sábado, 21 de março de 2009

Carlos Drummond de Andrade (Certas Palavras)



Certas palavras não podem ser ditas
em qualquer lugar e hora qualquer.
Estritamente reservadas
para companheiros de confiança,
devem ser sacralmente pronunciadas
em tom muito especial
lá onde a polícia dos adultos
não adivinha nem alcança.

Entretanto são palavras simples:
definem partes do corpo, movimentos, atos
do viver que só os grandes se permitem
e a nós é defendido por sentença
dos séculos.

E tudo é proibido. Então, falamos.
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Oswaldo Montenegro (Metade)



Que a força do medo que tenho
Não me impeça de ver o que anseio;
Que a morte de tudo em que acredito
Não me tape os ouvidos e a boca;
Porque metade de mim é o que eu grito,
Mas a outra metade é silêncio…
Que a música que eu ouço ao longe
Seja linda, ainda que tristeza;
Que a mulher que eu amo seja pra sempre amada
Mesmo que distante;
Porque metade de mim é partida
Mas a outra metade é saudade…
Que as palavras que eu falo
Não sejam ouvidas como prece
E nem repetidas com fervor,
Apenas respeitadas como a única coisa que resta
A um homem inundado de sentimentos;
Porque metade de mim é o que ouço
Mas a outra metade é o que calo…
Que essa minha vontade de ir embora
Se transforme na calma e na paz que eu mereço;
E que essa tensão que me corrói por dentro
Seja um dia recompensada;
Porque metade de mim é o que penso
Mas a outra metade é um vulcão…
Que o medo da solidão se afaste
E que o convívio comigo mesmo
Se torne ao menos suportável;
Que o espelho reflita em meu rosto
Um doce sorriso que me lembro ter dado na infância;
Porque metade de mim é a lembrança do que fui,
A outra metade eu não sei…
Que não seja preciso mais do que uma simples alegria
para me fazer aquietar o espírito
E que o teu silêncio me fale cada vez mais;
Porque metade de mim é abrigo
Mas a outra metade é cansaço…
Que a arte nos aponte uma resposta
Mesmo que ela não saiba
E que ninguém a tente complicar
Porque é preciso simplicidade para faze-la florescer;
Porque metade de mim é platéia
E a outra metade é canção…
E que a minha loucura seja perdoada
Porque metade de mim é amor
E a outra metade… também.
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Graciliano Ramos (Baleia)



A cachorra Baleia estava para morrer. Tinha emagrecido, o pêlo caíra-lhe em vários pontos, as costelas avultavam num fundo róseo, onde manchas escuras supuravam e sangravam, cobertas de moscas. As chagas da boca e a inchação dos beiços dificultavam-lhe a comida e a bebida.

Por isso Fabiano imaginara que ela estivesse com um princípio de hidrofobia e amarrara-lhe no pescoço um rosário de sabugos de milho queimados. Mas Baleia, sempre de mal a pior, roçava-se nas estacas do curral ou metia-se no mato, impaciente, enxotava os mosquitos sacudindo as orelhas murchas, agitando a cauda pelada e curta, grossa na base, cheia de roscas, semelhante a uma cauda de cascavel.

Então Fabiano resolveu matá-la. Foi buscar a espingarda de pederneira, lixou-a, limpou-a com o sacatrapo e fez tenção de carregá-la bem para a cachorra não sofrer muito.

Sinhá Vitória fechou-se na camarinha, rebocando os meninos assustados, que adivinhavam desgraça e não se cansavam de repetir a mesma pergunta:

- Vão bulir com a Baleia?

Tinham visto o chumbeiro e o polvarinho, os modos de Fabiano afligiam-nos, davam-lhes a suspeita de que Baleia corria perigo.

Ela era como uma pessoa da família: brincavam juntos os três, para bem dizer não se diferençavam, rebolavam na areia do rio e no estrume fofo que ia subindo, ameaçava cobrir o chiqueiro das cabras.

Quiseram mexer na taramela e abrir a porta, mas Sinhá Vitória levou-os para a cama de varas, deitou-os e esforçou-se por tapar-lhes os ouvidos: prendeu a cabeça do mais velho entre as coxas e espalmou as mãos nas orelhas do segundo. Como os pequenos resistissem, aperreou-se e tratou de subjugá-los, resmungando com energia.

Fia também tinha o coração pesado, mas resignava-se: naturalmente a decisão de Fabiano era necessária e justa. Pobre da Baleia.

Escutou, ouviu o rumor do chumbo que se derramava no cano da arma, as pancadas surdas da vareta na bucha. Suspirou. Coitadinha da Baleia.

Os meninos começaram a gritar e a espernear. E como Sinhá Vitória tinha relaxado os músculos, deixou escapar o mais taludo e soltou uma praga:

- Capeta excomungado.

Na luta que travou para segurar de novo o filho rebelde, zangou-se de verdade. Safadinho. Atirou um cocorote ao crânio enrolado na coberta vermelha e na saia de ramagens.

Pouco a pouco a cólera diminuiu, e Sinhá Vitória, embalando as crianças, enjoou-se da cadela achacada, gargarejou muxoxos e nomes feios. Bicho nojento, babão. Inconveniência deixar cachorro doido solto em casa. Mas compreendia que estava sendo severa demais, achava difícil Baleia endoidecer e lamentava que o marido não houvesse esperado mais um dia para ver se realmente a execução era indispensável.

Nesse momento Fabiano andava no copiar, batendo castanholas com os dedos. Sinhá Vitória encolheu o pescoço e tentou encostar os ombros às orelhas. Como isso era impossível, levantou os braços e, sem largar o filho, conseguiu ocultar um pedaço da cabeça.

Fabiano percorreu o alpendre, olhando a baraúna e as porteiras, açulando um cão invisível contra animais invisíveis:

- Ecô! ecô!

Em seguida entrou na sala, atravessou o corredor e chegou à janela baixa da cozinha. Examinou o terreiro, viu Baleia coçando-se a esfregar as peladuras no pé de turco, levou a espingarda ao rosto. A cachorra espiou o dono desconfiada, enroscou-se no tronco e foi-se desviando, até ficar no outro lado da árvore, agachada e arisca, mostrando apenas as pupilas negras. Aborrecido com esta manobra, Fabiano saltou a janela, esgueirou-se ao longo da cerca do curral, deteve-se no mourão do canto e levou de novo a arma ao rosto. Como o animal estivesse de frente e não apresentasse bom alvo, adiantou-se mais alguns passos. Ao chegar às catingueiras, modificou a pontaria e puxou o gatilho. A carga alcançou os quartos traseiros e inutilizou uma perna de Baleia, que se pôs a latir desesperadamente.

Ouvindo o tiro e os latidos, Sinhá Vitória pegou-se à Virgem Maria e os meninos rolaram na cama, chorando alto. Fabiano recolheu-se.

E Baleia fugiu precipitada, rodeou o barreiro, entrou no quintalzinho da esquerda, passou rente aos craveiros e às panelas de losna, meteu-se por um buraco da cerca e ganhou o pátio, correndo em três pés. Dirigiu-se ao copiar, mas temeu encontrar Fabiano e afastou-se para o chiqueiro das cabras.

Demorou-se aí um instante, meio desorientada, saiu depois sem destino, aos pulos.

Defronte do carro de bois faltou-lhe a perna traseira. E, perdendo muito sangue, andou como gente, em dois pés, arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo. Quis recuar e esconder-se debaixo do carro, mas teve medo da roda.

Encaminhou-se aos juazeiros. Sob a raiz de um deles havia uma barroca macia e funda. Gostava de espojar-se ali: cobria-se de poeira, evitava as moscas e os mosquitos, e quando se levantava, tinha folhas secas e gravetos colados às feridas, era um bicho diferente dos outros.

Caiu antes de alcançar essa cova arredada. Tentou erguer-se, endireitou a cabeça e estirou as pernas dianteiras, mas o resto do corpo ficou deitado de banda. Nesta posição torcida, mexeu-se a custo, ralando as patas, cravando as unhas no chão, agarrando-se nos seixos miúdos. Afinal esmoreceu e aquietou-se junto às pedras onde os meninos jogavam cobras mortas.

Uma sede horrível queimava-lhe a garganta. Procurou ver as pernas e não as distinguiu: um nevoeiro impedia-lhe a visão. Pôs-se a latir e desejou morder Fabiano. Realmente não latia: uivava baixinho, e os uivos iam diminuindo, tornavam-se quase imperceptíveis.

Como o sol a encandeasse, conseguiu adiantar-se umas polegadas e escondeu-se numa nesga de sombra que ladeava a pedra.

Olhou-se de novo, aflita. Que lhe estaria acontecendo? O nevoeiro engrossava e aproximava-se.

Sentiu o cheiro bom dos preás que desciam do morro, mas o cheiro vinha fraco e havia nele partículas de outros viventes. Parecia que o morro se tinha distanciado muito. Arregaçou o focinho, aspirou o ar lentamente, com vontade de subir a ladeira e perseguir os preás, que pulavam e corriam em liberdade.

Começou a arquejar penosamente, fingindo ladrar. Passou a língua pelos beiços torrados e não experimentou nenhum prazer. O olfato cada vez mais se embotava: certamente os preás tinham fugido.

Esqueceu-os e de novo lhe veio o desejo de morder Fabiano, que lhe apareceu diante dos olhos meio vidrados, com um objeto esquisito na mão.

Não conhecia o objeto, mas pôs-se a tremer, convencida de que ele encerrava surpresas desagradáveis. Fez um esforço para desviar-se daquilo e encolher o rabo. Cerrou as pálpebras pesadas e julgou que o rabo estava encolhido. Não poderia morder Fabiano: tinha nascido perto dele, numa camarinha, sob a cama de varas, e consumira a existência em submissão, ladrando para juntar o gado quando o vaqueiro batia palmas.

O objeto desconhecido continuava a ameaçá-la. Conteve a respiração, cobriu os dentes, espiou o inimigo por baixo das pestanas caídas. Ficou assim algum tempo, depois sossegou. Fabiano e a coisa perigosa tinham-se sumido.

Abriu os olhos a custo. Agora havia uma grande escuridão, com certeza o sol desaparecera.

Os chocalhos das cabras tilintaram para os lados do rio, o fartum do chiqueiro espalhou-se pela vizinhança.

Baleia assustou-se. Que faziam aqueles animais soltos de noite? A obrigação dela era levantar-se, conduzi-los ao bebedouro. Franziu as ventas, procurando distinguir os meninos. Estranhou a ausência deles.

Não se lembrava de Fabiano. Tinha havido um desastre, mas Baleia não atribuía a esse desastre a impotência em que se achava nem percebia que estava livre de responsabilidades. Uma angústia apertou-lhe o pequeno coração. Precisava vigiar as cabras: àquela hora cheiros de suçuarana deviam andar pelas ribanceiras, rondar as moitas afastadas. Felizmente os meninos dormiam na esteira, por baixo do caritó onde Sinhá Vitória guardava o cachimbo.

Uma noite de inverno, gelada e nevoenta, cercava a criaturinha. Silêncio completo, nenhum sinal de vida nos arredores. O galo velho não cantava no poleiro, nem Fabiano roncava na cama de varas. Estes sons não interessavam Baleia, mas quando o galo batia as asas e Fabiano se virava, emanações familiares revelavam-lhe a presença deles. Agora parecia que a fazenda se tinha despovoado.

Baleia respirava depressa, a boca aberta, os queixos desgovernados, a língua pendente e insensível. Não sabia o que tinha sucedido. O estrondo, a pancada que recebera no quarto, e a viagem difícil do barreiro ao fim do pátio desvaneciam-se no seu espírito.

Provavelmente estava na cozinha, entre as pedras que serviam de trempe. Antes de se deitar, Sinhá Vitória retirava dali os carvões e a cinza, varria com um molho de vassourinha o chão queimado, e aquilo ficava um bom lugar para cachorro descansar. O calor afugentava as pulgas, a terra se amaciava. E, findos os cochilos, numerosos preás corriam e saltavam, um formigueiro de preás invadia a cozinha.

A tremura subia, deixava a barriga e chegava ao peito de Baleia. Do peito para trás era tudo insensibilidade e esquecimento. Mas o resto do corpo se arrepiava, espinhos de mandacaru penetravam na carne meio comida pela doença.

Baleia encostava a cabecinha fatigada na pedra. A pedra estava fria, certamente Sinhá Vitória tinha deixado o fogo apagar-se muito cedo.

Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes.

Fontes:
MORICONI, Ítalo (seleção). Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século. São Paulo: Objetiva, 2000.
Imagem = http://embuscadeumdononobrasil.blogspot.com

Murilo Rubião (Teleco, o coelhinho)


“Três coisas me são difíceis de entender, e uma quarta eu a ignoro completamente: o caminho da águia no ar, o caminho da cobra sobre a pedra, o caminho da nau no meio do mar, e o caminho do homem na sua mocidade.”
(Provérbios, XXX, 18 e 19)

- Moço, me dá um cigarro?

A voz era sumida, quase um sussurro. Permaneci na mesma posição em que me encontrava, frente ao mar, absorvido com ridículas lembranças.

O importuno pedinte insistia:

- Moço, oh! Moço! Moço me dá um cigarro?

Ainda com os olhos fixos na praia, resmunguei:

Vá embora, moleque, senão chamo a polícia.

- Está bem, moço. Não se zangue. E, por favor; saia da minha frente, que eu também gosto de ver o mar.

Exasperou-me a insolência de quem assim me tratava e virei-me, disposto a escorraçá-lo com um pontapé. Fui desarmado, entretanto. Diante de mim estava um coelhinho cinzento, a me interpelar delicadamente:

- Você não dá é porque não tem, não é, moço?

O seu jeito polido de dizer as coisas comoveu-me. Dei-lhe o cigarro e afastei-me para o lado, a fim de que melhor ele visse o oceano. Não fez nenhum gesto de agradecimento, mas já então conversávamos como velhos amigos. Ou, para ser mais exato somente o coelhinho falava. Contava-me acontecimentos extraordinários, aventuras tamanhas que o supus com mais idade do que realmente aparentava.

Ao fim da tarde, indaguei onde ele morava. Disse não ter morada certa. A rua era o seu pouso habitual. Foi nesse momento que reparei nos seus olhos. Olhos mansos e tristes. Deles me apiedei e convidei-o a residir comigo. A casa era grande e morava sozinho acrescentei.

A explicação não o convenceu. Exigiu-me que revelasse minhas reais intenções:

Por acaso, o senhor gosta de carne de coelho? Não esperou pela resposta:

- Se gosta, pode procurar outro, porque a versatilidade é o meu fraco.

Dizendo isto, transformou-se numa girafa.

- A noite - prosseguiu - serei cobra ou pombo. Não lhe importará a companhia de alguém tão instável?

Respondi-lhe que não e fomos morar juntos.

Chamava-se Teleco.

Depois de uma convivência maior, descobri que a mania de metamorfosear-se em outros bichos era nele simples desejo de agradar ao próximo. Gostava de ser gentil com crianças e velhos, divertindo-os com hábeis malabarismos ou prestando-lhes ajuda. O mesmo cavalo que, pela manhã, galopava com a gurizada, à tardinha, em lento caminhar, conduzia anciãos ou inválidos às suas casas.

Não simpatizava com alguns vizinhos, entre eles o agiota e suas irmãs, aos quais costumava aparecer sob a pele de leão ou tigre. Assustava-os mais para nos divertir que por maldade. As vítimas assim não entendiam e se queixavam à polícia, que perdia o tempo ouvindo as denúncias. Jamais encontraram em nossa residência, vasculhada de cima a baixo, outro animal além do coelhinho. Os investigadores irritavam-se com os queixosos e ameaçavam prendê-los.

Apenas uma vez tive medo de que as travessuras do meu irrequieto companheiro nos valessem sérias complicações. Estava recebendo uma das costumeiras visitas do delegado, quando Teleco, movido por imprudente malícia, transformou-se repentinamente em porco-do-mato. A mudança e o retorno ao primitivo estado foram bastante rápidos para que o homem tivesse tempo de gritar. Mal abrira a boca, horrorizado, novamente tinha diante de si um pacifico coelho:

O senhor viu o que eu vi?

Respondi, forçando uma cara inocente, que nada vira de anormal.

O homem olhou-me desconfiado, alisou a barba e, sem se despedir, ganhou a porta da rua.

A mim também me pregava peças. Encontrava-se vazia a casa, já sabia que ele andava escondido em algum canto, dissimulado em algum pequeno animal. Ou mesmo no meu corpo sob a forma de pulga, fugindo-me dos dedos, correndo pelas minhas costas. Quando começava a me impacientar e pedia-lhe que parasse com a brincadeira, não raro levava tremendo susto. Debaixo das minhas pernas crescera um bode que, em disparada, me transportava até o quintal. Eu me enraivecia, prometia-lhe uma boa surra. Simulando arrependimento, Teleco dirigia-me palavras afetuosas e logo fazíamos as pazes.

No mais, era o amigo dócil, que nos encantava com inesperadas mágicas. Amava as cores e muitas vezes surgia transmudado em ave de todas as espécies inteiramente desconhecidas ou de raça já extinta.

Não existe pássaro assim!

Sei. Mas seria insípido disfarçar-me somente em animais conhecidos.

O primeiro atrito grave que tive com Teleco ocorreu um ano após nos conhecermos. Eu regressava da casa da minha cunhada Emi, com quem discutira asperamente sobre negócios de família. Vinha mal-humorado e a cena que deparei ao abrir a porta da entrada, agravou minha irritação. De mãos dadas, sentados no sofá da sala de visitas, encontravam-se uma jovem mulher e um mofino canguru. As roupas dele eram mal talhadas, seus olhos se escondiam por trás de uns óculos de metal ordinário.

O que deseja a senhora com esse horrendo animal? - perguntei, aborrecido por ver minha casa invadida por estranhos.

- Eu sou o Teleco - antecipou-se, dando uma risadinha.

Mirei com desprezo aquele bicho mesquinho, de pêlos ralos, a denunciar subserviência e torpeza. Nada nele me fazia lembrar o travesso coelhinho.

Neguei-me a aceitar como verdadeira a afirmação, pois Teleco não sofria da vista e se quisesse apresentar-se vestido teria o bom gosto de escolher outros trajes que não aqueles.

Ante a minha incredulidade, transformou-se numa perereca. Saltou por cima dos móveis, pulou no meu colo. Lancei-a longe, cheio de asco.

Retomando a forma de canguru, inquiriu-me, com um ar extremamente grave:

- Basta esta prova?

- Basta. E daí? O que você quer?

-De hoje em diante serei apenas homem.

-Homem? - indaguei atônito. Não resisti ao ridículo da situação e dei uma gargalhada:

- E isso? Apontei para a mulher. É uma lagartixa ou um filhote de salamandra?

Ela me olhou com raiva. Quis retrucar, porém ele atalhou:

- É Tereza. Veio morar conosco. Não é linda?

Sem dúvida, linda. Durante a noite, na qual me faltou o sono, meus pensamentos giravam em torno dela e da cretinice de Teleco em afirmar-se homem.

Levantei-me de madrugada e me dirigi à sala, na expectativa de que os fatos do dia anterior não passassem de mais um dos gracejos do meu companheiro.

Enganava-me. Deitado ao lado da moça, no tapete do assoalho, o canguru ressonava alto. Acordei-o, puxando-o pelos braços:

- Vamos, Teleco, chega de trapaça.

Abriu os olhos, assustado, mas, ao reconhecer-me, sorriu:

-Teleco?! Meu nome é Barbosa, Antônio Barbosa, não é, Tereza?

Ela, que acabara de despertar, assentiu, movendo a cabeça. Explodi, encolerizado:

- Se é Barbosa, rua! E não me ponha mais os pés aqui, filho de um rato!

Desceram-lhe as lágrimas pelo rosto e, ajoelhado, na minha frente, acariciava minhas pernas, pedindo-me que não o expulsasse de casa, pelo menos enquanto procurava emprego.

Embora encarasse com ceticismo a possibilidade de empregar-se um canguru, seu pranto me demoveu da decisão anterior, ou, para dizer a verdade toda, fui persuadido pelo olhar súplice de Tereza que, apreensiva, acompanhava o nosso diálogo.

Barbosa tinha hábitos horríveis. Amiúde cuspia no chão e raramente tomava banho, não obstante a extrema vaidade que o impelia a ficar horas e horas diante do espelho. Utilizava-se do meu aparelho de barbear, da minha escova de dente e pouco serviu comprar-lhe esses objetos, pois continuou a usar os meus e os dele. Se me queixava do abuso, desculpava-se, alegando distração.

Também a sua figura tosca me repugnava. A pele era gordurosa, os membros curtos, a alma dissimulada. Não media esforços para me agradar, contando-me anedotas sem graça, exagerando nos elogios à minha pessoa.

Por outro lado, custava tolerar suas mentiras e, às refeições, a sua maneira ruidosa de comer, enchendo a boca de comida com auxílio das mãos.

Talvez por ter-me abandonado aos encantos de Tereza, ou para não desagradá-la, o certo é que aceitava, sem protesto, a presença incômoda de Barbosa.

Se afirmava ser tolice de Teleco querer nos impor sua falsa condição humana, ela me respondia com uma convicção desconcertante:

- Ele se chama Barbosa e é um homem.

O canguru percebeu o meu interesse pela sua companheira e, confundindo a minha tolerância como possível fraqueza, tornou-se atrevido e zombava de mim quando o recriminava por vestir minhas roupas, fumar dos meus cigarros ou subtrair dinheiro do meu bolso.

Em diversas ocasiões, apelei para a sua frouxa sensibilidade, pedindo-lhe que voltasse a ser coelho.

Voltar a ser coelho? Nunca fui bicho. Nem sei de quem você fala.

- Falo de um coelhinho cinzento e meigo, que costumava se transformar em outros animais.

Nesse meio tempo, meu amor por Tereza oscilava por entre pensamentos sombrios, e tinha pouca esperança de ser correspondido. Mesmo na incerteza, decidi propor-lhe casamento.

Fria, sem rodeios, ela encerrou o assunto:

- A sua proposta é menos generosa do que você imagina. Ele vale muito mais.

As palavras usadas para recusar-me convenceram-me de que ela pensava explorar de modo suspeito às habilidades de Teleco.

Frustrada a tentativa do noivado, não podia vê-los juntos e íntimos, sem assumir uma atitude agressiva.

O canguru notou a mudança no meu comportamento e evitava os lugares onde me pudesse encontrar.

Uma tarde, voltando do trabalho, minha atenção foi alertada pelo som ensurdecedor da eletrola, ligada com todo o volume. Logo ao abrir a porta, senti o sangue afluir-me à cabeça: Tereza e Barbosa, os rostos colados, dançavam um samba indecente.

Indignado, separei-os. Agarrei o canguru pela gola e, sacudindo-o com violência, apontava-lhe o espelho da sala:

-É tu, não é um animal?

-Não, sou um homem! - E soluçava, esperneando, morto de medo pela fúria que via nos meus olhos.

A Tereza, que acudira, ouvindo seus gritos, pedia:

- Não sou um homem, querida? Fala com ele:

-Sim, amor, você é um homem.

Por mais absurdo que me parecesse, havia uma trágica sinceridade na voz deles. Eu me decidira, porém. Joguei Barbosa ao chão e lhe esmurrei a boca. Em seguida, enxotei-os.

Ainda da rua, muito excitada, ela me advertiu:

- Farei de Barbosa um homem importante, seu porcaria!

Foi a última vez que os vi. Tive, mais tarde, vagas notícias de um mágico chamado Barbosa a fazer sucesso na cidade. A falta de maiores esclarecimentos, acreditei ser mera coincidência de nomes.

A minha paixão por Tereza se esfumara no tempo e voltara o interesse pelos selos. As horas disponíveis eu as ocupava com a coleção.

Estava, uma noite, precisamente colando exemplares raros, recebidos na véspera, quando saltou, janela adentro, um cachorro. Refeito do susto, fiz menção de correr o animal. Todavia não cheguei a enxotá-lo.

- Sou o Teleco, seu amigo, afirmou, com uma voz excessivamente trêmula e triste, transformando-se em uma cotia.

-E ela? Perguntei com simulada displicência.

-Tereza… sem que concluísse a frase, adquiriu as formas de um pavão.

Havia muitas cores… O circo… Ela estava linda… Foi horrível… Prosseguiu, chocalhando os guizos de uma cascavel.

Seguiu-se breve silêncio, antes que voltasse a falar:

-O uniforme… muito branco… cinco cordas… amanhã serei homem… - as palavras saíam-lhe espremidas, sem nexo, à medida que Teleco se metamorfoseava em outros animais.

Por um momento, ficou a tossir Uma tosse nervosa. Fraca, a princípio, ela avultava com as mutações dele em bichos maiores, enquanto eu lhe suplicava que se aquietasse. Contudo ele não conseguia controlar-se.

Debalde tentava exprimir-se. Os períodos saltavam curtos e confusos.

- Pare com isso e fale mais calmo - insistia eu, impaciente com as suas contínuas transformações.

-Não posso, tartamudeava, sob a pele de um lagarto.

Alguns dias transcorridos perdurava o mesmo caos. Pelos cantos, a tremer, Teleco se lamuriava, transformando-se seguidamente em animais os mais variados. Gaguejava muito e não podia alimentar-se, pois a boca, crescendo e diminuindo, conforme o bicho que encarnava na hora, nem sempre combinava com o tamanho do alimento. Dos seus olhos, então, escorriam lágrimas que, pequenas nos olhos miúdos de um rato, ficavam enormes na face de um hipopótamo.

Ante a minha impotência em diminuir-lhe o sofrimento, abraçava-me a ele, chorando. O seu corpo, porém, crescia nos meus braços, atirando-me de encontro à parede.

Não mais falava: mugia, crocitava, zurrava, guinchava, bramia, triscava.

Por fim, já menos intranqüilo, limitava as suas transformações a pequenos animais, até que se fixou na forma de um carneirinho, a balir tristemente. Colhi-o nas mãos e senti que seu corpo ardia em febre, transpirava.

Na última noite, apenas estremecia de leve e, aos poucos, se aquietou. Cansado pela longa vigília, cerrei os olhos e adormeci. Ao acordar, percebi que uma coisa se transformara nos meus braços. No meu colo estava uma criança encardida, sem dentes. Morta.

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No conto “Teleco, o Coelhinho”, a busca de humanidade esconde o desejo de superar a indiferença e o desprezo dos homens. A narrativa em primeira pessoa nos apresenta o ponto de vista do homem que recebe o coelhinho em sua casa. Encantado pela meiguice de Teleco, o narrador descobre que “a mania de transformar-se em outros bichos era nele simples desejo de agradar o próximo.” (p. 22).
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Fonte
RUBIÃO, Murilo. O Pirotécnico Zacarias e outros contos. Editora Companhia dos Livros, 1993.

Folclore Persa (A donzela que era irmã de sete gênios)



Era uma vez, no alto de uma montanha, no antigo Irã, que morava uma donzela que foi adotada por sete gênios que a encontraram na floresta, enquanto caçavam. Levaram-na ao castelo onde viviam e ali foi criada por uma velha ama até fazer 17 anos.

Era o dia de seu décimo sétimo aniversário, e estava tão formosa como a mais adorável princesa da terra. Nesse dia, ao olhar pela janela, viu alguém se aproximando pela pequena estrada que conduzia ao castelo.

Ama! ama! Que coisa é essa que vem subindo pela colina em direção ao castelo? Nunca vi nada parecido em toda minha vida.

– Senhorita Fátima! - gritou a criada, que era uma mulher horrorosa, com uma verruga na cara - Afaste-se da janela. Isso que estás vendo é um ser humano e não deves falar com ele porque teus sete irmãos ficariam furiosos.

– Bobagem ama! - disse Fátima, que era bastante decidida e gostava de fazer coisas à sua maneira. Vou abrir a janela e o chamarei, pois parece cansado. Tenho certeza de que está perdido e faminto.

A criada começou a falar e falar, mas Fátima não lhe prestou a menor atenção e, abrindo a janela, chamou o viajante com melodiosa voz:

Entre no castelo ser humano para que possa descansar e recuperar forças comendo e bebendo algo. Estou só, pois meus irmãos estarão todo o dia caçando.

O estrangeiro era um príncipe chamado Nureddin, que havia perdido seu cavalo ao passear pelas redondezas. Nureddin não pode evitar maravilhar-se com aquela formosa jovem que o convidava do alto do castelo. A criada abriu as portas e, meia hora depois, Nureddin se encontrava sentado com Fátima comendo uvas, queijo e delicioso pão.

Fátima estava encantada com o jovem. Fez centenas de perguntas e ele falou do mundo que havia além do castelo.

Preciso conhecer essas maravilhas - disse ela. Ah... se meus irmãos desejassem partir...!.
De nenhuma forma, jovem ama Fátima - repreendeu a criada que os servia - A senhorita sabe que meus senhores nunca a deixarão partir do castelo, pois eles são muito zelosos e dariam morte a este humano se o virem aqui.

Então eu mesma descobrirei a maneira de fugir do castelo - declarou Fátima. Assim verei as maravilhas do mundo descritas por este jovem.

O príncipe não cabia em si de felicidade e prometeu a Fátima que a levaria ao reino tão pronto tivesse descansado. Porém, antes que Fátima pudesse dizer algo, foram ouvidos gritos que vinham da entrada e latidos de cães, mesclados a relinchos de cavalos.

– Oh, ser humano! - gritou a criada -. Esconda-se nesta arca pois meus senhores voltaram e te farão em pedaços no momento que te virem.

Ainda que ela fosse um gênio e também detestasse os humanos, sabia que a sua jovem ama havia gostado do jovem e por isso queria ajudá-lo.

Imediatamente o príncipe entrou na arca e Fátima o fechou com mão nervosa. Apenas tinha se escondido, a porta se abriu e os sete irromperam na sala.

– Irmã Fátima! Irmã Fátima, que temos para comer? - vociferou um deles, dando inicio a um monumental barulho de vozes e risadas, enquanto tiravam suas enormes botas. Fátima e a criada ajudaram, nervosas, a tirarem os casacos de pele.

- Ama, traga vinho. Estamos ardendo de sede!.

A velha saiu apressada para cumprir a ordem.

De repente os gênios, um depois do outro, começaram a fungar com seus enormes narizes e gritaram enfurecidos:

– Um homem, um homem! sinto o cheiro de um homem!.

Fátima ficou pálida e seu coração bateu violentamente. Dentro da arca o príncipe se moveu e se cobriu com roupas para não ser descoberto.

- Alguém esteve aqui irmã Fátima, onde está?-. Todos os gênios se levantaram e começaram a gritar furiosos. Iniciaram uma febril busca de um quarto a outro, abrindo todas as portas, cheirando e bufando como bestas selvagens.

Estavam tão excitados que não lhes ocorreu, num primeiro momento, olhar a arca e Fátima, aproveitando que estavam noutra sala do castelo, castelo, ajudou o príncipe a sair.

– Depressa, depressa, vou mostrar-te um caminho secreto para sair do castelo. Se não foges, meus irmãos te farão em pedaços!

A noite estava caindo e se ouvia os gênios enfurecidos, verificando sala por sala de todo o castelo. Fátima começou a sentir medo. Os dois correram de mãos dadas em direção ao fogão e ali ela o ajudou a entrar na chaminé.

-Vem comigo Fátima!, vou te libertar deste terrível lugar - sussurrou o príncipe -. Ela assentiu silenciosamente. Assim subiram pelas pedras da chaminé, até que finalmente os recebeu uma noite carregada de estrelas.

- Onde estão os cavalos? - perguntou o príncipe com tom de urgência. Fátima o conduziu ao estábulo. Silenciosamente, como duas sombras, eles deslizaram por detrás do castelo.

Os criados das cavalariças repartiam os dinheiros dos roubos do dia e não viram como um par dos melhores alazões eram retirados por Nureddin.

Quando estavam montados, o barulho dentro do castelo aumentou e os sete gênios viram, à luz da lua, como fugiam os dois jovens, galopando através dos enormes portões de entrada.

- Atrás deles! - rugiu o mais velho - vamos trazê-los vivos e os assaremos como duas galinhas!.

Os cavalos galoparam como o vento, montanha abaixo, como animais encantados que eram. Contudo, logo, vieram os sete gênios montando cavalos igualmente ligeiros e fortes.

– Fátima volta. Perdoamos, porém deixa-nos matar este humano!

A jovem, assustada, podia ouvi-los gritando e sabia que não passaria muito tempo até que os irmãos a alcançassem. Então ela revistou seu bolso e encontrou uma semente mágica, e a lançou por cima de seu ombro esquerdo. No mesmo instante, uma enorme planície de espinhos surgiu entre os gênios e os fugitivos.

Os cavalos dos gênios não puderam correr como antes, pois os espinheiros se enroscavam em suas patas e os atrasavam, mas ao cabo de meia hora já estavam em seu encalço e Nureddin perguntou:

– Fátima! que vamos fazer? Temos que detê-los pois estamos ainda a meio caminho do reino de meu pai, no qual chegaremos ao amanhecer, se os gênios não nos alcançarem.

– Não tenhas medo! - disse Fátima com bravura, e buscando mais uma vez dentro de seu bolso - creio que posso fazer algo -. E lançou por cima de seu ombro esquerdo uma pinha. Imediatamente surgiu um incrível bosque de árvores e os fugitivos puderam galopar sem ser vistos.

Os intrépidos animais os levaram cada vez mais próximos às terras do príncipe. Fátima, com os cabelos flutuando ao vento, começava a sentir-se a salvo quando o príncipe olhou para trás e gritou:

-Ah! Nos alcançam de novo. Nos apanharão dentro em pouco a menos que algo os detenha.

Fátima buscou em seu bolso, e já caía em desespero quando seus dedos se fecharam sobre um grão de sal. Jogou-se para trás e imediatamente um espumoso mar surgiu detrás dos cascos de seu cavalo e nele caíram os gênios e seus cavalos afogando-se, pois os gênios não nadam bem em água salgada.

Fátima e Nureddin cavalgaram um pouco mais e quando o dia estava nascendo chegaram à bela cidade de Nashapur.

Ali o palácio real brilhava com esplendor de ouro e turquesa, com pavões nas alamedas do jardim exibindo cheios de pompa suas esplêndidas plumas.

Então os soldados das muralhas, vendo o príncipe se aproximar, fizeram soar as trombetas de prata incrustadas de raras pedras preciosas.

Fátima foi recebida como uma princesa, e casou-se com o príncipe numa esplêndida festa que durou sete dias e sete noites.

Os cavalos encantados que os levaram até ali desapareceram quando a lua estava cheia. Eles sabiam que sua jovem ama era, apesar de tudo, um ser humano, e preferiam viver a serviço dos gênios, pois esta é a lei mágica estabelecida quando o mundo começou através de Salomão, rei dos magos e das bestas encantadas, sobre quem seja a paz.

Fontes:
http://victorian.fortunecity.com/postmodern/135/
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http://www.eaken.net

James Joyce (Casa de hóspedes)



Mr. Mooney era filha de um açougueiro, mulher decidida e capaz de tomar a seu cargo qualquer empresa.

Casara com o ajudante de seu pai e abrira um açougue perto de Spring Gardens. Mas logo que o sogro morreu, Mr. Mooney, o marido, começou a pintar o diabo. Bebia, roubava dinheiro da caixa e contraía dívidas. Era inútil correr em seu auxílio, porque dias mais tarde tornava a fazer os mesmos disparates. Altercava com a mulher em frente dos fregueses, comprava carne de má qualidade e, assim, ia arruinando o negócio. Uma noite correu atrás da mulher com um machado, obrigando-a a fugir e a pernoitar em casa de uns vizinhos.

Depois disso, começaram a viver cada um para o seu lado. Ela foi ter com o padre e conseguiu separar-se do marido, ficando com as crianças.

Ele, sem casa, sem comida e sem dinheiro, foi obrigado a transformar-se num dos homens do xerife. Tornou-se bêbado, sempre mal arrumado, de cara pálida, bigode branco e sobrancelhas igualmente brancas, por cima de uns olhos sempre úmidos e raiados de vermelho. Passava todo o dia sentado no quarto do bailio, esperando que o mandassem trabalhar. Mr. Mooney, que havia tirado o que ainda restava do seu dinheiro do açougue, instalara uma casa de hóspedes na rua Hardwicke, cheia de uma população flutuante constituída por turistas de Liverpool e da ilha de Man e, ocasionalmente, de artistas do music-hall. Os hóspedes permanentes eram escrivães da cidade. Mrs. Mooney governava a casa com firmeza e sabia quando conceder créditos. Todos os hóspedes jovens a conheciam como Madame.

Os hóspedes permanentes pagavam quinze shillings por semana, de pensão e aposentos (excluindo cerveja ou vinho, às refeições), possuíam os mesmos gostos e ocupações e, por essa razão, entendiam-se todos muito bem. Jack Mooney filho de Madame, que era escriturário de um agente de comissões em Fleet Street, tinha a reputação de ser um "caso sério". Gostava de dizer obscenidades usadas pelos soldados, e recolhia-se usualmente de madrugada. Quando encontrava os amigos sempre tinha uma boa para contar. Também cantava canções cômicas. Nas noites de domingo havia freqüentemente reuniões na sala de visitas de Mrs. Mooney. Os artistas do music hall prestavam o seu concurso. Sheridan tocava polcas e valsas e fazia acompanhamentos. Polly Mooney, filha de Madame, cantava:

Sou uma travessa mocinha
Não é preciso envergonharem-se
Pois bem sabem que o sou.

Polly era uma moça esbelta de dezenove anos, de cabelo claro e macio e de olhos cinzento-esverdeados. A sua boca era pequena mas carnuda e tinha o hábito de olhar para cima quando falava com alguém. Mrs. Mooney mandara a filha aprender datilografia, mas como um "sheriff" pervertido costumava ir todos os dias procurá-la ao escritório, achou melhor tirá-la de lá e trazê-la para casa. Polly era muito alegre e tornava-se um chamariz para os rapazes; convinha tê-la em casa. Polly certamente flertava com os hóspedes, sob a severa vigilância da mãe, que sabia perfeitamente que eles só faziam aquilo para passar o tempo. Assim iam correndo as coisas até de Mrs. Mooney começou a acarinhar a idéia de mandar novamente a filha para o escritório, porque desconfiava que existia qualquer coisa entre ela e um dos hóspedes. Começou, então, a observá-los.

Polly sabia-se vigiada, mas o persistente silêncio da mãe não podia ser mal interpretado. Não tinha havido nenhum entendimento, nem tampouco cumplicidade entre mãe e filha; apesar de as pessoas da casa começarem a falar, Mrs. Mooney não intervinha; Polly começou a tornar-se um pouco estranha e o rapaz andava evidentemente perturbado. Por fim, quando achou que era oportuno, Mrs. Mooney interveio. Tratava de problemas de moral com a mesma facilidade com que um açougueiro trataria de um assunto de sua especialidade; para aquele caso já tomara uma solução.

Estava-se no verão. Uma alegre manhã de domingo prometendo calor, mas com leve aragem. Todas as janelas da casa de hóspedes estavam abertas e as cortinas de renda balouçavam ao sabor da brisa. O campanário da igreja de S. George enviava constantes chamados e os fiéis solitários ou em grupos, reconheciam-se quando atravessavam o largo, quer pela sua compostura, quer pelos pequenos volumes que levavam nas mãos enluvadas. O almoço terminara e a mesa estava coberta de pratos, onde se vislumbravam ainda restos de ovos e presunto. Mrs. Mooney, sentada numa cadeira de braços, observava a criada, enquanto esta levantava a mesa. Mandou-a guardar todos os restos de pão, que seriam utilizados quando se fizesse o pudim de terça feira. Depois da mesa estar limpa, do pão guardado e da manteiga e do açúcar fechados à chave, começou a reconstruir a entrevista que tivera na véspera à noite, com Polly. As coisas eram tal e qual ela suspeitara; fora franca nas suas perguntas e Polly tinha sido franca nas respostas. As duas sentiam-se acanhadas, é claro. Ela, por não desejar receber as novas de uma forma altiva ou por poder parecer conivente Polly não só porque quaisquer alusões dessa espécie a faziam ficar sempre assim, mas também para não dar a impressão de que compreendia a tolerância da mãe e lhe adivinhara as intenções.

Mrs. Mooney olhou instintivamente para o pequeno relógio que estava na chaminé, ao deixar de ouvir os sinos da igreja de S. Jorge. Passavam dezessete minutos das onze; tinha tempo mais que suficiente para falar com Mr. Doran e estar ao meio-dia na rua Marborough. Estava certa de que ganharia. Para começar, tinha todo o peso da opinião pública pelo seu lado; era uma mãe ultrajada. Deixara-o viver debaixo do seu teto, tomando-o por um homem honrado e ele simplesmente abusara da sua hospitalidade. Tinha já trinta e quatro ou trinta e cinco anos, de forma que não era possível desculpar-se com a juventude; a ignorância também não podia ser a sua desculpa, visto que era um homem já conhecedor do mundo. Ele havia simplesmente abusado da ignorância e da falta de experiência de Polly: isso era evidente. Tudo estava na reparação que estivesse disposto a prestar.

Tinha que haver uma reparação em tal caso. Tudo ficava bem para um homem, que poderia seguir a sua vida depois de haver desfrutado uns momentos de prazer, como se nada houvesse acontecido; mas a moça era obrigada a aguentar o golpe. Muitas mães ficariam satisfeitas de terminar negócios como aquele com uma boa soma de dinheiro, conhecia vários casos assim. Mas com ela o assunto era diferente. A única reparação para a sua filha seria o casamento.

Passou em revista todos os seus trunfos, antes de mandar a Mary dizer a Mr. Doran que desejava falar-lhe. Tinha certeza de que iria vencer. Ele parecia ser um rapaz sério. Se o caso tivesse acontecido com Mr. Sheridan, Mr. Meade ou Mr. Bautam, tudo seria muito mais difícil.

Mr. Doran não suportaria a publicidade.

Todos os hóspedes da casa sabiam alguma coisa do assunto; e alguns haviam chegado a inventar detalhes. Para mais, ele estava empregado há treze anos num escritório de vinhos, pertencente a um negociante extremamente católico, e a publicidade do caso podia significar a perda do emprego. Pelo contrário, se Mr. Doran concordasse, tudo poderia acabar bem. Ele sabia que Mr. Doran era um pouco avarento e suspeitava que tivesse as suas economias.

Quase meia hora! Levantou-se e olhou para o espelho. A expressão decidida do seu rosto satisfê-la e lembrou-se de algumas mães que conhecia, e que não conseguiam livrar-se das filhas.
Mr. Doran sentia-se inquieto naquela manhã de domingo. Já por duas vezes tentara barbear-se, mas as mãos tremiam tanto que tinha sido obrigado a desistir. Uma barba espessa de três dias cobria-lhe as maxilas, e de três em três minutos uma névoa embaçava-lhe os óculos, de modo que tinha que tirá-los para os limpar com o lenço. A lembrança de sua confissão da noite passada era uma coisa dolorosa para ele; o padre arrancara-lhe todos os detalhes ridículos do caso, e no fim, falara-lhe de tal maneira do seu pecado, q quase ficara agradecido por consentir numa reparação. O mal estava feito. O que poderia agora fazer senão casar ou fugir? O caso seria certamente falado e chegaria aos ouvidos do seu patrão. Dublin é uma cidade pequena onde todos sabem o que se passa com os outros. Sentia um grande calor na garganta quando, na sua excitada imaginação, ouvia Mr. Leonard dizer com a sua voz forte: "Mandem-me cá Mr. Doran, por favor!".

Aqueles longos anos de trabalho para nada. Toda sua habilidade e diligência deitadas fora. Quando rapaz novo, fizera as suas tolices, é claro; tinha-se mostrado livre pensador e negara a existência de Deus. Mas tudo isso era passado. Ainda hoje comprava um exemplar do "Reinolds Newspaper" todas as semanas, cumpria os seus deveres religiosos e durante quase todo o ano levava uma vida regular. Tinha dinheiro suficiente para poder casar. Mas não era isso: sabia que a família não havia de gostar. Primeiro que tudo, havia o desonrado pai de Polly e, além disso, a pensão da mãe estava ficando ultimamente com uma certa fama. Já imaginava os seus amigos falando do caso, rindo e fazendo troça da forma vulgar como ela falava. Mas que tinha a gramática a ver com isso, se realmente gostasse da moça? Não era capaz de decidir se gostava, ou se, pelo contrário, a desprezava pelo que havia feito. Certamente ele não fizera mal. O seu instinto dizia-lhe para ficar livre e não casar. Uma vez casado, tudo se acabaria.

Enquanto estava sentando na borda da cama, em atitude de abandono, Polly bateu levemente na porta e entrou. Contou-lhe tudo, que tinha dito à mãe e que a mãe iria falar com ele naquela mesma manhã. Chorou, deitou-se com as mãos em volta do pescoço e disse:

– Ai Bobo! Bob! Que hei eu de fazer? Poderia acabar comigo...

Ele confortou-a sem interesse, dizendo-lhe que não chorasse, que tudo acabaria bem, que não tivesse receio. Sentia de encontro à sua camisa a agitação dos seios da moça.

Não fora só por culpa dele que aquilo acontecera. Lembrava-lhe perfeitamente das primeira carícias casuais, que os vestidos dela, a respiração e os seus dedos, lhe tinham dado. Depois, uma noite, já tarde, quando se despia para se meter na cama, ela batera-lhe levemente na porta. Queria acender a sua vela, porque a dela apagara-se com o vento. Fora a sua noite de banho, vestia um longo roupão de flanela florida. O peito do pé muito branco aparecia nas suas chinelas abertas, e o sangue corria-lhe, quente, sob a pele perfumada. Também das suas mãos e pulsos, enquanto acendia a vela, subia um perfume suave.

Nas noites em que vinha para casa tarde, era ela que lhe esquentava o jantar. Ele quase nem percebia o que estava comendo, sentindo-a só a seu lado, de noite, naquela casa adormecida. E que cuidados Polly tinha! Se a noite estava fria, úmida ou ventosa, era certo encontrar um copo de "punch" preparado, a sua espera. Talvez pudessem ser felizes juntos...

Costumavam os dois subir as escadas nos bicos dos pés, cada um com a sua vela e, no terceiro andar, trocavam uns relutantes boas-noites. Costumavam beijar-se. Bob lembrava-se bem dos olhos dela, das suas carícias e do seu delírio...

Mas os delírios passavam. Repetiu como um eco a frase de que ela se servira, mas, agora, referindo-se-lhe: "Que hei de eu fazer?". O instinto do celibato prevenia-o de que recuasse. Mas o pecado ali estava e a sua honra dizia-lhe que a reparação era necessária.

Enquanto permanecia sentado com Polly a seu lado, na borda da cama, Mary bateu à porta e disse que a senhora lhe desejava falar. Bob levantou-se para enfiar o paletó. Sentia-se mais desamparado do que nunca. Quando acabou de se vestir, voltou-se para Polly a fim de confortá-la. Tudo havia de correr bem, que não tivesse medo. Deixou-a chorando em cima da cama, resmungando:

– Ai, meu Deus!

Enquanto descia as escadas, os óculos ficaram de tal maneira embaçados que teve de tirá-los para limpar. O que ele mais desejava era fugir, fugir pelo telhado, e voar para outra terra onde nunca mais ouvisse falar daquelas coisas e, no entanto, uma força o puxava para baixo, degrau em degrau. As caras implacáveis do seu patrão e de Madame estavam à frente da sua derrota. Nos últimos lances passou por Jack Mooney que vinha da copa com duas garrafas de cerveja nos braços. Cumprimentaram-se friamente; e os olhos do apaixonado pousaram, por um instante, na cara de buldogue e nos braços fortíssimos do outro. Quando chegou ao fundo da escada, voltou-se e viu que Jack o olhava lá de cima.

De repente, lembrou-se de uma noite em que uma das artistas do music-hall, uma loirinha de Londres, fizera uma alusão desagradável a respeito de Polly. A reunião quase tinha acabado por causa da fúria de Jack. Todos tiveram de o sossegar. A moça do music hall, um pouco mais pálida do que de costume, continuara sorrindo e dissera que não havia maldade naquilo. Mas Jack continuara gritando que se qualquer rapaz se metesse com a irmã, ele ferrar-lhe-ia os dentes na garganta...

Polly deixou-se ficar, durante um pouquinho, em cima da cama chorando. Depois enxugou as lágrimas e foi ver-se ao espelho. Molhou uma ponta da toalha no jarro da água e refrescou os olhos. Viu-se também de perfil e arranjou um gancho do cabelo que estava caindo, ao lado da orelha.

Em seguida, voltou de novo para a cama e sentou-se. Olhou por um momento as almofadas e isso acordou nela lembranças secretas e agradáveis. Deixou cair o pescoço contra o ferro frio da cama e começou a sonhar. Já não se notava perturbação alguma em seu rosto.

Ficou esperando pacientemente, quase satisfeita, sem nenhum alarme os seus pensamentos traziam-lhe gradualmente esperanças e visões para o futuro. As esperanças e visões eram de tal modo intrincadas que já não via claro nem se lembrava de que estava esperando alguma coisa.

Por fim, ouviu sua mãe chamar. Pôs-se de pé rapidamente e correu para as escadas.

– Polly! Polly!
– Que é mamã?
– Vem cá abaixo, querida. Mr. Doran quer falar contigo.

E só então se lembrou do que estava a sua espera.

Fontes:
http://victorian.fortunecity.com/postmodern/135/
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Helen De Rose (Lançamento do Livro Um Coração no Oceano)

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Helen De Rose (1964)

Helen De Rose nasceu em Piracicaba/SP. Hoje reside em Sorocaba/SP. Formada em Educação Física pela FEFISO, faculdade da ACM de Sorocaba. Trabalha como Terapeuta Holística no alinhamento dos Chakras e Radiestesia. Instrutora de Yôga, Meditação, Alongamento Passivo, Pilates com bola, Streching Global Ativo, na sala Zen da Academia Evolução em Sorocaba-SP. Numeróloga, Taróloga, estuda Astrologia, Esoterismo, Simbologia, Cabala da Pirâmide Invertida e Oráculos. Moderadora dos Consagrados no site Luso Poemas. Participante do site da Câmara Brasileira de Jovens Escritores e do site Recanto das Letras. Criadora da rede social Poetas da Lua: http://poetasdalua.ning.com/

Fontes:
http://helenderose.blogspot.com/
Douglas Lara. http://www.sorocaba.com.br/acontece
Fotomontagem = José Feldman

Helen de Rose (Teia de Poesias)



Uivam As Lobas

Nas pirâmides negras
Noite mistificando o santuário insondável
Como o cálice consagrado no altar
Na busca da comunhão com o eterno
No inspirar do seu renascimento
Iniciando sua vida na pirâmide invertida
Com sua voz suave e mansa como a brisa
Abrindo o portal de luz que lhe habita
Com seus sonhos amorosos de Vênus
Com seus véus despidos de Íris
As Deusas que lhe fascinam
Em tempos diferentes de ciclos de vida
Experiências enriquecidas sem o hímen
Muitos sentimentos nasceram e morreram
Muitas tatuagens marcaram seus genes
Eternizadas em sua mente
Em fluxo vital
Chama da eterna juventude, que ascende
Nas pirâmides negras
Noite mistificando o santuário insondável
Como o cálice consagrado no altar
Na busca da comunhão com o eterno
Na sua presença,
Uivam as lobas...
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Na rede da varanda

Fizemos uma cabana
Lá no alto da colina
Com singela varanda
Olhando a chuva fina
Pra descansarmos
Nossas saudades
Quando na rede
Nos deitarmos

Nas noites de verão
As estrelas vêm namorar
A Lua cheia do nosso coração
Prateando nossa pele nua no ar
Em meio as volúpias
Do balançar da rede em chamas
No roçar de nossas núpcias
Nosso êxtase se derrama
No exalar do nosso cheiro
Misturando-se com nosso gemido
Sentindo nosso corpo inteiro
Entrelaçados nos sentidos

Sereno da noite!
Vem refrescar nosso amor!
Até sentirmos que o êxtase,
Dormiu nosso sono com louvor!

Na rede da varanda
Sonhamos nosso amor
Mais puro...
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Lábios que eu quero beijar

Beijos
São chuvas de verão
Que molham os lábios
Sedentos de sentir
O sabor que vem do coração
Pulsando amor
Latejando a alma
Derramando no ventre
Sua foz

Lábios que eu quero beijar...

Eu preciso de um amor
Que seja meu oxigênio
Respirando a vida
Apaixonadamente
Eu preciso de um homem
Pra chamar de "Meu"
Depois de sentir
Seus lábios
Nos meus...
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Siga o vôo das borboletas

Trago em mim, uma borboleta voando nos céus azuis
da minha mente, nos oceanos do meu
coração, nas flores tatuadas sobre minha pele,
polinizando a essência das minhas emoções.
Siga-me! E, eu lhe mostrarei o vôo das borboletas.
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Janice Bittencourt Pavan (Paixão-Mulher)



“Paixão-Mulher: seria a paixão vista e sentida do ponto de vista feminino, ou a mulher considerada na sua totalidade amorosa? Acredito que o hífen entre os dois
substantivos determina exatamente a junção dessas duas hipóteses.

Para Janice Pavan desde as primeiras páginas deste seu livro de poemas de amor, a paixão se confunde com o amor ardente que a tudo provê e ilumina. Sentimento de bem-querer profundo, com larga tendência ao contato sexual, o amor provido de desejo, no sentido de posse e perenidade.

Sinopse:

Com muita objetividade traduz em seu texto poético: amor enlouquecido de paixão que encontra no ente amado todo e talvez o único foco de prazer. Mulher feita em pleno século XXI Janice, em todo o livro, exalta a mulher que desbrava um novo horizonte, que tem “razões para viver por inteiro / não como apêndice de seu Adão”. Essa admiração à Mulher-Mãe-Trabalhadora dimensiona-se em amplitude emocional na direção das outras pessoas com quem convive.

Testemunha-se a sensibilidade da artista, manifestada sem falsos puritanismos, numa linguagem de profundo erotismo, fácil de ser lida, entendida e apreciada, que enleva e seduz o leitor”.

Fonte:
Câmara Catarinense do Livro.

Janice Bittencourt Pavan (1948)


Janice Cardoso de Bittencourt Pavan nasceu em Imbituba, Santa Catarina, em 1º de março de 1948, onde viveu até os 6 anos de idade. Residiu em Siderópolis, SC, até 1977, quando transferiu-se para Florianópolis, onde fixou residência e casou-se com Nelson Pereira Pavan, com quem teve três filhos.

Formou-se Normalista no Colégio Madre Teresa Michel, de Criciúma, SC. Mais tarde, ingressou na faculdade de Ciências e Educação, em Criciúma, não tendo, porém, concluído o curso. Foi professora do Ensino Fundamental por 25 anos, aposentando-se em 1997. Lecionou nos colégios estaduais dos municípios de Monte Carlo (1967), Siderópolis (1966 a 1977) e Florianópolis (1984 a 1997).

Escreve desde seus 15 anos. Já publicou “Nossa Cozinha” (co-autora, 1980), “Amor-Criança” (poesia infanto-juvenil, 1990), “Luz no Jardim” (ficção infantojuvenil, 1993), “Contos do Professor” (participação com o conto ‘Viagem de Avião’, 1998) e “Bicho-Homem” (poesia para adulto, 2000).

De 1999 a 2005 dedicou-se à pintura, óleo sobre tela, tendo feito, nesse período, 23 exposições, sendo 15 coletivas e 8 individuais.

Desde 2003 é membro da ALIFLOR (Associação Literária Florianopolitana), exercendo a função de primeira-secretária. Em 2005 tornou-se membro da ACLA
(Academia Catarinense de Letras e Artes), ocupando a cadeira nº 24.

Recebeu Menção Honrosa pelo conjunto de poemas “Multidão”, “Prazer”, “Alma”, “Clímax” e “Ai de mim” no Concurso do Instituto Internacional da Poesia, em Porto Alegre, RS; 4º lugar pelo poema “Climático” e 5º lugar pelo poema “Tuas mãos” no IIº Concurso Arnoldo Prohmann de Poesia da cidade de São Mateus do Sul, PR

Fonte:
Câmara Catarinense do Livro

2a. Feira Catarinense do Livro


De 06 a 17 de Maio de 2009

A Câmara Catarinense do Livro, entidade que congrega editores, livreiros, distribuidores, universidades, entidades literárias e fundações culturais, entre outros, com o objetivo de promover e divulgar o livro e a leitura, promoverá, no período de 06 a 17 de maio, no Largo da Alfândega, em Florianópolis, a 2ª Feira Catarinense do Livro, o evento será aberto oficialmente as 10 horas no dia 06 de maio.

Trata-se do maior evento literário de Santa Catarina, com expressiva visitação de público de todas as classes e idades.

Nesta edição serão homenageadas as seguintes personalidades:

•Patrono da 2ª Feira Catarinense do Livro: Deonísio da Silva – Professor, Doutor e Escritor, natural de Siderópolis - SC.

•Mérito Escritor: Aulo Sanford D´Vasconcellos – Autor catarinense, entre suas obras: A Vitrine de Luzbel.

•Mérito Editor: Sílvio Wonsovicz – Editora Sophos

•Mérito Livreiro: Valentim Pedri – Fundador das Livrarias Curitiba, Catarinense e Porto.

•Amigo do Livro: Paulo Centeno – Campanha Mais Livros Mais Livres, Grupo RBS.

•Município Catarinense: São Pedro de Alcântara – 1ª Colônia Alemã de Santa Catarina, que neste ano comemora 180 anos de colonização.

Fontes:
- Câmara Catarinense do Livro. http://www.cclivro.org.br/
- Mensagem da Casa dos Poetas

sexta-feira, 20 de março de 2009

Divulgação Gratuita de Livros de Autores Sorocabanos e Votorantinenses


Site Cenário Cultural está divulgando gratuitamente livros de autores Sorocabanos e Votorantinenses

O objetivo está em divulgar obras e autores de Sorocaba e Votorantim, assim projetar obras locais nacionalmente e internacionalmente, tirar o escritor do anonimato e salientar o crescimento da literatura local.

Como participar?

O autor pode participar enviando a capa do livro, a sinopse do livro e uma pequena biografia do autor para o e-mail contato@cintianmoraes.com.br ou se preferir se cadastrar no site pelo endereço www.cintianmoraes.com.br

Observação: o Cenário Cultural não tem o caráter comercial e não venderá livros no site, o espaço existe para divulgar as obras. Em troca, o site Cenário Cultural gostaria se possível, ter um exemplar do livro em seu acervo físico.

Att,
Cintian Moraes
Cenário Cultural
www.cintianmoraes.com.br

Fonte:
Douglas Lara. http://www.sorocaba.com.br/acontece

Neida Rocha (Súplica de um Velho Pai)

Cândido Portinari (Lavrador de Café) 1934
Velho peão abandonado,
fez das tripas coração
para que seu rebento
fosse doutor.
Trabalhou dias a fio,
sem pensar em si somente,
tornou-se um galponeiro,
tendo como cenário,
as guampas dos novilhos,
que serviam de ouvidor
ao gaudério solitário.
Cada vintém que conseguia
mandava logo pro guri
pois queria
que ele trouxesse
muito mais do que lá havia,
queria conhecimento
muito mais do que sabia.
Os anos foram passando,
e o velho matungo,
que trabalhar não mais podia,
pensava que o investimento
era hora de voltar.
Uma carta bem saudosa
pediu ao capataz
que escrevesse,
pro filho pra cá voltar
e sua velhice amparar.
Os pilas que agora tinha
não chegavam para comer
e trocava seus pertences,
mano a mano,
cada vez que mais não tinha,
por comida e farinha,
pra poder sobreviver.
Filho ingrato que não vinha
ver o pai no fim da vida,
que já não mais podia
custear a mordomia
do pampeano migrador.
E no sopro do minuano,
o velho ancião sonhava
com a volta do filho pródigo,
que voltasse ao rincão e
trouxesse seu sustento
pois carecia descansar.
O tempo foi passando,
rasgando impiedosamente
dia após dia,
as folhas do calendário.
E o guerreiro solitário
foi chamado
pro galpão celestial.
Conta a lenda
que até hoje,
ouve-se a lamúria sangrenta
do respeitoso macanudo,
que na tapera abandonada
seu filho quer ver chegar.
E hoje, o filho do gaúcho,
vive infeliz a rezar,
pedindo a todos os santos,
para seu pai o perdoar.
Em noite de lua cheia,
um lamento rasga o ar,
pedindo, em gemidos,
em baixo do maricá,
volta pra casa, meu filho,
venha comigo matear.
––––––––––––––––-
Menção Honrosa (12º Prêmio Missões - Roque Gonzales/RS)

Fonte:
Colaboração da autora.

Cruz e Souza (Album de Poesias)

Biografia de Cruz e Souza pode ser encontrado em http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/05/cruz-e-sousa-1861-1898.html

INEFÁVEL

Nada há que me domine e que me vença
Quando a minha alma mudamente acorda...
Ela rebenta em flor, ela transborda
Nos alvoroços da emoção imensa.

Sou como um Réu de celestial sentença,
Condenado do Amor, que se recorda
Do Amor e sempre no Silêncio borda
De estrelas todo o céu em que erra e pensa.

Claros, meus olhos tornam-se mais claros
E tudo vejo dos encantos raros
E de outras mais serenas madrugadas!

Todas as vozes que procuro e chamo
Ouço-as dentro de mim porque eu as amo
Na minha alma volteando arrebatadas

ANTÍFONA
Ó Formas alvas, brancas, Formas claras
De luares, de neves, de neblinas!
Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas...
Incensos dos turíbulos das aras

Formas do Amor, constelarmante puras,
De Virgens e de Santas vaporosas...
Brilhos errantes, mádidas frescuras
E dolências de lírios e de rosas ...

Indefiníveis músicas supremas,
Harmonias da Cor e do Perfume...
Horas do Ocaso, trêmulas, extremas,
Réquiem do Sol que a Dor da Luz resume...

Visões, salmos e cânticos serenos,
Surdinas de órgãos flébeis, soluçantes...
Dormências de volúpicos venenos
Sutis e suaves, mórbidos, radiantes ...

Infinitos espíritos dispersos,
Inefáveis, edênicos, aéreos,
Fecundai o Mistério destes versos
Com a chama ideal de todos os mistérios.

Do Sonho as mais azuis diafaneidades
Que fuljam, que na Estrofe se levantem
E as emoções, todas as castidades
Da alma do Verso, pelos versos cantem.

Que o pólen de ouro dos mais finos astros
Fecunde e inflame a rima clara e ardente...
Que brilhe a correção dos alabastros
Sonoramente, luminosamente.

Forças originais, essência, graça
De carnes de mulher, delicadezas...
Todo esse eflúvio que por ondas passa
Do Éter nas róseas e áureas correntezas...

Cristais diluídos de clarões alacres,
Desejos, vibrações, ânsias, alentos
Fulvas vitórias, triunfamentos acres,
Os mais estranhos estremecimentos...

Flores negras do tédio e flores vagas
De amores vãos, tantálicos, doentios...
Fundas vermelhidões de velhas chagas
Em sangue, abertas, escorrendo em rios...

Tudo! vivo e nervoso e quente e forte,
Nos turbilhões quiméricos do Sonho,
Passe, cantando, ante o perfil medonho
E o tropel cabalístico da Morte...

SIDERAÇÕES

Para as Estrelas de cristais gelados
As ânsias e os desejos vão subindo,
Galgando azuis e siderais noivados
De nuvens brancas a amplidão vestindo...

Num cortejo de cânticos alados
Os arcanjos, as cítaras ferindo,
Passam, das vestes nos troféus prateados,
As asas de ouro finamente abrindo...

Dos etéreos turíbulos de neve
Claro incenso aromal, límpido e leve,
Ondas nevoentas de Visões levanta...

E as ânsias e os desejos infinitos
Vão com os arcanjos formulando ritos
Da Eternidade que nos Astros canta...

O BOTÃO DE ROSA

O campo abrira o seio às expansões frementes
das árvores senis, dos galhos viridentes.
Caía a tarde fresca
Loira, gentil, vivaz como a canção tudesca.

A iluminada esfera
Calma, profunda, azul como um sonhar de virgem,
Dava um brilho-cetim às verdes folhas d'hera.
No ar uma harmonia avigorada e casta,
No crânio uma vertigem
Duma idéia viril, duma eloqüência vasta.

Tardes formosíssimas,
Ó grande livro aberto aos geniais artistas,
Como tanto alargais as crenças panteístas,
Como tanto esplendeis e como sois riquíssimas.

Quanta vitalidade indefinida, quanta,
Na pequenina planta,
No doce verde-mar dos trêmulos arbustos,
Que misticismo, justos,
Bebia a alma inteira ao devassar o arcano
Das árvores titãs, das árvores fecundas
Que tinham, como o oceano,
Febris palpitações intérminas, profundas.

Esplêndidas paisagens,
Opunha o largo campo às vistas deslumbradas.
As múrmuras ramagens,
À luz serena e terna, à luz do sol - que espadas
De fogo arremessava, em frêmitos nervosos,
Pelo côncavo azul dos céus esplendorosos,
Tinham falas de amor, segredos vacilantes
Finos como os brilhantes.

A música das aves
Cortava o éter calmo, em notas multiformes,
Límpidas e graves
Que estouravam no ar em convulsões enormes.
Aqui e além um rio
Serpejava na sombra, em meio de um rochedo
Áspero e sombrio.
O olhar perscrutador, o grande olhar, sem medo
E o espírito mudo,
Como um herói gigante avassalavam tudo...

Nuns madrigais risonhos
Abria-se o país fantástico dos sonhos.
Alavam-se os aromas
Leais, inexauríveis
Das largas e invisíveis Selváticas redomas.

A seiva rebentava
Em ondas - irrompia
Na doce e maviosa e plácida alegria
De uma ave que cantava,
Dos belos roseirais
Que ostentavam a flux as rosas virginais.

E as jubilosas franças
Dos arvoredos altos,
Rígidos, atléticos,
Derramavam no campo uns fluidos magnéticos
Dumas vontades mansas.

A doce alacridade ia explosindo aos saltos.
E toda a natureza
Robusta de saúde e estrênua de grandeza
Libérrima e vital,
Erguia-se pujante, audaz e redentora,
No gérmen material da força criadora,
Dentre a vida selvagem, mística, animal...

Dos roseirais preciosos
Nos renques primorosos,
Numa linda roseira abria castamente,
Como um sonho de luz numa cabeça ardente,
O mais belo, o mais puro entre os botões de rosa.
Tinha essa cor formosa,
Tinha essa cor da aurora,
Quando ensangüenta em rubro a vastidão sonora.

Era um botão feliz
Sorrindo para o Azul, zombando da matéria.
Tinha o leve quebranto e a maciez etérea
Que uma estrofe não diz.
Das pétalas macias,
Das pétalas sanguíneas,
Doces como harmonias
Brandas e velutíneas
Uns perfumes sutis se espiralavam, raros,
Pela mansão do Bem, pelos espaços claros.
Perfumes excelentes,
Perfumes dos melhores
Perfumes bons de incógnitos Orientes.

Matéria, não deplores
O viver natural dos vegetais alegres;
Eles são mais ditosos
Que os nababos e reis nos seus coxins pomposos;
E por mais que tu regres
O matéria fatal, a tua vida inteira,
No rigor da higiene;
E por mais que a maneira
Do teu grande existir, desse existir - perene
De ironias e pasmos,
Explosões de sarcasmos
Tu completes, matéria - ó humanidade ousada
Com a ciência altanada;
E por mais que no século,
Tu mergulhes a idéia, o prodigioso espéculo,
Será sempre maior e exuberante e forte,
Ó matéria fatal,
Essa vida tão rica
Que se corporifica
Na valente coorte
Do poder vegetal.

Era um botão feliz,
Cuia roseira, impávida,
Ébria de aromas bons, ébria de orgulhos - ávida
De completa fragrância,
Palpitava com ânsia
Desde a própria raiz.

E entanto o sol tombara e triunfantemente
Como um supremo Rubens,
Jorrando à curvidade etérea do poente,
O ouro e o escarlate, aprimorando as nuvens,
Numa distribuição simpática de cores,
De tintas e de luzes
De galas e fulgores
Rubros como o estourar dos férvidos obuses.

O cérebro em nevrose,
No pasmo que precede a augusta apoteose
De uma excelsa visão perfeitamente bela,
De uma excelsa visão em límpidos docéis,
Exaltava o acabado artístico da Tela
E o gosto dos pincéis.

Caíam da amplidão em névoas singulares
Os pálidos crepúsculos.
Os fúlgidos altares
Do homem primitivo - a relva, o prado, o campo
Onde ele ia buscar a força de uma crença
Que então lhe iluminasse a alma escura e densa,
Morriam de clarões - os poderosos músculos
Da fértil mãe de tudo - a natureza ingente -
Deixavam de bater. - O olhar do pirilampo
Oscilava, tremia - azul, fosforescente.

As sombras vinham, vinham,
Lembrando um batalhão d'espectros que caminham
E a casta nitidez sintética das cousas
Tomava a proporção das funerárias lousas.
Completara-se então o mais extraordinário,
O mais extravagante,
Dos fenômenos todos:
A noite. - Enfim descera a treva do Calvário,
A treva que envolveu o Cristo agonizante.

Coaxavam negras rãs nos charcos e nos lodos.
A abóbada espaçosa, a física amplitude,
Mostrava a profundez da angústia de ataúde
De um operário pobre,
Quando se escuta o dobre
Amplíssimo e funéreo,
Sinistro e compassado,
Rolar pela mansão gloriosa do mistério,
Assim com um soluço aflito, estrangulado.

Devia ser, devia
Por uma noite assim,
Como esta noite igual,
Que derramou Maria
A lágrima da dor, - que o célebre Caim
Sentiu dentro do crânio as convulsões do Mal.

Mas o botão de rosa,
Traído pelo estranho zéfiro da sorte,
Rolou como uma cisma
Intensa e luminosa
Ardente e jovial em que a razão se abisma
E foi cair, cair no pélago da morte,
Em um dos mais raivosos,
Em um dos mais atrozes
Rios impetuosos,
Cheios de surdas vozes,
Sozinho, em desamparo, assim como um proscrito,
Em meio à placidez
Dos astros no infinito
E à mesma irracional e fúnebre mudez.

Depois e além de tudo,
Além do grave aspecto inteiramente mudo,
Ao tempo que morria
O cândido botão - em um dos tantos galhos
Virentes da roseira - alegre no ar se abria
Um outro que ostentava as pétalas sedosas,
As pétalas gracis de cores deliciosas,
De cores ideais.
As auras musicais
Passavam-lhe de leve,
Nos tímidos rumores,
De um ósculo mais breve.

E dentre a exposição das delicadas flores,
Das rosas - o botão
Aberto ultimamente às cúpulas austeras,
Às plagas da esperança, a irmã das primaveras,
Pendido um quase nada, esbelto na roseira,
Mostrava aquela unção,
A ínclita maneira
De quem se glorifica
Subindo ao céu azul da majestade pura,
Da eterna exuberância,
Da fonte sempre rica,
Da esplêndida fartura
Da luz imaculada - a egrégia substância
Que faz das almas claras
Pela fecundidade olímpica do amor, Magníficas searas,
De onde se difunde à vida sempiterna,
À vida essencial, à lei que nos governa,
À idéia varonil do poeta sonhador.

A arte especialmente, esse prodígio, atriz,
Como o botão de rosa
Tão meigo e tão feliz,
Pode ser arrojada e brutalmente, ao pego,
Na treva silenciosa,
Onde o espírito vai, atordoado e cego,
Cair, entre soluços,
Como um colosso ideal tombado ao chão de bruços,
Ou pode equilibrar-se em admirável base
Estética e profunda,
Assim, bem como o outro, à mais radiosa altura.

Deves sondá-la bem nesta segunda fase.
Precisas para isso uma alma mais fecunda.
Precisas de sentir a artística loucura...

BRAÇOS

Braços nervosos, brancas opulências,
brumais brancuras, fúlgidas brancuras,
alvuras castas, virginais alvuras,
latescências das raras latescências.

As fascinantes, mórbidas dormências
dos teus abraços de letais flexuras,
produzem sensações de agres torturas,
dos desejos as mornas florescências.

Braços nervosos, tentadoras serpes
que prendem, tetanizam como os herpes,
dos delírios na trêmula coorte ...

Pompa de carnes tépidas e flóreas,
braços de estranhas correções marmóreas,
abertos para o Amor e para a Morte!

ENCARNAÇÃO

Carnais, sejam carnais tantos desejos,
carnais, sejam carnais tantos anseios,
palpitações e frêmitos e enleios,
das harpas da emoção tantos arpejos...
Sonhos, que vão, por trêmulos adejos,
à noite, ao luar, intumescer os seios
láteos, de finos e azulados veios
de virgindade, de pudor, de pejos...

Sejam carnais todos os sonhos brumos
de estranhos, vagos, estrelados rumos
onde as Visões do amor dormem geladas...

Sonhos, palpitações, desejos e ânsias
formem, com claridades e fragrâncias,
a encarnação das lívidas Amadas!

VELHAS TRISTEZAS

Diluências de luz, velhas tristezas
das almas que morreram para a luta!
Sois as sombras amadas de belezas
hoje mais frias do que a pedra bruta.
Murmúrios ncógnitos de gruta
onde o Mar canta os salmos e as rudezas
de obscuras religiões — voz impoluta
de todas as titânicas grandezas.

Passai, lembrando as sensações antigas,
paixões que foram já dóceis amigas,
na luz de eternos sóis glorificadas.

Alegrias de há tempos! E hoje e agora,
velhas tristezas que se vão embora
no poente da Saudade amortalhadas! ...

DANÇA DO VENTRE

Torva, febril, torcicolosamente,
numa espiral de elétricos volteios,
na cabeça, nos olhos e nos seios
fluíam-lhe os venenos da serpente.
Ah! que agonia tenebrosa e ardente!
que convulsões, que lúbricos anseios,
quanta volúpia e quantos bamboleios,
que brusco e horrível sensualismo quente.

O ventre, em pinchos, empinava todo
como réptil abjecto sobre o lodo,
espolinhando e retorcido em fúria.

Era a dança macabra e multiforme
de um verme estranho, colossal, enorme,
do demônio sangrento da luxúria!

FLOR DO MAR

És da origem do mar, vens do secreto,
do estranho mar espumaroso e frio
que põe rede de sonhos ao navio
e o deixa balouçar, na vaga, inquieto.
Possuis do mar o deslumbrante afeto,
as dormências nervosas e o sombrio
e torvo aspecto aterrador, bravio
das ondas no atro e proceloso aspecto.
Num fundo ideal de púrpuras e rosas
surges das águas mucilaginosas
como a lua entre a névoa dos espaços...
Trazes na carne o eflorescer das vinhas,
auroras, virgens músicas marinhas,
acres aromas de algas e sargaços...

DILACERAÇÕES

Ó carnes que eu amei sangrentamente,
ó volúpias letais e dolorosas,
essências de heliotropos e de rosas
de essência morna, tropical, dolente...
Carnes, virgens e tépidas do Oriente
do Sonho e das Estrelas fabulosas,
carnes acerbas e maravilhosas,
tentadoras do sol intensamente...

Passai, dilaceradas pelos zelos,
através dos profundos pesadelos
que me apunhalam de mortais horrores...

Passai, passai, desfeitas em tormentos,
em lágrimas, em prantos, em lamentos
em ais, em luto, em convulsões, em dores...

SINFONIAS DO OCASO

Musselinosas como brumas diurnas
descem do ocaso as sombras harmoniosas,
sombras veladas e musselinosas
para as profundas solidões noturnas.
Sacrários virgens, sacrossantas urnas,
os céus resplendem de sidéreas rosas,
da Lua e das Estrelas majestosas
iluminando a escuridão das furnas.
Ah! por estes sinfônicos ocasos
a terra exala aromas de áureos vasos,
incensos de turíbulos divinos.
Os plenilúnios mórbidos vaporam ...
E como que no Azul plangem e choram
cítaras, harpas, bandolins, violinos ...

ACROBATA DA DOR

Gargalha, ri, num riso de tormenta,
como um palhaço, que desengonçado,
nervoso, ri, num riso absurdo, inflado
de uma ironia e de uma dor violenta.
Da gargalhada atroz, sanguinolenta,
agita os guizos, e convulsionado
salta, gavroche, salta clown, varado
pelo estertor dessa agonia lenta ...

Pedem-se bis e um bis não se despreza!
Vamos! retesa os músculos, retesa
nessas macabras piruetas d'aço. . .

E embora caias sobre o chão, fremente,
afogado em teu sangue estuoso e quente,
ri! Coração, tristíssimo palhaço.

MÚSICA DA MORTE

A música da Morte, a nebulosa,
estranha, imensa música sombria,
passa a tremer pela minh'alma e fria
gela, fica a tremer, maravilhosa ...
Onda nervosa e atroz, onda nervosa,
letes sinistro e torvo da agonia,
recresce a lancinante sinfonia
sobe, numa volúpia dolorosa ...

Sobe, recresce, tumultuando e amarga,
tremenda, absurda, imponderada e larga,
de pavores e trevas alucina ...

E alucinando e em trevas delirando,
como um ópio letal, vertiginando,
os meus nervos, letárgica, fascina ...

TRISTEZA DO INFINITO

Anda em mim, soturnamente,
uma tristeza ociosa,
sem objetivo, latente,
vaga, indecisa, medrosa.
Como ave torva e sem rumo,
ondula, vagueia, oscila
e sobe em nuvens de fumo
e na minh'alma se asila.

Uma tristeza que eu, mudo,
fico nela meditando
e meditando, por tudo
e em toda a parte sonhando.

Tristeza de não sei donde,
de não sei quando nem como...
flor mortal, que dentro esconde
sementes de um mago pomo.

Dessas tristezas incertas,
esparsas, indefinidas...
como almas vagas, desertas
no rumo eterno das vidas.

Tristeza sem causa forte,
diversa de outras tristezas,
nem da vida nem da morte
gerada nas correntezas...

Tristeza de outros espaços,
de outros céus, de outras esferas,
de outros límpidos abraços,
de outras castas primaveras.

Dessas tristezas que vagam
com volúpias tão sombrias
que as nossas almas alagam
de estranhas melancolias.

Dessas tristezas sem fundo,
sem origens prolongadas,
sem saudades deste mundo,
sem noites, sem alvoradas.

Que principiam no sonho
e acabam na Realidade,
através do mar tristonho
desta absurda Imensidade.

Certa tristeza indizível,
abstrata, como se fosse
a grande alma do Sensível
magoada, mística, doce.

Ah! tristeza imponderável,
abismo, mistério, aflito,
torturante, formidável...
ah! tristeza do Infinito!

IRONIA DE LÁGRIMAS

Junto da morte é que floresce a vida!
Andamos rindo junto a sepultura.
A boca aberta, escancarada, escura
Da cova é como flor apodrecida.

A Morte lembra a estranha Margarida
Do nosso corpo, Fausto sem ventura...
Ela anda em torno a toda criatura
Numa dança macabra indefinida.

Vem revestida em suas negras sedas
E a marteladas lúgubres e tredas
Das Ilusões o eterno esquife prega.

E adeus caminhos vãos mundos risonhos!
Lá vem a loba que devora os sonhos,
Faminta, absconsa, imponderada cega!

VELHO

Estás morto, estás velho, estás cansado!
Como um suco de lágrimas pungidas
Ei-las, as rugas, as indefinidas
Noites do ser vencido e fatigado.

Envolve-te o crepúsculo gelado
Que vai soturno amortalhando as vidas
Ante o repouso em músicas gemidas
No fundo coração dilacerado.

A cabeça pendida de fadiga,
Sentes a morte taciturna e amiga,
Que os teus nervosos círculos governa.

Estás velho estás morto! Ó dor, delírio,
Alma despedaçada de martírio
Ó desespero da desgraça eterna.

PACTO DAS ALMAS
a Nestor Vítor, por devotamento e admiração.
12 de outubro de 1897

I
PARA SEMPRE


Ah! para sempre! para sempre! Agora
não nos separaremos nem um dia...
Nunca mais, nunca mais, nesta harmonia
das nossas almas de divina aurora.

A voz do céu pode vibrar sonora
ou do Inferno a sinistra sinfonia,
que num fundo de astral melancolia
minh'alma com a tu'alma goza e chora.

Para sempre está feito o augusto pacto!
Cegos serenos do celeste tato,
do Sonho envoltos na estrelada rede,

E perdidas, perdidas no Infinito
as nossas almas, no clarão bendito,
hão de enfim saciar toda esta sede ...

II
LONGE DE TUDO

É livres, livres desta vã matéria,
longe, nos claros astros peregrinos
que havemos de encontrar os dons divinos
e a grande paz, a grande paz sidérea.

Cá nesta humana e trágica miséria,
nestes surdos abismos assassinos
teremos de colher de atros destinos
a flor apodrecida e deletéria.

O baixo mundo que troveja e brama
só nos mostra a caveira e só a lama,
ah! só a lama e movimentos lassos...

Mas as almas irmãs, almas perfeitas,
hão de trocar, nas Regiões eleitas,
largos, profundos, imortais abraços!

III

ALMA DAS ALMAS

Alma das almas, minha irmã gloriosa,
divina irradiação do Sentimento,
quando estarás no azul Deslumbrarnento,
perto de mim, na grande Paz radiosa?!

Tu que és a lua da Mansão de rosa
da Graça e do supremo Encantamento,
o círio astral do augusto Pensamento
velando eternamente a Fé chorosa;

Alma das almas, meu consolo amigo,
seio celeste, sacrossanto abrigo,
serena e constelada imensidade;

entre os teus beijos de etereal carícia,
sorrindo e soluçando de delícia,
quando te abraçarei na Eternidade?!
------------
Fontes:
– Jornal de Poesia. http://www.revista.agulha.nom.br/
– Magia da Poesia. http://www.fabiorocha.com.br/souza.htm
– Colaboração da Ordem dos Templários da Nova Era n.91

Cruz e Souza (Aniversário de Falecimento)



Homenageado como negro, voz que se levantou ao tempo da transição entre a escravatura e a libertação dos escravos, não a libertação dos preconceitos, até hoje permanentes. Homenageá-lo-ei como poeta, porque esta talvez seja dentre todas, a sua principal característica de eternidade.

Sorriso Interior

O ser que é ser e que jornais vacila
Nas guerras imortais entra sem susto,
Leva consigo esse brasão augusto
Do grande amor, da nobre fé tranqüila.

Os abismos carnais da triste argila
Ele os vence sem ânsias e sem custo...
Fica sereno, num sorriso justo,
Enquanto tudo em derredor oscila.

Ondas interiores de grandeza
Dão-lhe essa glória em frente à Natureza,
Esse esplendor, todo esse largo eflúvio.

O ser que é ser transforma tudo em flores...
E para ironizar as próprias dores
Canta por entre as águas do Dilúvio!

"Sorriso Interior", que faz parte de um dos seus últimos livros publicados em vida - há uma publicação de obras posterior -, indica um momento especial na poética de Cruz e Sousa,o momento da sublimação.

Cruz e Sousa foi, permanentemente, a luta entre a depressão e a redenção. Pode-se, talvez, caracterizar-lhe a vida por essa batalha constante entre a depressão e a redenção.

Alguns críticos consideram os seus últimos poemas obras menos fortes; quando a morte se aproximava ele já não teria a fúria inovadora dos tempos iniciais do livro Missais, em que praticamente funda o Simbolismo, e do livro Faróis, em que aponta caminhos. Não estou de acordo com esses críticos nessa observação.

Nos últimos sonetos, Cruz e Sousa vive a redenção de uma vida de auto-sofrimento, de uma vida fadada ao conflito entre a sensibilidade, diria mais, entre um gênio poético - porque Cruz e Sousa é um dos poucos gênios poéticos do Brasil - e a opressão: a infância sofrida embora apadrinhada por um homem de lucidez, seu pai adotivo, que deu alforria aos escravos antes da hora e lhe permitiu o estudo; as primeiras lutas abolicionistas na cidade do Desterro, hoje Florianópolis; a reação de uma sociedade que não admitia o negro naquelas alturas intelectuais; as dificuldades de natureza econômica; os preconceitos tantos, que se hoje existem nos grandes centros urbanos, o que não dizer numa pequena cidade branca no fim do século passado; a dificuldade de trabalho que o fez receber um cargo público no interior e não poder tomar posse, porque era negro. Tudo isso colocado em confronto com uma sensibilidade menina se assim se pode dizer, no sentido da idéia de uma sensibilidade virginal. Tudo isso é a grande luta expressa na poesia de Cruz e Sousa que, a meu juízo, acaba com a redenção nos últimos sonetos - como podemos ver perfeitamente neste poema:

A morte

Oh! Que doce tristeza e que ternura
No olhar ansioso, aflito dos que morrem...
De que âncoras profundas se socorrem
Os que penetram nessa noite escura!

Da vida aos frios véus da sepultura
Vagos momentos trêmulos decorrem...
E dos olhos as lágrimas escorrem
Como faróis da humana Desventura.

Descem então aos golfos congelados
Os que na terra vagam suspirando,
Como os velhos corações tantalizados.

Tudo negro e sinistro vai rolando
Báratro abaixo, aos ecos soluçados
Do vendaval da Morte ondeando, uivando
.

Aqui, perto da morte, Cruz e Sousa vive em seus poemas disjuntivas absolutamente díspares, peculiares a quem enfrenta o problema da morte – ele já estava praticamente tísico ao tempo dos últimos sonetos. Ele tem o terror da morte como desaparição e, ao mesmo tempo, a visão da morte como uma grande diluição no todo, inclusive numa visão beatífica da vida.

Ele é exatamente aquele que diz no "Triunfo Supremo", um dos mais belos sonetos da Língua Portuguesa, se me permitem essa ousadia de afirmação.

Chamo a atenção para a musicalidade, outra característica do Simbolismo, para o misticismo, para o cromatismo do texto, para alguns aspectos maiores da alta poesia e para o domínio pleno do idioma, sobretudo do idioma sem nenhuma redundância apenas com as palavras necessárias, mas ainda palavras tocadas naquela fusão entre o Parnasianismo e o Simbolismo: a idéia da palavra bela no verso musical.

Triunfo Supremo

Quem anda pelas lágrirnas perdido,
Sonâmbulo dos trágicos flagelos,
É quem deixou para sempre esquecido
O mundo e os fúteis ouropéis mais belos.

É quem ficou do mundo redimido,
Expurgado dos vícios mais singelos,
E disse a tudo o adeus indefinido
E desprendeu-se dos carnais anelos!

É quem entrou por todas as batalhas
As mãos e os pés e o flanco ensangüentando,
Amortalhado em todas as mortalhas.

Quem florestas e mares foi rasgando
E entre raios, pedradas e metralhas,
Ficou gemendo mas ficou sonhando !

Aqui, de modo belíssimo, Cruz e Sousa coloca a capacidade de sublimação do ser humano e a capacidade de vencer tudo aquilo que foi na sua vida realidade: "Quem anda pelas lágrimas perdido, sonâmbulo dos trágicos flagelos..." Aqui também, do ponto de vista literário, estão todos esses valores que se encontram na poesia do Simbolismo.

Cruz e Sousa tem uma junção única na poesia brasileira - talvez Afonso Guimarães, seu companheiro de poesia simbolista, também o tenha -, uma fusão indefinível entre o Romantismo, estilo anterior a ele, o Simbolismo, sua marca, e o Parnasianismo.

O Parnasianismo é coetâneo do Simbolismo. O Parnasianismo busca a pureza da forma, a palavra como expressão exclusiva da beleza. Inclusive, critica-se no Parnasianismo o predomínio da forma até sobre o tema, o conteúdo. E, no entanto, o Parnasianismo é um dos momentos mais elevados de nossa poética.

O tempo nos permite não mais olhar as escolas literárias com preferências ou com aquelas teses antagônicas de quando as refregas literárias estão vivas. Nesse ponto, a literatura se parece muito com a política: idéias pelas quais os homens mataram e morreram, alguns anos ou séculos depois, mostram-se complementares, encontram-se em algum campo das sínteses da política. Assim também na vida literária.

O próprio Modernismo, que se voltou violentamente contra esse estilo de poesia em 1922, negava ao verso a grande eloqüência, negava ao verso o direito à busca da beleza pura, negava ao verso a forma estrita do soneto, a forma estrita da métrica, a forma estrita da rima, porque buscava libertá-lo do que chamava peias que o impediam de expandir-se do ponto de vista da expressão. Tudo é verdade. É verdade que o Simbolismo abre novos caminhos, como é verdade que esse tempo faz uma poesia absolutamente notável.

No Cruz e Sousa das obras iniciais, há esse poema, considerado um marco do Simbolismo no Brasil, do qual o Senador Esperidião Amin, com sua bela voz de barítono, sua emoção de catarinense, seu talento e seu imenso coração, disse da tribuna de modo tão eloqüente o quarteto:

Vozes veladas, veludosas vozes,
volúpias dos violões, vozes veladas,
vagam nos velhos vórtices velozes
dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas.

Esse poema, no entanto, é um poema grande - não haverá tempo para lê-lo – marca a presença do Simbolismo. Ele tem 101 anos, foi escrito em janeiro de 1897, chama-se "Violões que Choram..." e é, por certo, baseado em obra do Simbolismo francês Les Sanglots dos Violons. Mas, com os jogos e com a aliteração e com a musicalidade e com o uso das letras, como usa nesse quarteto as letras "v" e "z" para simbolizar o bordão do violão, a corda grave do violão, todo o poema, numa época em que se cantava às musas, altissonância e beleza da mulher amada, a Pátria, numa época em que se cantava tudo isso, Cruz e Sousa, como os impressionistas franceses que têm muito a ver com o Simbolismo na arte européia - o Impressionismo na música é um pouco como o Simbolismo Poesia: Debussy é simbolista, Ravel é simbolista - buscava esse encontro da palavra com a música. E da palavra com a música no sentido de sonâncias que despertem sentimentos extra-racionais; sentimentos que escapam um pouco ao controle da razão, que entram no território do devaneio, que entram no território do vôo da imaginação alçado em distâncias muito grandes e, sobretudo, entrem na linguagem inefável da música, que não precisa de palavras. Essa é uma das mais belas tentativas do idioma brasileiro. E é outra das marcas da genialidade de Cruz e Sousa.

Desse poema, lerei apenas alguns quartetos porque ele é realmente muito grande - que fique como um acicate para o interesse posterior das Senhoras e dos Senhores, de todos que desejem aprofundar-se nessa matéria.

Violões que Choram...

Ah! plangentes violões dormentes, mornos,
soluços ao luar, choros ao vento...
Tristes perfis, os mais vagos contornos,
bocas murmurejantes de lamento.

Noites de além, remotas, que eu recordo,
noites de solidão, noites remotas
que nos azuis das Fantasias bordo,
vou constelando de visões ignotas.

Sutis palpitações à luz da lua
anseio dos momentos mais saudosos,
quando lá choram na deserta rua
as cordas vivas dos violões chorosos.

Quando os sons dos violões vão soluçando,
quando os sons dos violões nas cordas gemem,
e vão dilacerando e deliciando,
rasgando as almas que nas sombras tremem.

Harmonias que pungem, que laceram,
dedos nervosos e ágeis que percorrem
cordas e um mundo de dolências geram,
gemidos, prantos, que no espaço morrem...

E sons soturnos, suspiradas mágoas,
mágoas amargas e melancolias,
no sussurro monótono das águas,
noturnamente, entre ramagens frias.

Vozes veladas, veludosas vozes,
volúpias dos violões, vozes veladas,
vagam nos velhos vórtices velozes
dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas.

A musicalidade é, portanto, urna das principais marcas dessa tentativa do Simbolismo - tentativa a meu ver, lograda - de unir a palavra, que é irremediavelmente racional, não há forma da palavra não ser um ente de razão, ela pode ser além da razão quando ela é a palavra poética, porém, a razão a domina com essa linguagem do inefável, do que não é exatamente verbalizável, que é a linguagem da música. E se não compreendermos o que significava tudo isso na poesia de então, não compreenderemos a grandeza de Cruz e Sousa.

Nos seus versos abolicionistas ele é condoreiro como Castro Alves. Na sua visão de mundo, ele é romântico, no sentido de que o Romantismo é uma escola literária que prega o amor à natureza, que é uma escola baseada em sentimentos nacionalistas; o Romantismo prega a individualidade na frente de qualquer outra categoria artística; o romantismo é a procura do eu profundo do artista; o Romantismo é uma escola na primeira pessoa. Ele tem essa característica. Ele tem a característica simbolista e tem a característica parnasiana pela pureza do verso. Tudo isso saído daquele menino pobre, filho de escravos alforriados, massacrado, que até quando morreu - e nem todos o sabem - sem dinheiro para que se lhe transportasse o corpo de Minas Gerais para o Rio de Janeiro, teve o seu cadáver jogado em um trem de animais, onde conseguiu uma vaga para transportar o corpo para o Rio de Janeiro, onde foi enterrado.

Tudo isso, portanto, não vale apenas por Cruz e Sousa. Tudo isso vale por um retrato da opressão humana, por um retrato da capacidade de superação do ser humano de qualquer opressão pelo talento, pela genialidade, pela arte. Isso mostra quanto a arte é política - o que os políticos pouco compreendem, infelizmente -, porque a arte alcança instâncias que a política depois percorre com ações concretas. A arte vai na frente e expressa dramas existenciais, pessoais, humanos, sociais, políticos, espirituais, religiosos, esperanças, as mesmas que estão na política, porque estão na profundidade do ser humano.

Por isso, homenagear Cruz e Sousa não é apenas homenagear esse filho de Santa Catarina - estado maravilhoso -, esse negro formidável - e não distingo o poeta por ele ser negro ou branco; eu o admiro por poeta, porque não vejo diferenças entre as raças a ponto de que se justifique uma exceção porque ele é negro, porque negra é a cultura brasileira, mestiça é a cultura brasileira: é a música, é a pintura, literatura. Somos o País onde isso é a realidade de toda hora.

Um poema que diz do triunfo final de Cruz e Sousa, onde não há conformismo, há uma profunda compreensão de tudo:

Assim seja!

Fecha os olhos e morre calmamente!
Morre sereno do dever cumprido!
Nem o mais leve, nem um só gemido
Traia, sequer, o teu sentir latente.

Morre com a alma leal, clarividente,
Da crença errando no Vergel florido
E o Pensamento pelos céus, brandido
Como um gládio soberbo e refulgente.

Vai abrindo sacrário por sacrário
Do teu Sonho no templo imaginário,
Na hora glacial da negra Morte imensa...

Morre com o teu Dever! Na alta confiança
De quem triunfou e sabe que desce
Desdenhando de toda a Recompensa!

Fonte:
Excerto de discurso pronunciado pelo Senador Artur da Távola, na tribuna do Senado Federal, homenageando Cruz e Sousa, como poeta, em 19 de março de 1998. Publicado por: Senado Federal - Secretaria Especial de Editoração e Publicações, 1998.