segunda-feira, 18 de maio de 2020

Aparecido Raimundo de Souza (Revoada de Maritacas)


TRABALHEI, POR TRÊS meses, numa agência de automóveis e, confesso, minha experiência nessa área não foi das mais promissoras. O único cliente que tive o privilégio de ter em mãos, e, mesmo assim, porque minha gerente me passou o contato, depois de  fechada a venda, se constituía em somente ligar e pedir para que retornasse à agência, assinar os papéis e fazer o restante do pagamento, vez que havia dado de entrada uma soma considerável em dinheiro vivo.

Há dias, eu ligava, insistia, perseverava e o sujeito me cozinhava em banho-maria o que me levou a acreditar que indubitavelmente a criatura desistira da compra, ou, no pior dos mundos, ficara enraivecido pelo simples fato de, quando viera na loja pela primeira vez, ter sido atendido com toda amabilidade por uma linda jovem alta e magra, de cabelos compridos e olhos profundos e claro, olhos envolventes e carregados de uma meiguice invulgar.

Realmente, a Emilly, minha gerente, se constituía, sem tirar, nem por, num pedaço de caminho largo, propício a todos os tipos de pecados, além de atenciosa, dócil e incrivelmente dona de si, o que constituía no seu principal segredo para tratar com as pessoas, mesmo as mais indecisas e culminar com os fechamentos rápidos impostos pela empresa, sem mencionar o fato de que, mês após mês, a beldade vinha batendo o primeiro lugar em fechamentos de negócios e atendimentos vips entre os demais colegas.

Como eu estava pensando seriamente em desistir e ela, sabedora de meus problemas pessoais, abriu mão desse cliente em particular, observando todavia que a aquisição estava concretizada, faltando apenas que a criatura viesse até a revendedora e assinasse a papelada para finalmente levar para casa o veículo de sua predileção.

— Como te falei, Berredo — disse com delicadeza a Emilly. —  Basta você ligar todo santo dia, que ele uma hora não terá como lhe dizer não. Lembra que água mole em pedra dura... E não esqueça: a comissão dessa venda (isso fica aqui entre nós) eu repassarei a você na totalidade, para lhe dar uma injeção de força e ânimo.

Seguindo os conselhos de Emilly, todo santo dia assim que chegava, passava a mão no telefone e lembrava o seu Anacleto Barbosa a vir até a agência, tomar uma água gelada, saborear um delicioso cafezinho... No primeiro dia, seu Anacleto me pediu desculpas alegando não poder comparecer em face de precisar ir a um enterro. Apresentei, num gesto respeitoso, as minhas condolências e desliguei. Em face desse imprevisto, deixei passar uns dias e ataquei novamente.

Seu Anacleto, como num disco de vinil arranhado, pediu mil desculpas prometendo que em breve viria me conhecer pessoalmente. Mandou um abraço à Emilly e nosso papo findou ai, fechando com a mesma conversa mole que “precisava ir urgente a um enterro”. Confesso que fiquei deveras chateado com a criatura e prometi, a mim mesmo, que ligaria uma derradeira vez, e então descartaria o camarada que tudo indicava e levava a crer, fazia hora e motejava com a minha fuça.

Deixei de novo passar uns dias e voltei à carga,  intencionando de antemão se o filho das unhas viesse com a mesma lenga-lenga de precisar comparecer a um enterro, como das vezes passadas. Com pesar de perder o emprego e ficar sem moral com a Emilly, mandaria o enrolão com carro e tudo para aquele lugar. Liguei. Seu Anacleto, bom de papo, se quedou em mesuras. Pediu perdão, falou do cafezinho que eu prometera e fechou o nosso diálogo com a mesma dispensa esfarrapada que naquele dia também não poderia vir à loja, em face de carecer ir a um enterro.

Juro por tudo quanto é mais sagrado, minha intenção não era outra senão a de mandar aquela figura asquerosa e nojenta tomar naquele lugar, com todas as letras. Eu precisava desabafar, falar poucas e boas, mandar para os ouvidos do infeliz cobras e lagartos. Todavia, parece que levado pelo silêncio repentino que fiz imprimir à minha voz, e pela  respiração ofegante de puro espanto e raiva, ou sei lá o quê, seu Anacleto explicou:

- Berredo, meu caro jovem. Esqueci de lhe falar. Peço humildemente que me perdoe. Acredito que a senhorita Emilly não lhe tenha colocado a par sobre a minha profissão. Sou agente funerário!    

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

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