segunda-feira, 25 de maio de 2020

Aparecido Raimundo de Souza (Bico de Adagas)




O APARTAMENTO DEFRONTE AO QUE BANANÔNCIO MORA possui duas campainhas distintas. Uma delas tem uma tampinha cinza e o buraco redondo com duas pernas de fios soltas. Quando chega alguém querendo falar com o morador, que, diga-se de passagem, nunca ninguém viu nem mais gordo, nem mais magro, existe, abaixo do olho mágico da porta uma caixinha dessas modernas, ou melhor, a campainha de verdade para que seja comprimida e, uma vez acionada, alerte o residente de que há gente do lado de fora. Sempre que pinta uma viva alma no pedaço, Bananôncio fica sabendo, não porque bisbilhote o tempo todo, longe disso. Simplesmente o alarme sonoro do subir e descer do elevador dispara um “plim” igual ao da Globo, e corroborando a atitude desse mecanismo, as dobradiças enferrujadas da velha engenhoca rangem desesperadamente.

Nessas ocasiões, o rapaz aproveita para explorar, claro, pelo visor da sua própria entrada e ver quem é a visita que anda à cata do vizinho misterioso. Curiosidade de quem não tem o que fazer, a não ser esperar passar os dias lendo um romance, vendo televisão e aguardando o INSS, todo final de mês, depositar na sua conta bancária a aposentadoria conseguida em decorrência de um acidente acontecido há um ano, quando um pesado cachorro que vivia na cobertura de seu prédio (e até hoje, não ficou bem esclarecido) despencou doze andares e veio com tudo, para baixo, caindo exatamente sobre seus costados. Fora essa lembrança amarga, espreitar quem bate no vizinho passou a ser um bom exercício para ajudar a passar o tempo e fugir da rotina. Bananôncio se depara, nessas ocasiões, com as situações mais engraçadas e inusitadas possíveis. Dias atrás uma moça loira, bem vestida, procurava pelo botãozinho da campainha. Ela não viu diante de si a caixinha, abaixo do olho mágico e, por essa razão, começou a futucar, na esperança de enfiar um dos dedos no buraco da tampinha cinza e juntar os fios. Os dedos não ajudaram em nada.

Talvez fossem os anéis que atrapalhassem. Quem sabe a cor dos cabelos. Em seguida ela introduziu o polegar e o indicador com o objetivo de a qualquer custo fazer funcionar a geringonça. Puro fiasco. Saiu furiosa, cuspindo marimbondos.

Não foi diferente com um cidadão baixinho, aparentando uns quarenta anos, de chapéu na cabeça e uma bolsa dessas 007. O infeliz chegou ao cúmulo de, a certa altura das frustradas tentativas, meter a cara no olho mágico com a finalidade de ver se pastorava alguma coisa dentro da peça. Também teve problemas com os cordéis. Pelo visto, e pelo ar desagradável que fechou em seu rosto, deve ter tomado um tremendo de um choque. Desistiu, pois, da empreitada. Resmungando cobras e lagartos, deu meia volta e desapareceu.

Bananôncio chegou à conclusão que as pessoas, de um modo geral são levadas ao grotesco, e expostas ao ridículo por pura comodidade. Ninguém para, por alguns instantes, com a intenção de analisar o que está posto e visível diante do nariz. E pensar numa solução simples, que culmine num resultado rápido e prático. Às vezes, um problema insignificante, de finalização gritante e à vista, está logo ali, atropelando, esmagando, instigando, como se fosse uma cobra prestes a dar o bote. Todavia, a pressa, aliada à azáfama e à afobação, juntas, de mãos dadas, com a velha burrice derramam tudo a perder.

O incrível e cômico na história: quem quer que chegue logo se vê às voltas com os atalhos da campainha. Talvez, no fundo, seja essa a verdadeira intenção do dono do apartamento. Dar choque nos chatos que não desistem de vir até ali perturbar o seu sossego. O engraçado morador deve rir muito e se divertir um bocado. De qualquer forma, esse vizinho de Bananôncio não quer, decididamente, ser incomodado por ninguém. Ora, se não quer ser molestado, por que então fornece o endereço de seu domicílio?

Desse, por exemplo, o de uma tia, ou o de um amigo, ou da pizzaria logo ali na esquina, a menos de duzentos metros e preservasse a sua privacidade com unhas e dentes, não com fios desencapados. Mas os trocinhos do nariz sonoro daquela campainha, soltos, de certa forma instigam a atenção dos que acampam, de repente, diante da entrada do elemento, seja com pressa, suando em bicas, ou porque tenham outros afazeres a serem cumpridos, além daquele de estar ali. Pelo sim, pelo não, todos os que zanzaram até agora pelo corredor imenso, se olvidaram de atentar para os mínimos detalhes e de apertar o botãozinho correto, logo abaixo do olho de visão.

Bananôncio percebeu, e não só percebeu, aprendeu e muito com suas olhadelas clandestinas. Concluiu que cada pessoa reage de uma maneira diferente. Uns destratam, afrontam, espinafram, xingam. Outros fazem caretas, olham para todos os lados, desconfiados. Teve um visitante que, inconformado, se deu ao trabalho de urinar no pé da porta, e depois, seguir seu caminho. As mulheres, em meio a essa confusão são as mais interessantes de ser reparadas. Elas se ajeitam antes. Penteiam os cabelos, retocam a maquiagem, renovam o batom dos lábios num cunho estritamente ligado a favor da boa elegância. Os homens são menos exigentes com a aparência. Só corrigem o nó da gravata, os óculos, ou dão uma batida discreta, com uma das mãos no paletó para afastar algum pozinho ou cisco que, por ventura, tenha grudado. No geral, pensam em tudo, esses ilustres turistas, todavia se esquecem do mais comum e corriqueiro: apertar o botãozinho da segunda campainha, logo abaixo do olho mágico, ou por outra, de baterem suavemente com os nós dos dedos produzindo um leve e quase inaudível toc, toc na porta sisuda, carrancuda e silenciosa, parada, estática, sem vida, bem ali, diante de suas imperturbáveis imbecilidades.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. As mentiras que as mulheres gostam de ouvir. Rio de Janeiro: Editora AMC Guedes, 2013

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