Autor, 1961.
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