Após o jantar em casa, Norberto encaminhou-se para sua mesa de trabalho, onde, aborrecido, ficou contemplando as folhas brancas de sulfite.
Às vezes, desviava o olhar para as estantes que o rodeavam, repletas de livros.
Andréa tocava, ao lado, uma suave sonata.
- Com mil demônios! bradou Norberto - Não consigo!
- Que há, querido? Perguntou Andréa, parando de tocar.
- Estou estressado, não consigo escrever minha crônica para o periódico.
Andréa abandonou o piano e foi sentar-se ao lado do marido.
Norberto confidenciou-lhe que, após escrever dez anos, diariamente, para o jornal, não encontrava, por mais que procurasse, o tema para seu artigo.
- Acho que estou precisando descansar...tirar umas férias.
Já focalizara recordações da infância e dos tempos de juventude na faculdade, assim como histórias e casos de família. Mas, agora, por mais que forçasse a memória, nada conseguia.
- Querida, as pessoas possuem alguns casos reais, experiências adquiridas no dia a dia, mesmo você que é um anjo de bondade e um talento musical, não teria, talvez algum episódio que pudesse me ajudar a fugir desse sufoco profissional?
Andréa concordou, com um sorriso:
- Casei-me com você porque o amei e continuo com você, porque o amo - essa é a minha história.
- Querida, você é gentil, mas eu falo do antes de mim, antes dos seus 21 anos. Veja se me entende, quero torná-la minha colaboradora. Afinal, seja lá o que haja acontecido antes de mim, não me importa!
Ante tais argumentos, Andréa capitulou:
- Está bem, entendo os nobres interesses da literatura. Vou contar-lhe um fato anterior ao nosso relacionamento mas, por favor, não me interrompa... caso contrário, não irei até o fim.
Fui apaixonada por mais de 3 anos...Não feche a cara. Era uma paixão louca, de jovem. Não um caso sério, de amor, como o nosso.
- Continue!
- Não sei, estou envergonhada...
- Continue.
- Querido, essa confissão é um sacrifício que faço para ajudar. O maestro Sílvio, meu professor de piano, era casado e eu queria, a toda força, separá-lo da Leonor. Se hoje sou boa, naquela época fui má. Como você sabe, o primo Antenor era e é grande conquistador e eu procurei aproximar o primo da Leonor e ele acabou por seduzi-la. Atingi meu objetivo que era a destruição daquela feliz união.
- Chega de infâmia! gritou Norberto - Você foi capaz de tal canalhice?
Andréa olhou o marido e riu com ternura.
- Claro que não, nunca existiu em minha vida um Sílvio, professor de piano, e muito menos a seduzida Leonor, foi tudo armação, tudo por você e pela literatura.
No domingo, Norberto indagou ao sogro, com naturalidade, durante o almoço:
- Dr. Celso, que fim levou aquele maestro, que dava aulas particulares de piano para Andréa em solteira?
- Silvano e a esposa Leontina, disse-lhe o sogro, tinham ficado muito amigos de Andréa e do meu sobrinho Antenor, mas, de repente, sumiram e, mais tarde, fiquei sabendo que o casal se havia separado.
Norberto empalideceu, enquanto Andréa, com voz macia, lhe dizia ao ouvido.
- Querido, não vai acreditar, vai? Foi tudo pela literatura.
(Revista Santos Arte e Cultura – Março 2009)
Fonte:
Cláudio de Cápua. Retalhos de Imprensa. São Paulo: EditorAção, 2020.
Livro gentilmente enviado pelo escritor.
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