terça-feira, 26 de maio de 2020

Malba Tahan (O Sábio da Efelogia)


Durante a última excursão que fiz a Marrocos, encontrei um dos tipos mais curiosos que tenho visto em minha vida.

Conheci-o, casualmente, no velho hotel de Yazid El-Kedim, em Marrakesh. Era um homem alto, magro, de barbas pretas e olhos escuros; vestia sempre pesadíssimo casaco de astracã com esquisita gola de peles que lhe chegava até às orelhas. Falava pouco; quando conversava casualmente com os outros hóspedes, não fazia, em caso algum, a menor referência à sua vida ou ao seu passado. Deixava, porém, de vez em quando, escapar observações eruditas, denotadoras de grande, extraordinário saber.

Além do nome — Vladimir Kolievich — pouco se conhecia dele. Entre os viajantes que se achavam em “El-Kedim” constava que o misterioso cavalheiro era um antigo notável professor da Universidade de Riga, que vivia foragido por ter tomado parte numa revolução contra o governo da Letônia.

Uma noite estávamos, como de costume, reunidos na sala de jantar quando uma jovem escritora russa, Sônia Baliakine, que se entretinha com a leitura de um romance, me perguntou:

— Sabe o senhor onde fica o rio Falgu?

— O quê? rio Falgu?

Ao cabo de alguns momentos de baldada pesquisa, nos caminhos da memória, fui obrigado a confessar a minha ignorância, lamentável nesse ponto, nunca tinha ouvido falar em semelhante rio, apesar de ter feito um curso completo e distinto na Universidade de Moscou.

Com surpresa de todos, o misterioso Vladimir Kolievich, que fumava em silêncio a um canto, veio esclarecer a dúvida da encantadora excursionista russa.

— O rio Falgu fica nas proximidades da cidade de Gaya na Índia. Para os budistas o Falgu é um rio sagrado, pois foi junto a ele que Buda, fundador da grande religião, recebeu a inspiração de Deus!

E, diante da admiração geral dos hóspedes, aquele cavalheiro, habitualmente taciturno e
concentrado, continuou:

— É muito curioso o rio Falgu. O seu leito apresenta-se coberto de areia; parece eternamente seco, árido, como um deserto. O viajante que dele se aproxima não vê nem ouve o menor rumor do líquido. Cavando-se, porém, alguns palmos na areia, encontra-se um lençol de água pura e límpida.

E, com simplicidade e clareza peculiares aos grandes sábios, passou a contar-nos coisas curiosas, não só da Índia, como de várias outras partes do mundo: falou-nos, por exemplo, minuciosamente, das “filazenes”, espécie de cadeiras em que se assentam, quando viajam, os habitantes de Madagáscar.

— Que grande talento! Que invejável cultura científica! segredou, a meu lado, um missionário católico, sinceramente admirado.

A formosa Sônia afirmou que encontrara referência ao rio Falgu exatamente no livro que estava lendo, uma obra de Otávio Feuillet.

— Ah! Feuillet, o célebre romancista francês! — atalhou ainda o erudito cavalheiro do astracã — Otávio Feuillet nasceu em 1821 e morreu em 1890. As suas obras, de um romantismo um pouco exagerado, são notáveis pela finura das observações e pela concisão e brilho do estilo!

E, durante algum tempo, prendeu a atenção de todos, discorrendo sobre Otávio Feuillet, sobre a França e sobre os escritores franceses. Ao referir-se aos romances realistas, citou as obras de Gustavo Flaubert: Salambô, Madame Bovary, Educação Sentimental...

— Não se limita a conhecer só a Geografia — acrescentou, a meia voz, o velho missionário. — Sabe também literatura a fundo!

Realmente. A precisão com que o erudito Vladimir citava datas e nomes e a segurança com que expunha os diversos assuntos não deixavam dúvida alguma sobre a extensão de seu considerável saber.

Nesse momento, começa uma forte ventania. As janelas e portas batem com violência. Alguns excursionistas, que se achavam na sala, mostraram-se assustados.

— Não tenham medo — acudiu, bondoso, o extraordinário Kolievich. — Não há motivo para temores e receios. Faye, o grande astrônomo, que estudou a teoria dos ciclones...

E depois de discorrer longamente sobre a obra de Faye passou a falar, com grande loquacidade, dos ciclones, avalanchas, erupções e de todos os flagelos da natureza.

Senti-me seriamente intrigado. Quem seria, afinal, aquele homem tão sábio, de rara e copiosa erudição, que se deixava ficar modesto, incógnito, como simples aventureiro, numa velha e monótona cidade marroquina?

No dia seguinte, ao regressar da fatigante excursão aos jardins de El-Menara, encontrei-o casualmente, sozinho, no pátio da linda mesquita de Kasb. Não me contive e fui ter com ele.

— O senhor maravilhou-nos ontem com o seu saber — confessei respeitoso. — Não podíamos imaginar, com franqueza, que fosse um homem de tão grande cultura. Na sua Academia, com certeza...

— Qual, meu amigo! — obtemperou ele, amável, batendo-me no ombro — Não me considere um sábio, um acadêmico ou um professor. Eu pouco sei — ou melhor — eu nada sei. Não reparou nas palavras de que tratei? Falgu, filazenes, Feuillet, França, Flaubert, Faye, flagelo. Começam todas pela letra “F”! Eu só sei falar sobre palavras que começam pela letra “F”!

Fiquei ainda mais admirado. Qual seria a razão de tão curiosa extravagância no saber?

— Eu lhe explico — acudiu com bom humor o estranho viajante. — Sou natural de Petrogrado, e vivo do comércio do fumo. Estive, porém, por motivos políticos, durante dez anos nas prisões da Sibéria. O condenado que me havia precedido, na cela, em que me puseram, deixou-me como herança, os restos de uma velha enciclopédia francesa. Eu conhecia pouco esse idioma, e — como não tivesse em que me ocupar — li e reli, centenas de vezes, as páginas que possuía. Eram todas da letra “F”. Desde então fiquei sabendo muita coisa, tudo, porém, sem sair da letra “F”: fá, fabagela, fabela, fabiana, fabordão.

Achei curiosa aquela conclusão da original história do inteligente Kolievich — o negociante de fumo.

Ele era precisamente o contrário do famoso e venerado rio Falgu, da Índia. Parecia possuir uma corrente enorme, profunda e tumultuosa de saber; entretanto, sua erudição, que nos causara tanto assombro, não ia além dos vários capítulos decorados da letra “F” de uma velha enciclopédia.

Era, inquestionavelmente, o homem que mais conhecia a ciência que ele mesmo denominara “Efelogia”!

Fonte:
Malba Tahan. O Gato do Xeique e Outras Lendas.

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