quinta-feira, 21 de maio de 2020

Scyla Bertoja (Meias Trocadas)


Não quero ser a primeira. Finjo dormir. Nos últimos cinco anos já aprendi alguns truques. Aquelas vozes rasgadas, agudas, incultas, Invadem o quarto, circundam as camas. Moldura sonora dos nossos pesadelos noturnos, a gritaria precede o abrir de cortinas e persianas, derramando claridade em nossos olhos ainda colados. Em seguida braços fortes e mãos geladas, quase sempre úmidas, nos agarram e nos levam meio arrastadas, para o banheiro. Às vezes, para adiantar serviço, duas de nós ao mesmo tempo. Fraldas molhadas ou até pior, cheiramos mal e o sentimento é de vergonha, constrangimento. Por isso, e não por preguiça, como querem alguns, seguimos reclamando  pelo corredor, o que não chega a comover as pessoas que nos amparam. Depois, à medida que somos lavadas, enxugadas e vestidas com roupas limpas e secas, vamos reconquistando a sensação de sermos, outra vez, humanas. Penso que aquelas que já perderam a consciência são mais felizes, pois não demonstram alguma repulsa em relação a seus corpos e parecem desconhecer a desagradável sensação ao acordar, indiferentes à humilhação e ao ridículo. Raramente opõem resistência aos modos bruscos de alguma atendente mais grosseira. Mas há sempre uma ou duas que não querem sair. Silenciam tão logo são colocadas embaixo do chuveiro, esboçando até, por vezes, um arremedo de sorriso idiotizado, senil. Braço rígido, mão em garra, aquele andar de cãozinho atropelado, o medo e a insegurança das cegas, são coisas normais na casa. Ninguém mais usa óculos. De nada serviria. Acho que a visão de algumas delas se compara à "Aurora no Castelo Norham", tela pintada por Turner, de concepção quase abstrata, que tem como tema uma mansão sobre o rio Tweed. Conheci uma reprodução da obra no consultório do médico que me operou pela primeira vez. Lindíssima. Mas não permite individualizar absolutamente nada.

O desfile matinal não é exatamente um espetáculo de grande elegância. Portadoras de todo tipo de deficiências, elas vão sendo acomodadas à mesa do café, com respeito e até carinho, pelas funcionárias, com direito a cafuné, afago nas costas, no rosto ou nas mãozinhas enrugadas e manchadas pelo tempo. As cabeças vão do grisalho ao branco amarelado. Apesar do ambiente em que vivo, meu conhecimento sobre doenças é parco. Mas da idade eu sei. Fico atenta ao modo como emagrecem rapidamente, mesmo alimentando-se com frequência e em abundância. Ficam enrijecidas e movimentam-se com dificuldade. Ao falar, confundem os sons e produzem discursos ininteligíveis. No entanto, parecem saber o que estão tentando dizer. Em seguida esquecem tudo. Algumas delas demonstram uma espécie de dualidade. Dão respostas claras e lúcidas, emitem sua vontade, mas, ao relatar algum episódio de suas vidas, agregam histórias que não aconteceram na realidade - fabulação. Segundo ouvi dizer, é somente para preencher, no cérebro, os espaços que não podem ficar vazios.

Minhas companheiras, com raras exceções, foram esposas, mães, trabalhadoras, artistas, durante o período mais produtivo de suas vidas. No entanto, a doença e a idade a todos nivelam. Os processos degenerativos não respeitam diplomas, títulos honoríficos, contas bancárias. Tampouco histórias de dedicação e capacidade de trabalho.

Chega a minha vez. A humilhação de depender dos outros para exercer os mais simples atos da vida já seria suficiente para desesperar, mas não fica por aí. Sirvo também de galhofa para as jovens que me garantem esse mínimo de dignidade que é andar limpa, razoavelmente vestida e alimentada. Riem do meu corpo mal feito e dão apelidos chulos às minhas partes pudendas.    Poderiam evitar mencioná-las em seu linguajar rasteiro. Mas se comprazem ao ver-me irritada. Aquém me devo queixar? Serei bem tratada após receberem as reprimendas de seus patrões? Ou serei alvo de uma perseguição corporativa?

Tenho tentado parecer indiferente - sem grande sucesso - ou argumentar diretamente com meus anjos da guarda. Elas são profissionalmente qualificadas, mas nem todas trazem de suas famílias a educação e a sensibilidade necessárias ao entendimento da nossa situação. Um dia ouvi um comentário assim: "Minha bisavó também teve esses problemas e ficou em nossa casa até morrer, e nunca incomodou ninguém". Fiquei pensando e cheguei à conclusão de que há coisas que não podem ser compradas.

Morando neste lugar, às vezes lembro do canil onde costumava deixar Tolstói quando viajava por alguns dias. O veterinário estava lá diariamente. As instalações eram muito limpas e tudo era adequado ao gosto e à necessidade dos cães para evitar o estresse. Meu poodle branco adorava ficar lá. Somente o meu retorno era melhor do que aquele ambiente.

Na sala de música, enquanto espero para colocar os fones e deliciar-me com a Quinta Sinfonia de Beethoven, uma colega, inconformada, conta que, às vezes, observando os próprios pés, não reconhece as meias. Tem certeza de que não são suas.

Sou invadida por sentimentos de revolta e impotência, coloco os fones e levanto o volume para conseguir abafar o grito que me habita o peito há muitos anos. A falta de tato da companheira me parece pior que o meu preconceito. A ignorância dela me atingiu profundamente. Como pode queixar-se das meias para alguém que não possui as pernas?

Fonte:
Rozelia Scheifler Rasia, Alba Pires Ferreira, Ilda Maria Costa Brasil (org.). Coletânea Enigmas. Porto Alegre/RS: Alternativa, 2012.

Um comentário:

Dênia Bazanella disse...

Scyla maravilhosa nos entrega um texto necessário. E muito bem escrito. Obrigada, minha querida! Beijos