quinta-feira, 21 de maio de 2020

Aparecido Raimundo de Souza (Provocado)


ANJOLINO ENTROU NA LOJA DE DEPARTAMENTOS...

... pisando forte, como quem penetra autoritário, na própria casa, carregando, com ambas as mãos, uma caixa enorme contendo um aparelho de som que havia comprado no dia anterior. Procurou pela jovem simpática que o atendeu, mas não a viu em parte alguma. Uma vendedora se aproximou solícita, sorriso aberto de canto a canto no rosto.

– Pois não, senhor? Posso ajudá-lo?

– Procuro pela vendedora Solimar.

– Que pena! A senhorita Solimar está em horário de almoço. Posso lhe ser útil?

– De repente... É o seguinte: Como é seu nome?

– Bonifácia...

–... Pois, então, Bonifácia. Comprei aqui, ontem, este aparelho de som e fui direto para casa. Era aniversário de minha filha e queria fazer surpresa. Acontece que na hora de ligar, nada.

– O senhor ligou corretamente?

– Corretamente.

– Chegou a ler o manual?

– De cabo a rabo.

– Que defeito ele apresentou?

– O Manual?

– Não, senhor. O aparelho.

– Simplesmente não quis funcionar.

– O senhor usou alguma tomada suspeita?

– Se você me explicar o que é uma tomada suspeita...

– Chamamos de tomada suspeita aquela não conectada aos padrões normais. Fios soltos, gatos, ou terminais que suportam acúmulos de aparelhos ligados ao mesmo tempo, como geladeira, fogão, forno de micro-ondas, ventilador, carregador de celular, computador...

– Já entendi. A tomada está dentro das especificações corretas.

– Faça o favor de aguardar um segundo. Vou ver com meu gerente.

Bonifácia voltou trinta minutos depois (o equivalente a um segundo no relógio dela) com um rapaz mediano de estatura, cara escanhoada e redonda, cabelo partido ao meio. Parecia um filho de cruz credo desmamado.

– Pois não, senhor?

– Qual sua graça?

– Gervásio Patuá, as suas ordens. Sou o gerente.

– Perfeito, seu Gervásio. Como falei com a Bonifácia, comprei aqui, ontem, este aparelho e fui direto para casa. Era aniversário de minha filha e queria fazer surpresa. Na hora de ligar, nada.

– Entendo! O senhor ligou corretamente?

– Acabei de explicar tudo a sua funcionária.

– Ok. Sua rede é 110 ou 220?

– 110.

– O senhor chegou a ler o manual?

– De cabo a rabo.

– Qual a vendedora que o atendeu?

– Uma tal de Solimar.

– Sei. É uma de nossas melhores vendedoras. Está em horário de almoço. Me diga uma coisa, por favor: na hora em que o aparelho foi testado aqui na loja, ou seja, na hora que o senhor foi ao estoque para receber o aparelho, notou alguma coisa errada?

– Nada, tudo normal. Sem problemas.

– O senhor se recorda se na hora do teste o rapaz fez alguma observação?

– Nenhuma que eu me lembre.

– Ao chegar em casa o senhor atentou para a voltagem atrás do aparelho?

– Amigo, o rapaz que testou já deixou no jeito.

– Bem, nesse caso, sua tomada deve estar com defeito.

– Não está, não. São todas novas. Mudei para o apartamento não tem dez dias. Peguei as chaves e a primeira coisa que fiz antes de levar a família, cachorro, periquito, papagaio, foi verificar se a parte elétrica estava nos conformes. Aliás, sou o primeiro morador.

– Vou pedir que o senhor tenha um pouquinho mais de paciência. Solicitarei ao rapaz encarregado da entrega dos produtos que são vendidos aqui para que faça um novo teste. Se me permite, levarei o aparelho comigo. Cinco minutos, não mais...

Esse “não mais” durou exatamente uma hora e meia. Retorna o gerente, com o aparelho e a moça que o atendera.

– E, então...?

–... O senhor tem toda razão. Realmente o aparelho não funciona...

– Tudo bem, seu Gervásio. Então, troque por outro e fim de papo.

– Infelizmente não podemos. O senhor terá que levá-lo na autorizada.

– Amigo esse aparelho saiu daqui apresentando esse defeito que o senhor mesmo mandou seu funcionário testar. Não sou o responsável por ele, nem lhe dei causa. Exijo que troque por outro igual e fim de papo.

– Cavalheiro, seu caso, agora, não é mais com a gente.

– A Solimar me falou que se houvesse algum imprevisto era só vir aqui e procurar por ela.

– Compreendo. O senhor está coberto de razão. Contudo, a Solimar também não poderá fazer nada. É norma da matriz. Temos que acatar. No seu caso, só a autorizada. A propósito: o senhor fez a garantia estendida?

– Não. O que vem a ser isso?

– Quando o senhor adquire um aparelho deve fazer imediatamente a garantia estendida. Acontecendo qualquer coisa de errado, como de fato aconteceu... A garantia estendida...

–... Meu prezado Gerásio, me ajude a juntar alguns pontos soltos...

– Gervásio, senhor. Que pontos soltos?

– Vocês fazem propaganda enganosa na televisão, ludibriam a boa fé dos clientes, sacaneiam os compradores como bem querem, e, agora, simplesmente vem aqui me dizer, quase duas horas de espera, que não podem trocar um aparelho, por outro, porque é norma da matriz? E ainda, para completar, tem a cara de pau de acrescentar essa balela de garantia estendida?

– Cavalheiro, não fazemos propaganda enganosa, não ludibriamos ninguém, tampouco a boa fé das pessoas, menos ainda sacaneamos. Nossa empresa é séria e está no mercado há mais de vinte anos. No seu caso, voltando a ele, nada podemos fazer porque o senhor não optou pela garantia estendida.

– E se na hora que esse seu funcionário estivesse testando a porcaria, essa droga não ligasse, que atitude vocês tomariam?

– Substituiríamos imediatamente o aparelho por outro...

–... Então... Substitua...

–... O senhor já saiu da loja.

– Fui direto para minha casa. O aparelho, como vocês estão vendo, voltou do mesmo jeito que saiu daqui.

– Concordo com o cavalheiro. Só há um problema o troço não está funcionando. Quando o senhor saiu com ele daqui, ontem, estava em perfeitas condições de uso.

– Tudo bem, tudo bem. Mas, meu amigo Germásio, eu cheguei em casa e ele deu pau. O que fiz foi embalar tudo de novo, do jeitinho que estava e voltar para trás.

– Cavalheiro, por favor, meu nome é Gervásio. Gervásio. Olhe meu crachá. Gervásio. Pois é como eu já lhe passei e volto a repetir. O senhor está coberto de razões, tem direito de reclamar, de brigar, de perder as estribeiras, mas nesse caso, sinto muito, só a autorizada.

– Meu amigo, entenda. Não estou lhe pedindo nenhum favor. Apenas exigindo o que está no Código de Defesa do Consumidor. É meu direito. Comprei essa droga em quinze vezes, sem entrada. O que acontece se eu resolver não pagar?

– Seu nome, senhor, será incluído no SPC.

– Vocês ainda têm o direito de sujar o único bem que prezo acima de qualquer coisa?

– Quando o senhor concretizou a compra, com a nossa vendedora Solimar, assinou um contrato. São as normas estabelecidas nele que nos apresenta várias opções, uma delas, enviar seu nome aos órgãos dos fichas sujas. Desta forma, se o senhor não honrar o que acordou...

–... Eu honro, e vocês? Custa trocar essa porra?

O gerente Gervásio fez um longo gesto de condescendência tentando acalmar os ânimos de Anjolino. Bonifácia sugeriu um café para serenar os vapores de uma possível combustão que, de espontânea, prenunciava acabar numa balbúrdia iminente.

– É complicado. Embaraçoso, admito, mas a loja nada pode fazer pelo senhor.

– Nada?

– Nada. Só a autorizada. Repetindo, se o senhor tivesse concordado com a garantia estendida...

–... Já percebeu que neste país a corda rebenta sempre para o lado dos mais fracos? No caso eu sou essa parte fraca. Venho aqui nesta espelunca, adquiro um aparelho com vocês, pago, por ele, o olho da cara... Me atiro de cabeça, num juro do caramba, a peça comprada apresenta um defeito, volto aqui menos de doze horas de efetivada a transação e vocês não podem fazer nada?

Começou a juntar gente. Pessoas que estavam no interior, em outras seções, se aproximaram para bisbilhotar e mexericar.

– Trouxe o carnê, a nota fiscal, tudo como manda o figurino e a loja simplesmente me diz que não pode fazer nada?

– Gostaríamos de poder estar resolvendo sua situação, mas repito, diante dessas circunstâncias, a empresa não arca com nenhuma responsabilidade, mau uso, ligações mal feitas...

Anjolino, em vista disso, perdeu de vez as estribeiras, a compostura, o bom senso. A sua brutalidade adormecida, em questão de segundos aflorou. E foi com essa altaneria à flor da pele, que partiu para o tudo ou nada. Levantou bem os braços para que todos pudessem vê-lo e ouvi-lo bem. Gritou alto, forte, imponente, cabeça ereta:

– Vocês não arcam com nenhuma responsabilidade? Me chamam de mentiroso, alegando que fiz uso indevido, tentam me convencer que liguei essa geringonça errada e terminam dizendo que se eu não pagar meu nome irá parar o rol dos caloteiros? Pois vou mostrar, seu gerentezinho filho da mãe, o que é que eu faço com essa droga.

Passou a mão no aparelho e, inopinadamente, num repelão, o arremessou contra uma dezena de televisores em exposição. Houve pequenas explosões em cadeia, o que colocou a galera em debandada. Não contente Anjolino chutou prateleiras e derrubou uma série de objetos que serviam de mostruário para promoção. A loja inteira, com esse ataque, ficou em estado desesperador. Nada restou inteiro para contar a história. Virou um caos. De um momento a outro, num abrir e piscar de olhos, tudo se transformou uma praça de guerra, um verdadeiro Deus-nos-acuda. A segurança do shopping foi acionada, a polícia requisitada, uma ambulância, uma guarnição do Corpo de Bombeiros e até soldados do batalhão de choque.

De Anjolino, entretanto, nem rastro.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. As mentiras que as mulheres gostam de ouvir. RJ: Ed. AMC Guedes, 2013.
Livro enviado pelo autor.

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