segunda-feira, 25 de maio de 2020

Rachel de Queiroz (Falar e Escrever)


AGORA MUITO SE DISCUTE a linguagem, ou antes, a falta de linguagem dos jovens, que não falam nem escrevem e ninguém sabe como se comunicam — queixam-se os mestres deles e os entendidos em geral. Ora, talvez se comuniquem por grunhidos e acenos como os chimpanzés, ou por um curto vocabulário de nomes e verbos elementares, como os aborígenes australianos.

A crise é ameaçadora principalmente para nós que da palavra escrita e falada tiramos o nosso pão de cada dia. Mas os meninos — eles — não se queixam. A privação ou pobreza linguística evidentemente não os afeta nem lhes tira a alegria, nem sequer lhes dá complexo de inferioridade perante os mais articulados. Ou, se de alguma coisa se queixam, é de que a falação em torno já está um saco, pô!

A verdade é que nós, os adultos da velha geração, temos que nos conformar com o fato concreto de que as gentis artes da fala e da escrita estão em triste decadência nesta idade do mundo, e a tendência é a situação ficar cada vez pior. E não digo escrita me referindo só ao ato intelectual de botar pensamentos no papel, mas ao ato material de desenhar caracteres, de riscar letras compondo sílabas, palavras e frases, Ninguém tem mais letra, que dirá boa letra, A escrita dos jovens é um arranhar sumário de riscos ilegíveis, que os professores aceitam porque. naturalmente, se cansariam de lutar. Os trabalhos escolares dos meus netos, por exemplo, os poucos que já vi, se eu fosse professora deles punha os dois de penitência, copiando cada letra do ABC vinte mil vezes pelo menos. Mas, como me argumentou o mais novo, toda função sem uso tende a desaparecer e, com a escrita mecânica, a letra de mão não tem mais uso. “Você por caso escreve alguma coisa à mão? Pô.” O melhor, pois, será dar a eles uma máquina assim que se alfabetizarem, ensinar datilografia em vez de caligrafia e não se fala mais no assunto.

Quanto ao discurso e à redação não acho, como li num articulista, que os jovens repelem as nossas formas peremptórias de linguagem, já que nós não escrevemos como se fala. Essa não. Nós, os da minha geração, escrevemos como falamos, ou o mais aproximadamente possível. Quem escreve difícil e arrevesado e ininteligível é a geração meio termo, que ronda os trinta e os quarenta anos, querendo passar por nova, imbuída de tecnicismos, fazendo questão de mostrar cultura pelo uso de palavras raras, ou inventadas, ou mal traduzidas e em geral grotescas.

É entre eles e os muito jovens que se abre o tal vácuo de linguagem; e é contra eles que se insurgem os meninos, no que fazem muito bem. Os jornais e revistas vivem encaroçados de bobagens do pessoal da suposta intelligentsia, um abominável jargão que propriamente não quer dizer nada, e que poderia ser vertido em linguagem comum e bonita, sem o menor prejuízo, antes com lucro. E desses espúrios vocabulários hoje em uso, o pior, me parece, é o falar metido a psicológico ou psicoanalítico; eles não dizem que namoram ou vivem com uma pessoa, mas que “têm relacionamento”; se alguém os oprime ficam castrados (gostam muito da ideia: mãe carrasca é castradora, decepção é castrante, reprimir-se é castrar-se). Falta de educação é agredir, sujeito tímido tem bloqueio, a moça se joga nua da janela porque está carente, quem não se envergonha do que faz se assume. Aliás, fazer análise é o grande sarro, não há vedetinha nem subgalã de novela que não dependa do seu analista, nem há estrela que se respeita que não confesse pelo menos de dez a cinco anos de análise. Análise dá status, e status é uma das palavras mais em moda.

Assim, os meninos que ainda não estão contaminados pelo gongorismo tecnocrático dos seus pais, irmãos mais velhos e professores reagem como podem, reduzindo o seu falar às palavras de quatro letras e aos monossílabos elementares. E por isso mesmo eu não fico apreensiva quanto a essa inarticulação dos muito jovens, antes a encaro como reação natural ao intolerável e vazio pedantismo dos que lhes são imediatamente mais velhos pais, irmãos e professores. (Ah… os professores de ‘‘Comunicação  e Expressão’’, que é a velha gramática em novos termos!)

Talvez dessa recusa os meninos saíam para uma linguagem nova, ríspida e expressiva; à medida em que forem se desenvolvendo, terão necessidade de se exprimir melhor e criarão, ou recriarão, a linguagem necessária ao seu tempo e aos seus sentimentos, livres da enxurrada de bobagens festivas dos preciosos ridículos desta década. E nós, os avós que ainda estivermos vivos, estaremos às ordens para aplaudir e comemorar a rebelião linguística dos meninos; e até a auxiliá-los com alguns arcaísmos úteis, que os pernósticos de entre nós e eles terão posto fora de uso.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

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