sexta-feira, 15 de maio de 2020

Contos e Lendas do Brasil (A Casa de Pedra)

Era naqueles velhos tempos coloniais em que paulistas e portugueses — estes apelidados emboabas — uns ao norte e outros ao sul, rasgavam a extensa província de Minas Gerais, à cata do ouro.

Em São João Del-Rei, emboabas e paulistas, cada qual de seu lado e por sua conta, se entregavam a mineração aurífera, sendo capitão-mor, na época, Diogo Mendes que, em companhia da filha e de Fernando, seu sobrinho e secretário, residia no local que é hoje o arraial de Matosinhos.

Entre os paulistas — segundo conta Bernardo Guimarães em seu livro “Maurício ou os Paulistas em São João Del-Rei” — havia um, de nome Gil, rapaz antes trabalhador, mas desprotegido da fortuna, que passou a enriquecer a olhos vistos, depois que foram para sua companhia um bugre, por ele salvo da morte após um sério conflito entre paulistas e aborígenes, chamado Irabuçu, e Judaíba, sua filha.

Propalava-se que Irabuçu sabia de uma fabulosa mina onde, diariamente, apanhava ouro aos punhados, para levar ao seu salvador. Um dos portugueses, pelos patrícios apelidado Minhoto, que votava a Gil ódio tremendo, entendeu de deitar as mãos ao velho índio, auferindo com isto dois proveitos: ficar senhor da mina, onde o selvagem o conduziria sob ameaça de morte, e fazer mal ao inimigo, estancando-lhe a fonte de riqueza.

Sem demora, tratou de por em execução o plano que havia traçado. Aliciou patrícios, que sitiaram o índio, quando uma tarde partia para a mina, mas este desapareceu como por encanto sob uma moita, de onde saiu, numa carreira fantástica, um enorme gato-do-mato, que pos os portugueses em debandada, julgando o índio transformado em animal.

Outras ciladas lhe preparou o Minhoto, mas em vão. Irabuçu, cercado no campo, sem possibilidade de escapar, quando todos o imaginavam seguro, desaparecia misteriosamente. Ninguém mais, então, queria saber de capturá-lo, julgando-o pactuar com o demônio. À vista disso, o Minhoto foi à casa do capitão-mor, a fim de, com a gente deste, destemida e bem municiada, aprisionar Irabuçu, repartindo entre ele, o capitão-mor e o secretário, o ouro recolhido da mina.

Recebeu-o Fernando, o qual, depois de o ouvir com interesse, fez-o ciente de que o ouro da mina seria todo de El-Rei, não cabendo a ele, Minhoto, um grão sequer. E sem reparar no desespero do patrício, que se julgava miseravelmente roubado, deu ordens para que lhe     trouxessem Irabuçu, a fim de que este revelasse o local da mina de onde saía o ouro, sem que a El-Rei fosse ter o devido quinto.

Preso Irabuçu e levado à presença do capitão-mor e sua gente, negou-se ele a fazer qualquer declaração a respeito, muito menos a levá-los à mina. Ameaçaram-no de suplícios horríveis e, por fim, de morte.     Nada o demovia de sua firme decisão.    Foi só ante a ameaça de torturarem sua filha Judaiba que Irabuçu aquiesceu.

Amarrado como uma fera, lá foi ele, o pobre velho, escoltado por seis portugueses, armados até os dentes, em direção ao fabuloso Sésamo.

Depois de penosa caminhada de léguas e léguas, feita com o propósito de despistá-los, porquanto a mina distava da povoação apenas alguns quilômetros, chegaram, por fim, ao cair da noite, em frente a uma grande furna muito alta, cujo interior...
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Cedamos, porém, a pena a Bernardo Guimarães que vai, no seu estilo vigoroso, descrevê-la e narrar a trágica aventura dos portugueses e do índio no interior dessa furna conhecida hoje por Casa da Pedra e situada quase nas divisas de São João del-Rei com a histórica cidade de Tiradentes.
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Irabuçu acendeu na fogueira o seu archote e foi entrando pela caverna. Os emboabas o acompanhavam de perto, benzendo-se e rezando quanta oração sabiam.
 
Para fora da lapa nada mais se via; a escuridão da noite, que começava a descer, a fumaça da fogueira tudo escondiam. Estavam segregados completamente da luz do céu, e franqueavam os lôbregos umbrais do reino das trevas.

Acompanhemo-los e vamos também admirar, à luz do archote de Irabuçu, as maravilhas dessa imensa e misteriosa gruta,
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O pavimento é plano, liso, coberto de areia e de folhiço, como um solo de aluvião; os emboahas penetram com facilidade pela gruta a dentro. Logo à entrada, entre os brancos pilares da arcada imensa, que serve de pórtico aos outros, observa-se um curioso e estupendo fenômeno. Um enorme rochedo está como pendurado da abóbada, à semelhança de lustre colossal, colocado à entrada daquele templo subterrâneo. Mas o monstruoso lustre está envolto em crepe pardacento, suas luzes estão extintas, e é mister brandir o archote em volta dele para admirar-lhes as dimensões titânicas, e ver como se acha preso à cúpula por um ligamento proporcionalmente tão delgado, que faz estremecer. Está ali como a espada de Dâmocles, suspensa por um fio, aquela massa enorme de milhares de quintais, como ameaçando esmagar, pulverizar com sua queda, os imprudentes mortais que ousarem passar-lhe por baixo, para devassarem os mistérios daqueles áditos tenebrosos.

Mas Irabuçu e seus companheiros não estão ali para admirar semelhantes maravilhas; passam por debaixo do imenso candelabro sem prestar-lhe atenção, internam-se mais alguns passos, e acham-se no recinto de um vasto salão, amplo e circular, à maneira da nave de magnífica rotunda. Curvava-se sobre suas cabeças uma abóbada de pasmosa elevação, e de profunda que era, mal seria apercebida ao fraco clarão do archote, se não fora o cintilar das pedras úmidas, polidas e pontiagudas, de que estavam crivados o teto e as paredes da gruta.

À luz daquele archote demasiado escassa para alumiar tão vasto recinto, o interior da lapa, já de si mesmo curioso e surpreendente, tomava um aspecto solene e fantástico, que inspirava, a um tempo, pavor e assombro. Os muros e a abóbada pareciam cobertos de ornatos e esculturas caprichosas, de frisos, relevos, cornijas, colunas, nichos e volutas, em desordenada profusão.    Aqui via-se um altar mutilado; ali cavava-se no muro um trono em ruínas; além ressaltava da parede um magnífico púlpito; mais além um renque de colunas decepadas se estendiam a perder-se na escuridão. E tudo isso se revestia de brilhantes e variadas cores reverberando à luz do facho com reflexos de ouro e rubi, de esmeralda e safira, de topázio e ametista.

Era uma gruta de estalactites, curioso brinco, em que a natureza parece comprazer-se dando as mais singulares e caprichosas figuras a essas rochas formadas no côncavo das cavernas pela congelação de gotas de água infiltrada durante séculos através das fendas dos rochedos.

Além de tudo isso, uma multidão de cordas de grossura enorme descendo perpendicularmente da abóbada, em uma altura talvez de mais de vinte braças, vinham embeber-se no chão. Dir-se-iam cordões, que suspendiam imensas cortinas destinadas a velar os mistérios daquele estupendo e maravilhoso santuário. Eram raízes de árvores seculares, que, cravando-se pelas fendas da abóbada e achando em baixo o espaço vazio, alongavam-se até o solo, onde vinham beber a seiva, para alimentar a robusta e vicejante selva, que cobrindo o corixéu da gruta, balanceava lá em cima — a mais de cinquenta braças de altura — a coma verde-negra às auras livres do céu.

Em tudo se parecia aquele antro com o interior de um templo ciclópico, por onde roçara a asa estragadora dos séculos, ou passara a mão vandálica do bárbaro, destroçando e mutilando tudo.

A luz avermelhada do archote batendo nas miríades de pontas de estalactites, que incrustavam toda a abóbada, reverberando em chispas cintilantes, produzia o mais deslumbrante efeito.
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Os portugueses não puderam conter um grito de surpresa e assombro, e estacaram por instantes, diante de tamanha maravilha.

— Que isto, Santo Deus!... — exclamavam uns. Tudo isso é ouro e pedraria!... é aqui!... estamos enfim na mina...

Outros, porém pensavam estar em um palácio de fadas, e acreditando que o bugre não era mais do que um formidável encantador, começaram a temer por sua sorte, receando ali ficarem encantados por todo o sempre.

Para se moverem, foi mister que Irabuçu os acordasse daquela estupefação. Já dois fachos se tinham consumido, e não havia um minuto a perder.
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O índio avançou, contornando o vasto salão, como procurando entrada a outros aposentos. Viam-se, com efeito, em torno, aqui e acolá, grande número de fendas e arcadas de várias dimensões, e corredores que se perdiam na escuridão, e pareciam dar entrada a novos e vastíssimos compartimentos.    O bugre penetrou pelo mais espaçoso desses corredores seguido de perto pelos portugueses. Via-se de um lado, suspenso na muralha, um púlpito quase perfeito, de linda e grandiosa estrutura. Os emboabas cuidaram ver dentro dele um monge de joelhos e debruçado, com a fronte envolta em seu capuz. Já se ajoelhavam e persignavam, quando subitamente troou-lhes aos ouvidos uma voz horrível, antes um pavoroso mugido.

— Tapaçununga! — bradara Irabuçu com toda a força de seus pulmões. Os ecos das profundas cavidades reproduziram por largo tempo o grito estranho, em surdos e temerosos rugidos.

Imediatamente dois sanhudos e truculentos canguçus, rompendo das grutas interiores, passaram velozes como o raio por entre os portugueses, e desapareceram de novo na escuridão.

De susto ou abalroados, quase todos caíram por terra, e trêmulos, cobertos de suor gélido, não pensaram senão em encomendar a alma a Deus,

— Não tenham medo, meus brancos — disse Irabuçu, com um sorriso calmo e satânico; estes bichos moram aqui; são uns gatinhos que vigiam o ouro de Tupã; foi para tocá-los para fora que Irabuçu gritou.
 
Estas palavras, proferidas em tom de diabólica ironia, não eram muito próprias para tranquilizar os emboabas.

— Se temos de morrer sem falta — murmurou um, com voz desfalecida — é melhor morrermos aqui mesmo; daqui não dou nem mais um passo para diante.

— Se temos de morrer — replicou outro, um pouco mais animado — tanto faz morrer aqui como acolá; vamos companheiros!... Pelo que vejo, já estamos no inferno em corpo e alma, e tão inferno é aqui, como lá adiante.

O terror, tendo tocado ao seu cúmulo, converteu-se em coragem, como costuma acontecer, nessa coragem dos que se julgam irremissivelmente perdidos, e que se chama coragem do desespero.

Guiados pelo índio, os emboabas avançaram resolutamente através de um dédalo de furnas, corredores, escaninhos irregulares, em que se achava dividida gruta, à maneira de alvéolos de uma colmeia gigantesca. Esses diversos compartimentos eram separados entre si por grossas massas de estalactites, que pendendo do teto vinham quase tocar ao chão, como feixes de colunas carcomidas pela base, ou como os canudos de um órgão emborcado, e também por grandes camadas de estalagmites, que se erguiam do solo como restos de pilastras derruídas, ou de muros arruinados.

Já o terceiro facho estava prestes a extinguir-se, ainda eles não haviam chegado ao tão suspirado alvo de tamanhas fadigas e perigos.

— Ainda estará muito longe essa maldita mina? Bugre endiabrado!... — bradou um dos emboabas. — Olha, não vá nos faltar o lume!… Se ficarmos às escuras não sei como daqui nos havemos de safar...

— Ficaremos sepultados em vida debaixo destas catacumbas — acrescentou outro, — Voltemos, meus caros; isto não vai bem…

— É ali!... é ali!... — exclamou Irabuçu, apontando para uma solapa estreita, que se divisava a alguns passos de distância, na base de um enorme congesto de estalagmites, e pela qual mal poderia entrar um homem agachado.

— AIi... naquele buraco! Deus me defenda de lá entrar!... Ali só lagarto ou cobra...

Apenas um dos emboabas acabava de proferir estas palavras, desprega-se da abóbada e cai no meio deles uma jiboia enorme, de mais de braça de comprimento e grossa como a perna de um homem, fazendo um ruído surdo como corda que despenca do alto de um mastaréu, e, desdobrando-se rapidamente, correu a esconder-se nas trevas, entre as anfractuosidades dos rochedos, O medonho réptil, acordara sobressaltado pelo eco daquelas vozes estranhas e, deslumbrado pela luz, querendo fugir, se precipitara de uma alta cornija, onde estava a dormir tranquilamente. Os portugueses murmuravam a tremer a oração de São Bento, advogado contra animais venenosos, e perderam de novo o ânimo de avançar.

— Meu Deus! Meu Deus!... Que será de nós... — exclamavam; quase a chorar de medo. Se essa mina está na profundeza dos infernos, guardada por onças e serpentes, escusado é procurarmos lá ir. Voltemos, meus amigos!... Isto não está nada bem! Voltemos quanto antes! Irabuçu, meu velho, por piedade, tira-nos daqui para fora; deixemos isto para amanhã... Livra-nos deste inferno!

— Essa cobra não tem veneno — respondeu tranquilamente Irabuçu — aqui há muitas; é bom dar um tiro; elas fogem espantadas e não incomodam mais a gente,

— Pois vá! — disse um deles; e, sem refletir, trêmulo de impaciência, de frenesi e de terror, com mão convulsa engatilhou a escopeta e disparou o tiro.

O eco refrangido de gruta em gruta reboou como uma descarga atroadora; o ar agitou-se convulsionado; a chama do facho oscilou violentamente,    e as sombras, que ali estavam, dançaram pelas paredes como um grupo de duendes. Uma nuvem de morcegos e corujas subindo de todos os cantos revoavam em turbilhões, açoitando com as asas as faces daqueles hóspedes imprudentes, e acabaram por apagar completamente o facho, que ardia na mão de Irabuçu...

Acharam-se todos subitamente mergulhados na mais completa e profunda escuridão!...

Os ecos do tiro, prolongando-se ainda largo tempo em lúgubres mugidos pelas abóbadas soturnas, pareciam estar entoando um fúnebre "de profundis" sobre aqueles infelizes ainda vivos e já envoltos na escuridão dos túmulos.

— Acode-nos, Irabuçu... Só tu nos podes salvar!... Vem dar-nos a mão!...    Por piedade, vem livrar-nos deste inferno!...

Estas e outras exclamações faziam os míseros emboabas com voz tão suplicante e lastimosa, que cortaria o coração de outro qualquer que não fosse Irabuçu.

— Irabuçu aqui vai!... Acompanhem!… — respondeu uma voz sepulcral, que parecia romper das entranhas da terra.


— Irabuçu! Irabuçu! — bradavam ainda os míseros estorcendo-se nas ânsias do desespero.

Mas só lhes respondiam os ecos das cavernas subterrâneas remurmurando uns sons confusos e medonhos.

*     *     *

E dizem que, mais tarde um sábio dinamarquês procedia a estudos mineralógicos no interior da Casa da Pedra, quando foi dar, numa sala estreita profundamente escura, que a luz de um archote mal iluminava, com as ossadas muito brancas dos sete desgraçados, sobre as quais enormes serpentes deslizavam de manso...

Fonte:
Anísio Mello (org.). Estórias e Lendas de Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro. São Paulo. Ed. Iracema.

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