domingo, 17 de maio de 2020

Contos e Lendas do Brasil (Garganta do Inferno)


Na Serra do Itacolomi havia um grande e profundíssimo fojo* redondo e perpendicular, no meio do campo.

A boca, de cerca de três braças de diâmetro, era ornada de um cômoro* de pedras soltas e emaranhadas de matagal bravio, onde se aninhavam bandos de morcegos e corujas e servia de covil para jararacas e boiciningas*.

Sua profundidade ninguém ousava sondar, pois todos tinham medo de aproximar-se muito daquele medonho boqueirão a que chamavam a Garganta do Inferno.

Contava-se uma infinidade de estórias assustadoras a respeito daquela caverna. Dizia-se entre outras coisas que antigamente, no local onde mais tarde surgiu a caverna, vivia em um miserável ranchinho certa mulher muito velha e muito rica, de quem todos fugiam, pois era tida como bruxa.

Em virtude do pacto que ela fizera com o Demônio, recebendo de suas garras muitos poderes, nas noites de Sexta-Feira Santa, conseguiu ajuntar muito ouro e obteve o dom de viver cinco idades de homem, contanto que nunca deixasse de praticar malefícios e artes diabólicas.

Segundo se dizia, ela morava ali desde tempos imemoriais e não faltava quem asseverasse que a sua idade já alcançava a quinhentos anos. Mas uma noite a velha e o rancho sorveteram* debaixo da terra com pavoroso estrondo e, em seu lugar, no outro dia, lá estava aquela horrenda caverna. Em certos dias, ouviam-se nas suas profundezas bramidos, uivos e gemidos espantosos e a terra estremecia ao redor do buraco fumegante.

As velhas, quando tinham de passar por ali, faziam-no a toda pressa, rezando o Credo e benzendo-se. É que algumas delas, com seus próprios olhos, tinham visto o Diabo sair de lá na figura de um Dragão, no meio de uma fumarada e línguas de fogo. Os meninos não se atreviam a chegar muito perto, pois tinham como certo que lá morava uma serpente negra, com olhos de fogo.
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Esse buraco, na narrativa de Bernardo Guimarães, engoliu a heroína e ao longo dos anos que se seguiram fez desaparecerem burros incautos que por ali andavam, pastando o escasso capim que vicejava na itapanhoacanga*, sugerindo a ideia de que o Demo alimentasse o desejo de se fazer tropeiro.

Depois que um exorcista conseguiu entupir com orações esse trágico buraco, ninguém dirá que ele existiu outrora naquele lugar em que hoje se encontra o adro da igreja de Nossa Senhora dos Prazeres de Lavras Novas.
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Vocabulário
Boicininga – cobra mais conhecida por cascavel.
Cômoro – elevação de terreno não muito alta; outeiro, duna.
Fojo – remoinho de água, de lama, etc.
Itapanhoacanga – rocha rica em ferro, dura, bem consolidada, composta de fragmentos derivados de itabirito, hematita e de outros materiais ferruginosos, cimentados por limonita (que pode variar de 5% a mais que 95%).
Sorveteram – desapareceram, sumiram.

 
Fonte:
Anísio Mello (org.). Estórias e Lendas de Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro. São Paulo. Ed. Iracema.

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