sábado, 9 de maio de 2020

Maringá 73 anos



Antonio Roberto De Paula (Maringá como Cenário)


Entre dúzias de cervejas e tijolinhos de presunto e queijo, estávamos reunidos jogando conversa fora. Ou melhor, de forma descompromissada desfilávamos um mosaico de situações cotidianas.

A eloquência advinda do álcool proporcionava temas interessantes resultando em gostosas risadas. No meu canto, ouvia mais do que falava, o que não é comum para mim numa mesa de bar. À medida que o copo esvazia, minha verve se torna mais latente.

A presença de duas pessoas que vim a conhecer naquela hora talvez tenha sido a razão do meu quase mutismo inicial. Este é o tipo de inibição que não procuro combater. Falo à vontade quando estou ao lado de amigos. A chegada de estranhos me coloca na defensiva, mas que é rompida com facilidade. E como o número de desconhecidos tem aumentado nos últimos anos em Maringá!! A gente não consegue mais identificar a maior parte das pessoas num ambiente.

Éramos sete rodeando duas mesas quadradas com enormes logomarcas vermelhas ostentando o nome da cerveja. Som alto, ar esfumaçado, poucas mesas vazias, balcão repleto e bolas rolando nas duas mesas de sinuca. Fim de mais um dia de verão numa das mais belas cidades do Brasil.

Começo de noite no Jardim Alvorada, que nos anos 70 era chamado pejorativamente de Alvoroço pelos moradores de outros bairros. Num bar lotado, perto das 8 da noite, como ocorre neste horário na maioria dos mais de cem, espalhados pela Pedro Taques, Dr. Alexandre Rasgulaeff, Lucílio de Held, Sofia Rasgulaeff e outras avenidas que cortam o maior bairro da cidade, comentávamos sobre o progresso deste lugar.

As visões diferenciadas nos ajudam a compor um quadro mais preciso de Maringá e sua gente. A partir de relatos, como os de meus seis companheiros de mesa, de dramas, vitórias e derrotas e passagens interessantes, podemos entender com mais propriedade o espírito do povo maringaense que faz pulsar esta bela paisagem, formada de largas calçadas e avenidas, tendo como testemunha o perpétuo verde.

Maringá foi planejada. Uma leva de aventureiros motivou a Companhia de Terras a esquadrinhar o povoado. Quem chega primeiro toma água limpa, mas antes tem que matar a onça. Os primeiros maringaenses fizeram as duas coisas: abriram as matas e propagaram o paraíso.

Por isto, cá estamos nós: os filhos, os filhos dos filhos, gente que chegou nos anos 80, nos 90, que nasceu aqui, que chegou ontem, que está chegando. Desde o final dos anos 30 muita gente vem batalhando nestas paragens. A soma de vitórias e derrotas pessoais teve e está tendo como consequência esta Maringá de 54 anos e de 300 mil habitantes, um orgulho para todos nós.

E cá estou, bebendo e conversando com seis cidadãos desta cidade num bar do Jardim Alvorada. Como poderia estar no Maringá Velho, Operária, Miosótis, Zonas Dois, Quatro e Cinco, Borba Gato, Ebenezer, Cidade Nova e outros tantos nas mais de 200 vilas e loteamentos, grande parte devidamente asfaltada e arborizada. Ou, quem sabe, poderia estar de cotovelos fincados num balcão do distrito de Floriano ou de Iguatemi.

Ouço meu companheiro do lado dizer que seu pai trabalhou na Casa Júpiter, ali na Brasil, perto da Raposo Tavares, onde hoje existem várias lojas, e um outro lembra que aqui, onde pisamos agora, foi no início da década de 60 uma grande fazenda de café do doutor Alexandre Rasgulaeff.

Felizmente mantiveram o mesmo traçado do centro, como fizeram em todos os bairros: calçadas, ruas e avenidas largas e árvores em profusão. Uma competente e bela uniformidade, O que me faz recordar a recente visita de uma comitiva japonesa. Depois de rodarem por quase uma hora, os japoneses cutucaram o motorista avisando-o que já haviam passado por aqueles lugares. Eles não sabiam que nossas avenidas têm a medida certa, o espaço ideal para o concreto e o verde. Uma harmonia para tirar qualquer oriental de sua decantada calma e sua comedida admiração.

Para o visitante, a Mandacaru, Pedro Taques, Teixeira Mendes, Riachuelo, Paissandú e Morangueira são as mesmas avenidas, assim como a 15 de Novembro e a Tiradentes, ou a Herval, a Duque de Caxias e São Paulo. Para nós, que passamos diariamente por elas, não tem erro. Casas, edifícios, árvores e flores nos servem como referencial, mas o menos avisado vai conseguir diferenciar somente a Colombo das demais.

Com o passar dos anos, Maringá foi ficando mais encorpada. A madeira foi dando lugar ao cimento e já não é tão fácil olhar a linha do horizonte. Portentosos edifícios cobrem o sol, tiram a cada dia um pouco da inocência desta cidade e se exibem de mãos dadas com o verde nos cartões postais. O maringaense não se engana com suas avenidas. Cada uma tem sua personalidade própria.

Quando chovia, depois da Colombo, tinha que por a bicicleta nas costas para poder chegar em casa. Colocava um saco plástico em cada pé e amarrava as canelas com barbante. Só tirava no centro, quando descia do ônibus. Ou o barro cobria todo o sapato. No sábado, tinha brincadeira dançante em muitas casas. Na nossa vila podíamos entrar em qualquer uma. Fora, o pau comia. Carnaval no ginásio do Maringá Clube era uma loucura. Quem não era associado do Olímpico ou do Country ia lá. Depois levaram a festa para o Chico Neto, mas não teve mais graça.

A turma de sete na animada mesa falava sem parar. Quase todos ao mesmo tempo. Numa mesa de bar o papo demora um pouco para engatar, mas depois flui normalmente, ainda mais quando o assunto diz respeito a todos. Maringá não foi um rio que passou em nossas vidas, como diz o poeta Paulinho da Viola. A Cidade Canção continua passando e a gente vai acompanhando até onde Deus quiser.

O Grêmio campeão de 77? Sei o time completo: Vagner, Valdir, Nilo...Quer o banco também? O Didi jogava demais. O João Paulino não usava manga comprida. Vivia nas obras dando dura nos operários. Subimos na Catedral, quando ainda estava em construção. Chamaram a polícia. Viram a gente com o uniforme do Gastão e só passaram um sabão. A Wanderléia foi cantar no Cine Horizonte com uma minissaia curtíssima. A moçada ficou babando. Em vez de mundo colorido a gente cantava fundo colorido. A gente tomava batida de vodka e saía em seis no Corcel branco do pai de um amigo, filando festas de casamento no Country, Maringá Clube e restaurantes do centro. Festamos até às 4 da manhã no Canjão. Matamos o Tiro de Guerra no sábado. Mas não teve jeito. O sargento Klein mandou nos buscar em casa. Eu levava um rádio-gravador enorme aos domingos no Parque do Ingá. Ficava deitado na grama com o som de Bee Gees nas alturas.

Mesa animadíssima. Riso geral para cada lembrança. O curioso é que quando um falava, a gente entrava junto na história como se sentisse que alguns episódios tivessem sido copiados. Um dos motivos que reforçam o companheirismo é descobrir as experiências comuns. Por isso, naquele bar, fomos mais companheiros do que nunca.

Trocamos informações, remexemos gostosamente nas histórias em que atuamos como protagonistas, coadjuvantes ou meros espectadores. Passagens que fomos catalogando mentalmente em cada dia vivido em Maringá. Situações corriqueiras que vão virando história, que adquirem intensidade com o passar do tempo. Afinal, estamos ajudando, orgulhosamente, a compor esta canção chamada Maringá.

O relógio na parede, embutido na caixa de cigarros, brinde da multinacional, colou os ponteiros no 12 fazendo com que retornássemos da viagem. As três saideiras para os sete cidadãos que nasceram em Maringá, ou que aqui chegaram nas fraldas, estão no fim. Portas vão sendo fechadas. Amanhã começa tudo de novo. Cada um vai, novamente, lutar para o sustento da família e, consequentemente, para o desenvolvimento deste lugar. A gente não pode parar. Maringá não para.

Fonte:
Antonio Roberto de Paula. Da minha janela. Maringá/PR: Gráfica Sthampa, 2003.

Rita Mourão (Trovas Premiadas) 1


Abro a porta do passado
e vejo em pleno apogeu,
um rosto alegre, animado,
teimando que o rosto é o meu.
- - - - - -
Abro a porta e a janela
do meu coração em festa
quando a manhã tagarela
põe voz na densa floresta
- - - - - -
Abro a porta, enxugo o pranto
e fico a esperar teus braços,
mas para o meu desencanto
os passos não são teus passos.
- - - - - -
Amanhece, o dia é lindo,
e o passaredo contente
faz festa ao sol, que sorrindo.
lá do céu contempla gente.
- - - - - -
A mulher que é mãe me encanta,
no lar, seja aonde for.
Pois sendo mãe ela é santa
sendo mulher é o AMOR.
- - - - - -
Ante a bandeira hasteada
revendo as lutas, conceitos,
o pobre sem pão, sem nada
pede à pátria os seus direitos.
- - - - - -
Buscando nosso poente,
vamos nós dois bem juntinhos
sem deixar que envolva a gente
a solidão dos caminhos.
- - - - - -
Busquei-O além do horizonte,
nas águas do mar sem fim,
mas curvando a minha fronte
senti Deus dentro de mim.
- - - - - -
Com as chaves da alvorada,
Deus que é poder e magia,
deixa a noite enclausurada
e abre as portas para o dia.
- - - - - -
Com ousadia me olhaste,
ousada eu correspondi.
Com loucura me abraçaste
e o resto eu juro, nem vi!
- - - - - -
Desbravando o chão mineiro,
com brio, amor e esperança,
de um pai humilde e guerreiro
me veio a maior herança!
 - - - - - -
Deus ao criar as estrelas
zeloso cumpriu a meta,
mas para alguém descrevê-las
criou também o poeta.
- - - - - -
Escrevo, mas sou discreta,
me anulo, libero a mente
e deixo solto o poeta
que só fala o que ele sente.
- - - - - -
Este meu andar sisudo,
que modela a caminhada
já retrata quase tudo
que a vida transforma em nada!
- - - - - -
Eu juro, mas com loucura,
minha emoção num relance,
abre a porta, quebra a jura
e a ti concede outra chance.
- - - - - -
É um velho lar meu legado
onde o amor gerou bonança
e pôs um filho ao meu lado
multiplicando essa herança.
- - - - - -
Faça do livro, criança,
a rota dos sonhadores.
O livro é o barco que alcança
o porto dos vencedores.
- - - - - -
Felicidade, abre a porta
vem logo ressuscitar
minha esperança já morta
cansada de te esperar.
- - - - - -
Fortuna, uma velha aldeia
onde a minha mãe querida
sob a luz de uma candeia
me dava lições de vida.
- - - - - -
Fui juiz de alheios fatos
hoje a vida com razão
me faz réu dos mesmos atos
que aos outros neguei perdão.
- - - - - -
Julguei sem pensar que um dia
os anos réu me fizessem,
sem defesa à revelia,
nos bancos dos que envelhecem.
- - - - - -
Levada por fantasia
de um desejo inconsciente,
eu beijo na cama fria
as formas de um corpo ausente.
- - - - - -
Meu pai foi um homem pobre,
mas dentro do lar garanto
que na vida nenhum nobre
pela família fez tanto.
- - - - - -
Meus retalhos de esperança,
juntei-os, pus no correio.
( Destino, velha criança,)
mas a resposta não veio.
- - - - - -
Mineira com mil louvores,
Paulista por adoção,
dois estados, dois amores,
dividindo um coração.
- - - - - -
Minha casa é pequenina,
com janelas sem vidraça,
mas tem a luz genuína
que do céu me vem de graça.
- - - - - -
Minha saudade é concreta,
tem nome, tem residência,
foi luz que me fez poeta
mas hoje se faz ausência.
- - - - - -
Minha saudade em vigília
revive os velhos Natais,
das orações em família
que os anos não trazem mais.
- - - - - -
Na humilde escola do lar,
de um saber santo e prudente,
com lições do verbo amar
meu pai me fez ser mais gente.
- - - - - -
Na minha fé hoje intensa
repasso o tempo que avança.
Foi recompondo essa crença
que ainda tenho esperança.
- - - - - -
Não condeno a caminhada
culpo sim, meus passos falhos.
Foi bem larga a minha estrada
fui eu quem buscou atalhos.
- - - - - -
Não diga adeus por favor,
me deixa assim , iludida.
Quero pensar que este amor
não tem porta de saída.
- - - - - -
Não lamento o meu outrora,
nem choro uma dor vivida,
lamento sim, a demora
em pôr Deus em minha vida.
- - - - - -
Não lamento o meu passado,
nem mesmo o tempo me ofende.
Viver é um aprendizado
quem mais vive mais aprende.
- - - - - -
Não me curvo ante o fracasso
nem lamento as busca mortas,
na coragem dos meus passos
trago as chaves de outras portas
- - - - - -
Fonte:
Site de Rita Mourão
https://versosderita.weebly.com/trovas-premiadas.html

Dorothy Jansson Moretti (Andorinhas em Desespero)


Conheço o Rio Itararé desde quando conheço a mim mesma.

Conheço-o em trechos entre a mata, manso e de águas calmas.

Conheço-o entre praias brancas e luminosas. E conheço-o melhor ainda, em razoável extensão de seu trecho subterrâneo, com suas grutas famosas e belas.

Centenas de vezes "fui à Barreira", passeio tradicional de todo itarareense, e de todo o visitante que por aqui aparece. Centenas de vezes desci as escadas que levam às grutas e sempre observei o rio naquele seu aspecto habitual; fundo, entre altos paredões escarpados, sumindo e reaparecendo, ora parado e sombrio, ora borbulhante, claro e encachoeirado.

Por tudo isso, nunca poderia imaginar (mesmo conhecendo as fotos que meu pai bateu dos estragos causados por duas de suas mais catastróficas enchentes que, em pessoa, eu iria presenciar a cena com que me deparei no sábado, ante-véspera do Ano Novo,

Chovia muito, mas mesmo assim meu filho quis mostrar à noiva essa maravilha da natureza, quem sabe a maior de nossa querida terrinha. Já de longe, vimos que a pequena queda d'água adjacente, que se avista na descida para a ponte que dá acesso às grutas, estava suja e incrivelmente aumentada em seu volume. Mas ainda assim, deixamos despreocupadamente o carro, pensando que o rio apenas estivesse mais cheio do que o habitual.

Foi um susto! As águas haviam subido até encobrir totalmente a "Gruta da Santa", submergindo também a maior parte das escadarias, e passando sob a ponte um torvelinho vermelho e bravio.
Gruta da Santa

A escada de pedras naturais que levam à margem esquerda do rio, submersa até as grades de proteção, lá embaixo, impossibilitavam o acesso até mais perto, amedrontando a gente numa sensação de horror.

O "Poço da Cruz" também estava encoberto, mal deixando entrever as aberturas cruzadas que lhe dão o nome. E os paredões verticais de granito tinham-se reduzido a uma altura quase insignificante. Em suma, as soturnas águas subterrâneas corriam agora livres, caudalosas e barrentas, quase ao nível das margens, como as de um outro rio qualquer.

Que surpresa e que espetáculo aterrador para mim, que tantas vezes desci até aquelas cavernas!

O zelador da ponte, receoso e preocupado, pediu-me que telefonasse ao Prefeito. Havia muita formicida no pequeno depósito embaixo da ponte, e toda a água ficaria envenenada se o rio continuasse a subir. O Prefeito prometeu providências.

E as andorinhas?

Pobres aves! Em penosas tentativas procuravam atingir seus ninhos nas cavernas, a essa altura já totalmente arrasados pelo turbilhão.

A tradicional revoada em nuvem negra, para a descida em flecha até os grotões, espetáculo que lhes deu nome e fama, simplesmente tornou-se em evoluções desordenadas e atônitas por sobre o que restava visível dos altivos e escarpados paredões,

Que quadro doloroso! Que tristeza imensa saber que nada, nada mesmo poderia ter sobrevivido à voragem daquelas águas turvas e descomunalmente furiosas em que se transformara o belo e misterioso Rio Itararé!

(Tribuna de Itararé— 24/01/90)

Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Instantâneos. São Paulo: Dialeto, 2012.
Livro enviado pela escritora.

sexta-feira, 8 de maio de 2020

Varal de Trovas n. 262


Carolina Ramos (O Momento Supremo)


No momento supremo, a mulher se agiganta!
É mãe! quer num palácio ou mísera choupana,
humílima ou rainha... e pecadora ou santa,
é mãe! - quase divina e mais que nunca, humana!

Um lamento de dor aflora-lhe à garganta!
O sofrimento a abate! O medo a desengana!
Mas aquela que é mãe, a si mesma suplanta,
quando a vida de um filho a exige soberana!

O olhar materno fulge e que ternura exprime
quando a mulher abraça à vez primeira, ansiosa,
o seu fruto de amor! O seu botão de rosa!

E, a coroar-lhe a beleza, a lágrima a engrandece:
- puro orvalho a abençoar, no beijo mais sublime,
a roseira feliz, que entre espinhos floresce!

Fontes:
Poema enviado pela poetisa.
Imagem: www.homify.in

Malba Tahan (A Vida Mais Bem Vivida)


Todas as vezes que o Emir Motavakel-Billah dava audiência pública em seu luxuoso divan, acontecia algo de singular, isto é, ocorria um episódio qualquer surpreendente, digno de ser escrito e conservado nos anais do Califado. E isso, afirmavam os funcionários do palácio, sucedia sempre. Era certo, era fatal. Maktub! (1)

Quando o soberano, naquele ano, depois do último dia da Lua de Ramadã (2), marcou a chamada Sessão da Plena Justiça, uma onda de curiosidade agitou os nobres e auxiliares da corte:

— Que iria acontecer? Que novo caso surgiria, de improviso, entre os nômades, cheiques (3) , mercadores e caravaneiros?

E ficaram todos na expectativa: Aguardemos o que está para acontecer — diziam. A vida é uma sucessão de surpresas preparadas pelo Destino. Fugir ao Destino é impossível. Maktub!

Ora, naquele dia, exatamente, tudo correu com natural e decepcionante naturalidade. O Califa, seguindo a rotina enervante, ouviu as queixas (eram sempre as mesmas), atendeu aos solicitantes, socorreu várias pessoas que precisavam de auxílio urgente e determinou que fossem sanados certas irregularidades e abusos do serviço público. Já ia, afinal, o soberano árabe encerrar a sua fecunda e benemérita audiência e proferir o clássico Inch’Allah! (Assim quis Allah) quando o preclaro e prestigioso Welid ben Obeid, o vizir secretário, preveniu-o, respeitoso:

— Deveis, ainda, ó Rei!, ouvir o que deseja aquele desconhecido. Tenho a impressão de que se trata de um simples pescador que vive do outro lado do rio.

E apontou para um homem, de cara chupada, que se achava um pouco afastado, com uma cesta na mão, recostado a uma coluna. Trajava uma modesta abaya azulada.

— Sim, sim — assentiu com veemência o Califa, cofiando a barba. — Vamos ouvi-lo. Ouahyat ennébi! Que pretenderá ele, nesta sessão?

A um sinal do vizir, o solicitante aproximou-se do Rei, proferiu a saudação clássica (salam aleikoum!) e disse, a seguir, com fervoroso respeito:

— Chamo-me Kalil, ou melhor, Kalil Iamam. Sou pescador e venho da aldeia de Suan, onde vivo com minha esposa e três filhos. A minha vinda hoje, a este divan, tem, apenas, um objetivo: moveu-me o desejo de oferecer pequeno e desvalioso presente ao nosso glorioso Emir! (Que Allah vos cubra de benefícios!).

E, depois de proferir tais palavras, o pescador colocou aos pés do Rei a cesta que trouxera com peixes. Mas (coisa curiosa!) a tal cesta não estava cheia. Longe disso. Tinha peixes só até à metade. Ora, sempre que um pescador de Damasco, de Bagdad ou de qualquer outro recanto do Islã, oferece uma cesta de peixes ao Rei, esta cesta deve estar repleta, a transbordar de pescados. Assim determina a velha praxe; assim reza a tradição; assim é que é correto.

Sem se mostrar ofendido com a desatenção do ofertante, o Califa Motavakel-Billah olhou, com simpatia, para a cesta meio vazia; olhou, a seguir, também, com muita simpatia, para o pescador que se achava de pé, em atitude respeitosa, braços cruzados. Os seus trajes eram modestos, mas não se sentia nem desmazelo nem miséria; ostentava, em contraste com a abaya (longa túnica) azulada, um turbante cinzento desbotado, tracejado de pequenos remendos; tinha o rosto escanhoado denegrido pelo Sol; os olhos escuros, cor de tâmara; testa larga; em idade deveria estar rondando a casa dos quarenta e sete ou quarenta e oito anos bem vividos.

Depois de ligeira pausa, o Rei tirou de pequena bolsa (das três que trazia presas ao cinto) e entregou-a ao pescador, dizendo com voz pausada e em tom paternal:

— Acabo de receber de ti, meu bom e atencioso amigo, uma cesta meio cheia; e em troca, para retribuir a essa gentileza, a essa expressiva fineza de tua parte, ofereço-te esta bolsa meio vazia!

O pescador, de relance, percebeu a intenção, o propósito astucioso do Rei; a bolsa continha moedas, mas essas moedas mal atingiam a metade da bolsa.

E o valioso Califa, preocupado em parecer original (a corte estava reunida e assistia à audiência), repetiu com certa ironia, acentuando bem as palavras:

— Estás vendo, ó pescador Iamam!, recebi de ti esta bela cesta meio cheia; e, em troca, ofereço-te esta modesta bolsa meio vazia!

— Por Allah! — volveu o pescador, com um sorriso ladino, quase instantâneo. — Pelos sete méritos do Profeta! (4) Há um engano, ó Emir!, de vossa parte. Eu, sim, que vos ofereci uma cesta meio vazia; e recebo de vossas mãos, em troca, esta valiosa bolsa meio cheia.

E acrescentou com ênfase, vibrando a um súbito calor de emoção:

— A verdade deve ser dita e reconhecida, ó Rei! Aquele que dá, dá sempre a cesta meio vazia; aquele que recebe, recebe, sempre a bolsa meio cheia. Que valem sete ou oito peixes? Uma lembrança... e nada mais. A dádiva, porém, de um Rei generoso e justo não é um simples presente, é um elogio!

Aquelas palavras, proferidas com tanto desembaraço e clareza, pelo pescador do turbante desbotado, surpreendeu o Califa dos árabes. Disse, então, Motavakel, dirigindo-se a seus vizires e secretários, num irreprimível espanto:

— Ualahi na telabi! Estão vendo? Este bom e modesto pescador tem a alma de filósofo! É um verdadeiro filósofo!

Sorriu o pescador e replicou com certa afoiteza:

— Perdão, ó Emir dos Crentes!, é muito natural que um pescador seja filósofo, pois sei de muitos filósofos que são pescadores.

Houve um momento de silêncio no largo divan do Rei. Vizires, cheiques e secretários, homens do estudo e do saber, surpreendiam-se com as réplicas oportunas e judiciosas do modestíssimo pescador de Suan.

— Filósofos pescadores? — estranhou o Califa — Ouallah!

E, voltando-se para o seu digno vizir Welid ben Obeid, que era um sábio, um verdadeiro ulemá, interpelou-o com assombro, incrédulo:

— E tu, ó esclarecido vizir!, que conheces os Livros da Sabedoria, os escritos dos alfaquis, os comentários do Profeta, tira-me desta dúvida: Julgas que esse pescador proferiu a verdade? Há filósofos que são pescadores? Não será isso uma fantasia desatada?

Welid ben Obeid, o sábio (que Allah o tenha entre os eleitos), inclinou-se diante do Rei e assim falou (as suas palavras denunciavam certa emoção):

— A julgar por mim, ó Príncipe dos Crentes!, esse bom e honrado pescador disse a verdade. A pura verdade. Quando me sinto fatigado de ler e de ouvir os filósofos, de analisar, letra a letra, os ensinamentos dos Inspirados, as sentenças dos doutores, os hadis do Profeta, tomo de minha rede, dos meus apetrechos de pesca, e vou, com meu filho mais moço, até o rio fazer um pouco de pescaria. Procuro repouso, para o meu conturbado espírito, tornando-me pescador. A pesca é, para mim, tranquilidade e paz. Esqueço, por momentos, os problemas torturantes da alma, as inquietações da Dúvida, e ponho-me a pescar. É uma delícia pescar. A vida passa e o pescador, absorto em sua faina, não sente o passar tristonho da vida! Em cada minuto de espera vive, o incansável e paciente pescador, um ano de intensas emoções. A vida mais vivida, ó Rei do Tempo!, não é a vida do filósofo, é a vida do pescador.

O eloquente Welid ben Obeid, mestre entre os mestres, aclarou, com solene exaltação:

— Posso, pois, assegurar-vos, ó Emir!, que esse pescador disse a mais pura verdade. Há, realmente, pelos quatro cantos do mundo, filósofos que são pescadores. Volveu, então, o Califa:

— As tuas palavras, meu caro vizir, são como brincos preciosos de ouro puro para os meus ouvidos. Admito, agora, que esse pescador tenha dito a verdade. Aceito que um filósofo possa ser pescador. Sim, aceito e acredito. O que me parece estranho e inaceitável é que um pescador seja filósofo!

— Peço humildemente perdão, ó Emir! — acudiu por sua vez o pescador, com certa desenvoltura — Mas nada há, nem pode haver, de estranho no fato de um pescador ser filósofo. Muitas e muitas vezes, quando me sinto cansado de pescar, o corpo dolorido pela faina, largo a minha pesada rede, as minhas linhas, a caixa com iscas, e vou até à Mesquita Otman ouvir as lições dos ulemás que ensinam Filosofia e debatem os graves problemas do Ser e do Não-Ser. Procuro repousar para a fadiga do meu corpo, tornando-me filósofo. A Filosofia é, para mim, tranquilidade e paz. Esqueço, por um momento, os problemas e tropeços de minha vida de pobre, e ponho-me a filosofar. É uma delícia filosofar! A vida passa e o filósofo, enlevado em suas abstrações, não sente o passar inexorável da vida. Sinto aqui discordar do sábio analista Welid ben Obeid! A vida mais bem vivida, mais sentida, é a meu ver, não a vida serena do pescador, mas a vida intensa do filósofo!

— Iallah! — exclamou o Califa, esfregando as mãos, num petulante ar de inteligência. — Pela sombra da Caaba! É realmente curioso o que acabo de ouvir. O filósofo Welid ben Obeid, o sábio, descansa de seus estudos, pescando; o diligente pescador Kalil descansa de sua faina de pescador, estudando os altos problemas filosóficos!

E o Rei dos Árabes, depois de ligeira pausa, rematou com a mais afetuosa simplicidade:

— Já ouvi contar que Jesus, filho de Maria, quando quis escolher os seus primeiros discípulos foi procurá-los, não entre os filósofos, mas sim entre os pescadores. Que Allah, o glorificado, proteja os pescadores e esclareça os filósofos!

Vizires e escribas da corte comentavam:

— Já era de esperar!

No final da audiência real, eis que ocorre o imprevisível: Um pescador humilde e pobre vira filósofo; um filósofo, rico, prestigioso, sábio de renome, grão-vizir do Rei, vira pescador. Maktub! (estava escrito!) Mas, afinal, a semente da dúvida estava lançada entre os sábios e doutores bagdalis:

— Quem tem a vida mais bem vivida? O pobre Iamam, o pescador, ou o rico Welid ben Obeid, o filósofo?

Dizia o douto Sibawaihi, o analista:

— A vida mais bem vivida terá aquele que viver na Paz, no Dever e no Amor, isto é, aquele que viver na Verdade de Deus!

Uassalam!
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Notas:
1 Maktub - Estava escrito. Tinha que acontecer. Admite o fatalismo dos árabes que a nossa vida, com todas as suas peripécias, está escrita no Livro do Destino. Maktub é o particípio passado do verbo Katb, escrever.

2 Ramadã - Período da Quaresma entre os muçulmanos.

3 Cheique - Chefe. Homem de prestígio.

4 Profeta - Refere-se a Maomé, o fundador do Islamismo. Maomé nasceu em 570 e faleceu em 632. É pelos árabes chamado O Profeta.


Fonte:
Malba Tahan. O Gato do Xeique e Outras Lendas.

Ruth Guimarães (Dona Baratinha)


Dona Baratinha foi varrer a casa e achou um tostão. Na mesma hora, desatou o avental, lavou o rosto, passou pó-de-arroz nas faces, e foi fazer compras. Com o tostão achado comprou móveis, para mobiliar a casa inteira, uma geladeira, um aparelho de televisão, tapetes e cortinas, vestidos e mais vestidos, sapatos caros e enfeites. Comprou joias e espelhos de cristal. Comprou petiscos muito gostosos e fez um sortimento de doces que é coisa de que barata gosta muito. O troco pôs numa caixinha forrada de cetim vermelho, chaveou-a, amarrou um laço de fita nos cabelos e foi muito lampeira para a janela apreciar o movimento e arranjar um casório, uma vez que tinha dote.

"Quem quer casar com dona Baratinha,
Tão bonitinha
Que tem dinheiro na caixinha?"

Perguntou ela com a voz mais docinha do mundo.

Passou o boi.

- Eu quero – mugiu.

E ela:

- E como é que você muge de noite?

E o boi:

- Assim: buuuuuuuu! – abriu o focinho num berro de doer os ouvidos.

Dona Baratinha correu assustada para dentro. Lá cheirou o frasquinho de sais, e depois bem calma, voltou para a janela. O boi estava esperando a resposta.

- Ah! – Dona Baratinha se abanava toda afobadinha. – Não quero me casar com você, não. Você me assusta.

O boi foi embora, e ela fincou os cotovelos na janela outra vez, esperando que passasse outro moço bonito.

Passou o burro.

"Quem quer casar com dona Baratinha,
Tão bonitinha
Que tem dinheiro na caixinha?"

Ciciou a mocinha casadoura, esfregando de leve uma asa na outra.

O burro deu um zurro de abalar a casa:

- Eu quero.

Mas é assim que você zurra de noite? – perguntou a dona Baratinha, ainda toda trêmula do susto.

- Ah! – o burro deu um risadão. – De noite eu canto com voz muito mais forte. – E deu outro zurro, de arrebentar os tímpanos.

- Deus me livre de casar com você, burro. Você não me deixaria dormir.

O burro foi embora e a dona Baratinha se encostou outra vez romanticamente no peitoril da janela. Ora ajeitava a fita no cabelo, ora suspirava.

Passou o cavalo.

"Quem quer casar com dona Baratinha,
Tão bonitinha
Que tem dinheiro na caixinha?"

- Eu quero – relinchou o cavalo, mostrando todos os dentes, de satisfação.

- Como é que você faz, de noite?

- Eu, minha flor, cantarei de amor tão fortemente...

- Mas como?

- Assim: inoch! inoch! inoch! inoch! inoch!

- Ai! Chega! – gritou dona Baratinha tampando as mimosas orelhinhas. – Chega! Eu não me caso com cavalo de jeito nenhum. Você não me deixaria dormir direito.

O cavalo foi embora, dona Baratinha ajeitou os cotovelos em cima de uma almofada, prevendo que a espera seria longa.

Passou o cachorro.

"Quem quer casar com dona Baratinha,
Tão bonitinha
Que tem dinheiro na caixinha?"

Falou a moça, muito assanhadinha, vendo-o bonitão, de pelo lustroso, orelhas em pé, passo ligeiro.

- Eu quero. – O cachorro latiu um consentimento rápido.

- Como é que você faz de noite, cachorrinho?

- Depende.

- De quê?

- Se estou alegre é assim: au! au! au!. Se estou triste ou doente, é assim: Uaaaauauuuu! – E o cachorro uivou, de focinho para cima, caprichando nos bemóis.

- Ui! Ai! Aiaiaiai! Não me faça chorar! Você não me serve. Tanto a sua alegria como a sua tristeza me incomodam.

Dona Baratinha suspirou um pouco, pois fazia tanto tempo que estava na janela e ainda não tinha encontrado noivo que servisse.

Passou o gato.

Que belo bichano, de pelagem de seda, cinzento, macio, cara redonda, boquinha cor-de-rosa, bigodes eriçados, orelhas recortadas em triângulo isósceles.

O coração de dona Baratinha palpitava mais apressado quando ela cantou em voz emocionada, desta vez:

"Quem quer casar com dona Baratinha,
Tão bonitinha
Que tem dinheiro na caixinha?"

- Eu quero – ronronou o gato, no fundo da garganta, numa doçura de voz.

- Você ronrona assim, de noite, gatinho?

- De noite? – O gato fez um floreio com a cauda. – Não. De noite, subo ao telhado. Sou namorado da lua. E deliro miando assim: miaaau! miau! miiiiaaaau!

Dona Baratinha suspirou.

- Que pena! Você não me serve não. Não me deixaria dormir. Que pena!

Passou o bode.

"Quem quer casar com dona Baratinha,
Tão bonitinha
Que tem dinheiro na caixinha?"

O bode berrou, muito azuretado:

- Eu quero.

- Quer, coisa nenhuma! – respondeu logo dona Baratinha. – Você é muito sem modos, malcheiroso, barulhento. Com esse berro tremido vai me incomodar de noite.

Passou o galo. De crista e esporão. De barbela vermelha. Asas douradas, rabo empenachado. Bonito de se ver como um mosqueteiro do rei da França.

- Como eu gostaria que esse fosse o meu noivo – pensou dona Baratinha. E com voz muito esperançada:

"Quem quer casar com dona Baratinha,
Tão bonitinha
Que tem dinheiro na caixinha?"

- Eu quero – cocoricou o galo, riscando o chão com a aguda espora.

- Você canta de noite?

- Se canto! – blasonou ele, e a barbela ficou mais vermelha de orgulho. – Se canto! Começo à meia-noite e vou madrugada afora, cocoricóóóóóóó’!

Dona Baratinha virou a carinha bonita para o outro lado.

- Não serve! Vá andando!

E assim passaram o carneiro, o macaco, a onça, a anta, a capivara, o gambá, muitos e muitos bichos, de casa e do mato, nenhum servia, porque iria incomodar o soninho leve de dona Baratinha. Já bem tarde, quando as luzes da cidade se acenderam, passou um camundongo, quietinho, sorrateiro, dando corridinhas e paradinhas. Espiando matreiro para todos os lados. Correndo outra vez, os olhinhos espertos saltando daqui para ali. Dona Baratinha parou a espiar os seus inquietos manejos, divertida com o bichinho, e quase se esquecia de perguntar. Lembrou-se em tempo, quando o camundongo já ia longe:

"Quem quer casar com dona Baratinha,
Tão bonitinha
Que tem dinheiro na caixinha?"

- Eu quero – guinchou o ratinho, tão baixo que quase não se ouvia.

- O que é, ratinho? Você quer?

- Quero.

- Como é que você faz de noite?

O ratinho guinchou:

- Coin, coin, coin.

- Assim baixinho? – perguntou dona Baratinha, encantada. – Então serve. Você não me acorda com esse barulhinho. Como é o seu nome?

O ratinho empolou bem o peito e falou:

- Dom Ratão.

Deu outra corridinha, para longe, para perto.

Ficaram noivos.

No dia do casamento preparava-se uma festa de arromba. O troco do tostão dava para tudo. Mataram frangos, não sei quantos, leitões, bois, e fizeram doces e mais doces.

- Sabe do que eu mais gosto, Baratinha? – perguntou o noivo, no seu guincho macio.

- Do quê?

- De toucinho cozido no feijão.

E então dona Baratinha deu ordem para que se fizesse uma caldeirada de feijão com torresmo, bem temperado. O perfume da panela, logo pela manhã, recendia pela casa toda. Dom Ratão chegou, eram umas dez horas, muito elegante, de casaca e cartola, luvas brancas, bengala de castão dourado, calças listradas. Parecia um presidente em dia de recepção no palácio. Mas qualquer coisa o inquietava. Farejava, erguendo o focinho fino, dava corridinhas mais do que de costume.

- Está nervoso, querido?

- Estou.

Na hora da saída, desceu na frente dona Baratinha, arrastando a cauda do vestido de cetim, e o comprido véu de tule pela escadaria. O noivo veio a passo, atrás. A noiva já tinha entrado no automóvel, quando dom Ratão fez cara de contrariedade:

- Que maçada!

- Que foi?

- Esqueci o relógio lá em cima.

- Vou mandar alguém buscar.

- Não. Só eu sei onde o deixei. Espere um minuto.

Deu uma corridinha até o meio da escada, voltou, avisou:

- Um minutinho. Eu já venho.

Outra corridinha para cima. E a noiva ficou esperando.

Passou meia hora, dom Ratão não voltou. No relógio da sala soaram as onze. Dom Ratão não voltava. Chegou o meio-dia. Não voltara dom Ratão.

- Fugiu – gemia dona Baratinha inconsolável. – Não gosta mais de mim. Fingiu que ia buscar o relógio e fugiu para não casar. – Subiu novamente a escadaria arrastando o vestido de cauda e o véu. Por muito que fosse o desconsolo, não era caso para se fazer jejum por isso.

- Afinal, não se perdeu grande coisa – comentou uma empregada. É melhor pôr o almoço.

E lá se foram todos para a mesa.

Mas então é que foi uma dor. Ao mexerem o caldeirão de feijão encontraram o coitado do noivo, morto, cozido, misturado com os torresmos. Que horror! Dona Baratinha, depois de clamar que "Dom Ratão, coitado, era tão bom, eu sabia que ele gostava de mim, aconteceu, coitado!, de ir provar um torresmo e cair no caldeirão, podia ter pedido, a gente fazia um pratinho para ele, não quis me desgostar, coitado! tão delicado" – teve um chilique e foi um alvoroço monstro em casa de dona Baratinha, tão bonitinha. pois dom Ratão tinha morrido no caldeirão de feijão cozido, por causa de um pedaço apetitoso de toucinho.

Dona Baratinha pôs o luto, trancou todas as portas, e chorou tanto que lavou a casa com lágrimas. A cozinheira de dona Baratinha pegou o pote e foi buscar água no rio. Encheu a vasilha, mas em vez de ir para casa, começou a se lastimar:

- Como é triste esta vida. Dom Ratão morreu. Dona Baratinha, tão bonitinha, está de luto. E eu, por isso, quebro o pote.

Pam!

Bateu o pote numa pedra e foi-se embora. O rio ouviu tudo aquilo, encolheu-se e resolveu:

- Eu também seco.

Os bois vieram à tarde, nem sombra viram de água.

- Que é isso, rio? Que aconteceu?

- Dom Ratão morreu, cozido na panela de feijão com toucinho. Dona Baratinha pôs luto, a cozinheira quebrou o pote, e eu também sequei.

- Que horror!

Os dois abanaram a cabeçorra, melancólicos e declararam:

- Então nós derrubamos os chifres.

Foram pastar. O campo, quando viu os bois mochos, muito sem graça, pastando, se espantou:

- Que foi isso? Que fizeram vocês dos chifres?

- Você então não soube da grande desgraça?

- Não.

- Pois dom Ratão morreu cozido, dona Baratinha pôs luto, a cozinheira quebrou o pote, o rio secou e nós derrubamos os chifres.

- Que tristeza! Eu também vou secar.

De verdinho que estava, o campo ficou todo amarelado. Bem no meio dele estava um laranjeira e quando ela viu aquilo perguntou:

- Que é isso, campo? O que lhe deu? Está se sentindo mal?

- Não, dona Laranjeira. Eu estava muito bem até. Amarelei foi de desgosto. Não vê que dom Ratão morreu cozido na panela de feijão com toucinho, dona Baratinha pôs luto, a cozinheira quebrou o pote, o rio secou, os bois derrubaram os chifres e eu também sequei?

A laranjeira derramou uma lágrima e disse:

- Então, eu derrubo as folhas.

Choveram folhas no chão.

Os passarinhos que moravam nela, quando voltaram do trabalho à tarde, encontraram os ninhos expostos ao vento, ao sol e à chuva, na árvore nua.

- Que foi isso, dona Árvore, o que aconteceu que esta pensão está sem telhado?

- Vocês que andam voando por aí não souberam da desgraça?

- Não, senhora.

- Pois dom Ratão morreu, dona Baratinha pôs luto, a cozinheira quebrou o pote, o rio secou, os boi derrubaram os chifres, amarelou o campo e eu também derrubei as folhas.

Os passarinhos choraram, choraram.

- Que tristeza! Pois, de dó, nós também derrubaremos as penas.

E lá se foram eles, peladinhos, tremendo de frio, pelo campo, e andando em vez de voar, pois não tinham penas nem as asas.

O céu espiou aquele disparate, lá de cima, e estranhou:

- Ave Maria! Que mundo louco! O que será que deu naqueles passarinhos que perderam até a roupa?

Os passarinhos contaram:

- O senhor não sabe da grande desgraça?

- Não sei.

- Dom Ratão morreu cozido, dona Baratinha pôs luto, a cozinheira quebrou o pote, o rio secou, os bois derrubaram os chifres, o campo amarelou, a laranjeira ficou sem folhas, nós também nos depenamos.

- Que calamidade!

O céu se franziu numa carranca medonha. Começou a trovejar e a ventar. E depois urrou, com um vozeirão arrepiante:

- Pois então eu também vou despencar daqui de cima.

E desabou em cima da terra, no meio da tempestade mais horrorosa que já houve.

E foi assim que o mundo, certa vez, se acabou, só porque dom Ratão, que ia se casar com dona Baratinha, tão bonitinha, morreu cozido no feijão.

Fonte:
Ruth Guimarães. Lendas e Fábulas do Brasil. 1964.

quinta-feira, 7 de maio de 2020

Varal de Trovas n. 261


Aparecido Raimundo de Souza (Microfrases) 2


31
Paixão
Te quero entre braços e abraços.

32
A Bela e a Fera

King Kong se apaixonou por Ann...

33
Gosto não se discute

Entre Matemática  e Biologia, prefiro Português.

34
Questão de gosto

Beiçola, meu cachorro, ama uma cadela.

35
Harmonia

Teu cheiro me embriaga de paixão.

36
Sonhador

O por do sol me encanta.

37
Sintonia

De pegada em pegada, pego você.

38
Melodia

Simplesmente você é minha canção favorita.

39
Definitivo

Seu adeus levou meu sorriso embora

40
Cotidiano

Caminhadas na praia me deixam disposto.

41
Devaneio

A esperança secou as minhas lágrimas.

42
Momento

Amo estar com você. Sou feliz!

43
Fatal

A tristeza deixou minha esperança perdida.

44
Do nada

A velha cadeira de balanço desbalançou.

45
Letal

O machado chegou derrubando várias árvores.

46
Sonho realizado

Feliz, o passarinho fugiu da gaiola.

47
Amor bandido

Ao te ver, caí de quatro.

48
Natureza

Os pássaros não gostam de gaiolas.

49
Dia a dia

Um gole de café me anima.

50
História em quadrinho

O fantasma se casou com Diana.

51
Futurista

Passado não importa. Já o presente!...

52
Avassalador

Teus beijos me embriagam de amor.

53
Parquinho infantil

Sou como uma enorme roda gigante.

54
Abissal

O vento toca suavemente meus cabelos.

55
Em literatura...

Livro bom não lemos. Todavia, devoramos.

56
Gesto natural

Me livrei do cobertor. Sentia calor.

57
Era só o que me faltava

A quarentena me prendeu em casa.

58
Sem dúvida

Descobri: meu medo vem da solidão.

59
Que azar!

Saltei de paraquedas. Ele não abriu.

Fonte:
Frases enviadas pelo autor.

Silmar Böhrer (Lampejos Poéticos) XXIX


Filemon F. Martins (Poemas Escolhidos) VIII


AMOR MAIOR

O carinho que tenho demonstrado
por tua vida que me inspira verso,
deixa o meu coração encabulado
viver feliz em meio do Universo.

O amor não tem barreiras e é lembrado
pelo desejo de viver imerso
no sonho deste amor equilibrado,
esquecido do mundo tão perverso...

Quero viver a paz que me dispensas
nesta existência de emoções intensas
que o nosso Amor, feliz, já construiu.

E no final da vida bem velhinhos
trocaremos em paz muitos carinhos
que o Amor jamais, na terra, produziu!
****************************************

ANTES QUE A NOITE CHEGUE..


Quando o sol se debruça no horizonte
deixando a tarde bela e mais fagueira,
antes que a lua, pelo céu, desponte,
a saudade se achega e faz trincheira.

Ao longe, em tom avermelhado, o monte
transmite uma quietude verdadeira,
trazendo ao coração o som da fonte
que canta, docemente, em corredeira.

Assim, vou recordando os tempos idos,
sonhos fagueiros, lindos e vividos,
que a memória jamais vai esquecer...

E, antes que chegue ao fim essa jornada,
terei, por certo, em minha caminhada
muitos versos de amor para escrever.
****************************************

CAMINHOS DO SERTÃO


Eu conheço de perto estes caminhos
onde as águas deslizam pelas grotas,
onde as aves, alegres, fazem ninhos
para depois buscarem novas rotas.

Bons amigos, parceiros e vizinhos,
não há vitórias nem também derrotas.
As árvores acolhem passarinhos
que chegam de paragens tão remotas.

A lembrança me vem ao pensamento,
como era bom viver aquele tempo
em que o sonho embalou o coração.

Eu quisera, de novo, estar desperto
e andar, mais uma vez, de peito aberto
pelos caminhos ínvios do Sertão!
****************************************

CONVERSA NO TREM


"Esta vida não faz nenhum sentido,"
dizia o passageiro do meu trem,
"o mundo inteiro, veja, está perdido,
— esperança não há para ninguém."

Assim falava o homem ressentido
das promessas que, feitas por alguém,
sequer foram cumpridas e incontido
ele se lamentava do desdém.

"Mas a vida é assim mesmo," outro dizia,
"a tristeza anda ao lado da alegria
e a calma vem após a tempestade."

Por que, então, meu coração sedento
tem que provar a dor e o sofrimento
para alcançar a tal felicidade?
****************************************

CORAÇÃO FELIZ


Meu coração depois de muito tempo
está feliz e vive mais garboso.
O amor, eu creio é um belo sentimento,
quanto mais forte fica, é mais gostoso.

Há doçura no amor, não há lamento,
o mundo é mais bonito e venturoso,
um sonho bom invade o pensamento,
tudo sorri, ficando mais ditoso.

Creio no Amor Maior e já componho
um salmo de ventura e ainda sonho
com um mundo melhor, menos profano.

Por que vou duvidar? Alinha esperança
cresce no peito alegre da criança:
resgatar para o bem o ser humano!
****************************************

DESABAFO


Não reclamo da vida turbulenta e triste
que a predestinação me faz levar, talvez,
nem quero levantar a voz ou o dedo em riste
para acusar alguém de tanta insensatez.

A consciência cruel por certo não resiste
fazer o bem, amar, viver com honradez.
É próprio do invejoso que na falta insiste
muito disfarce, engodo, mágoa e morbidez.

O calvário de Cristo nos mostrou o quanto
a Humanidade é mesmo pobre e desprezível,
a ponto de matar um verdadeiro santo...

E desde então as coisas só se complicaram,
o aumento dos Pilatos se tornou visível
e os Judas, com certeza, se multiplicaram!
****************************************

INVERNO / PRIMAVERA

O outono já passou, chegou o inverno
trazendo frio e chuva à madrugada.
Meu corpo já não tem teu corpo terno
nem sei se voltarás, minha adorada.

O inverno vai passar e o meu inferno
há de findar ao fim desta invernada.
Vou buscar meu amor feliz, eterno,
quero de volta a paz tão desejada.

Quero sorver o amor que me provocas
teu corpo tão perfeito que me tocas
e com carícias, beijos me seduz...

Mas desejo que chegue a Primavera
e termine, por fim, a minha espera,    ?
quando terei o teu olhar de luz!

Fonte:
Filemon Francisco Martins. Anseios do coração. São Paulo: Scortecci, 2011.
Livro enviado pelo poeta.

Rachel de Queiroz (Neves de Antanho)

    

O homem da repartição pediu um retratinho “cinco por sete’’; quem sabe haveria algum que ainda servisse dentro da velha caixa de fotografias, sobras de outros passaportes! Não, não havia. Só um, manchado e tão feio que nem a necessidade obrigaria a gente a usá-lo.

E, enquanto se procura, vão-se olhando os outros retratos, e no fim se percorre, de um em um, todo o resto da coleção.

Quantos defuntos, meu Deus do Céu, a gente carrega dentro do seu corpo: começa com os anjinhos, de seis meses, de um ano e dois vestidos no camisolão do batizado, nuzinhos de todo ou este trajado de anjo, na túnica azul que é ver mesmo uma mortalha; tirando as asas, podia ir direto pro caixãozinho de cetim —— já está até pintado como se usava enterrar anjo naquele tempo. E esta menininha de cinco anos, com os cachos de cabelo batendo nos ombros, também já existiu, não existe mais. Sou eu não, fui eu. Tão morta e desaparecida quanto se estivesse plantada na terra debaixo de um pé de saudade, E a adolescente de treze, e a moça magra de dezoito, toda pensativa para o fotógrafo, vestido escuro e gola branca, numa simplicidade deliberada que ela supunha “ideológica”. E depois a mulher feita de vinte e três anos já sofreu e está sofrendo , e logo a amargura da mulher de vinte e cinco, e a de trinta anos ressuscitada, e a de quarenta engordando, e a de cinquenta francamente envelhecendo, com a possível e tão difícil dignidade, Serão a mesma pessoa, todas elas? — E serei eu todas elas?

O fato é que de uma em uma elas foram emergindo, tomando o lugar da antiga, mas, nem se firmavam direito, iam forçosamente cedendo o lugar à outra, à mais velha; floriam e murchavam e nem ao menos tinham morte condigna, choradas por parentes e amigos. Desapareceram simplesmente. Foram subutilizadas pela mágica do tempo, substituídas sub-repticiamente como peças de máquina que se trocam. Aumentadas, diminuídas, deformadas, descoloridas, consumidas aos pedacinhos. Boneca de massa mole em mão dura de menina.

Ou — ideia ainda mais sinistra — autofagia, canibalismo. Toda a série de meninas, adolescentes, moças e mulheres devoradas, a mais nova pela mais velha, sucessivamente, até que a morte por sua vez devore a derradeira e acaba a história?

Como compensação se dirá que o corpo muda, mas a alma é a mesma. Mas essa é que é a grande interrogação. Será a mesma?

Ninguém pode dizer se essa menina de olhos grandes sentada aos pés de sua linda mãe terá na verdade a mesma alma da senhora avó que equilibra o neto no joelho. Que é que elas têm em comum? Nem amores, nem quereres, nem preferências, nem entusiasmo. De uma em uma, à medida em que passaram, tiveram os seus pecados — mas uma não pode bater no peito pelos erros da outra ou das outras —, cada uma tinha as suas circunstâncias especiais, suas agravantes e dirimentes.

Nem sequer as lembranças são comuns a todas. Porque as poucas lembranças conservadas em comum são conservadas como histórias que ela sabe, mas não que ela sente. Sentia, sentiu, não sente mais. Ah! Lembranças. Diga a gente o que disser, o passado é substância solúvel, se dilui dentro da vida, escorre pelos buracos do tempo — águas passadas, neves de antanho.

Ah, as aflitivas incursões pela dimensão do tempo. A alma do homem devia limitar suas percepções às simples três dimensões. Bastava que lhes fosse permitido apenas o direito de ir e vir dentro do espaço físico ou geográfico.

Mas a jornada pelo tempo. Essa jornada sem parada nem retorno, cujos marcos únicos são lembranças cada vez mais apagadas, já que as outras testemunhas também caminham, também se transformam, Por que dar ao limitado, ao vulnerável, ao transitório homem, um sentido do tempo — quando ele não tem sobre o tempo nenhum comando — apenas sofre o tempo, sem defesa?

O tempo anda em nós, mas nós não andamos nele. O tempo nos gasta como lixa, nos deforma, nos diminui e nos acrescenta — e sempre maldosa, erradamente.

Aqueles olhos de trinta anos atrás, onde estão os teus olhos reluzentes, rapariga? Hoje, nas mesmas órbitas, vogam apenas dois olhos apagados, diminuídos parece que até a cor deles mudou!

E a alma, a alma? Boa ou ruim, onde está a alma de outrora? A paixão, a violência, a esperança, o desafio. A inocente arrogância. Os amores, os desamores, mudou tudo. Nem a paisagem ficou, para servir de referência. A intrusa de agora renega tudo de dantes — seja corpo, alma ou cenário.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

quarta-feira, 6 de maio de 2020

Varal de Trovas n. 260


Carolina Ramos (O Garotão)


A tarde se esvaía, quando o garotão passou pelo casal de velhos.

Aliás, velho é força de expressão. Todo mundo sabe, ou deveria saber que, velhice, na maioria das vezes, é estado de espírito — há velhos jovens e jovens velhos, tudo dependendo da disposição. No caso, seria mais exato dizer — casal de meia idade, que ainda sabia dividir os encantos vespertinos de uma caminhada a dois.

Pois é, mesmo que a tarde estivesse morrente, havia sol a pino na alma daquele garoto de camiseta ampla, bermudas largas, aba do boné cobrindo a orelha esquerda, tênis sem griffe definida e de cordões desatados.

O jovem diminui o passo ao ultrapassar o par grisalho que, ternamente abraçado, seguia o mesmo rumo.

Jogou a pergunta como quem, de improviso, atira uma bola:

— Vocês gostariam de ser jovens como eu?

Após o instante de surpresa ante a inusitada abordagem, o casal sorriu, aprovando a desenvoltura do rapaz que, embora taludo, andaria aí pelos treze ou catorze anos de idade. Por sinal, fase de transição em que os braços e as pernas crescem tanto quanto o próprio ego e as dificuldades de comunicação com os adultos mais se complicam.

— Claro, que gostaríamos de ser jovens novamente, como não?! — respondeu o caminhante, interpretando também o pensamento da mulher.

O garoto estava com a corda toda. Continuou falando:

— Sabe... no outro dia, eu estava na praia com o meu iguana. Pintou gente assim... pra ver o bichinho! Homens, mulheres, velhos, moços, todos viraram crianças!... Igualzinho ao que aconteceu quando também fui até lá empinar a minha pipa com o emblema do Santos. Era todo o mundo de nariz pra cima, doido por uma puxadinha na linha, pra ver a pipa cabecear, lá no alto, presa pelo cabresto! Legal!

Emendou o assunto:

Na aula de ontem, meu professor de português me deu uma nota vermelha... e eu avisei: — Não quero uma nota vermelha... eu quero é nota azul. Aí, ele me perguntou: — Por quê azul, Rodrigo? E então respondi que vermelho é cor de coisa errada, cor de sangue, cor de guerra, de violência... e azul é a cor mais bonita de todas, senão, o céu não seria azul! — concordam? — O professor entrou na minha, abanou a cabeça, me chamou de poeta e me deu uma nota azul, bonita pra caramba! É isso, a gente tem de lutar pelo que quer!

A esse tempo o garotão já adiantara o passo, distanciando-se, embora não o bastante que lhe impedisse de ouvir o que dizia a emocionada senhora:

— Deus te conserve essa alegria, meu filho!

— Obrigado... Tchau...

O aceno de despedida e lá se foi ele, solto nas suas largas bermudas, trauteando um ritmo qualquer, de bem com a vida e em absoluta paz com a humanidade!

Mais jovens, mais leves, o homem e a mulher de meia idade, acompanharam, com olhos carinhosos, a figura mágica daquele garoto que dobrava a esquina, desaparecendo, feliz, no turbilhão do seu tempo.

As primeiras luzes do Natal, que se avizinhava, principiavam a ser acesas.

Pairou no ar uma certeza marota: — para cumprir sua missão, o velho Noel nem sempre precisa de barbas brancas e pode até se chamar Rodrigo!

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
Livro enviado pela autora.

Luiz Damo (Trovas do Sul) VIII


Acenamos ao passado
num gesto de despedida,
o amanhã tão cobiçado
nos espera com mais vida.
- - - - - –

A luz do sol no infinito
brilha sem discriminar,
sobre o bom, sobre o maldito,
pois a meta é iluminar.
- - - - - –

A mãe seu filho defende
mesmo antes do nascimento,
quando idosa, mal entende;
por que cai no esquecimento!
- - - - - –

A morte não fora feita
para em pranto se tornar
e a vida pra ser perfeita
deve à morte germinar.
- - - - - –

Ao deixares tua terra
deixa algo na despedida,
uma mensagem sincera
de agradecimento à vida.
- - - - - –

As duras penas impostas
aos de conduta anormal,
talvez sejam as respostas
por ter praticado o mal.
- - - - - –

Castelos são metralhados
durante uma tempestade,
principalmente os telhados
se estilhaçam sem piedade.
- - - - - –

Da janela da existência
vemos o tempo soltar
um grito com insistência:
– Vou pra nunca mais voltar!
- - - - - –

Dentro das prerrogativas
que pela vida são feitas,
tem muitas alternativas,
porém poucas são perfeitas.
- - - - - –

Embora a luz da humildade
não queira nos aquecer,
procuremos na verdade
seu calor para crescer.
- - - - - –

Muita luta e persistência
tal sopro de um vendaval,
varre com tanta insistência
quem lapida o cabedal.
- - - - - –

Nada tem de tão sublime
quanto a beleza da flor,
o seu perfume suprime
o mais intrigante odor.
- - - - - –

Nunca devemos julgar
sob o prisma emocional,
pois podemos condenar,
sem o amparo racional.
- - - - - –

Nunca tente colocar
o carro à frente dos bois,
pra não ter que suportar
uma decepção depois.
- - - - - –

O bom-senso ao ser responde
dentro do senso comum,
mas se vem, não sabe donde
e o leva a lugar nenhum…
- - - - - –

O que a mãe pro filho diz,
é lição alentadora.
Ele, iniciante, aprendiz,
ela eterna educadora.
- - - - - –

Os motoristas peritos
cautelosos e prudentes,
cometem menos delitos
por não serem negligentes.
- - - - - –

Pagando fora do prazo
muito além do vencimento,
pode haver juros do atraso
sem qualquer ressarcimento.
- - - - - –

Para compor uma trova
não tem limite de idade,
nós mesmos somos a prova,
basta criatividade.
- - - - - –

Pedestres e motoristas
devem andar de mãos dadas,
uns no volante, nas pistas,
outros firmes nas calçadas.
- - - - - -

Pequenas luzes dispersas
na vastidão do universo,
guias nas rotas adversas
se o caminho for perverso.
- - - - - –

Quem ama por interesse,
o amor nunca é verdadeiro,
mesmo que se parecesse
não passa de interesseiro.
- - - - - –

Quem cansado à noite deita
de manhã forte levanta
e o dia de luz se enfeita
num brilho que a vida encanta.
- - - - - –

Quem mente lama respira,
nada à verdade condiz
e acreditam ser mentira
aquilo que o falso diz.
- - - - - –

Saiba sempre ler a vida
nas linhas do cotidiano
e assim nunca seja lida
sua morte por engano.
- - - - - -

Sempre o primeiro sintoma
que a doença apresentar,
é como a flor sem aroma
muito prestes a murchar.
- - - - - –

Sobre o leito, o agonizante,
sente a morte se achegar,
sabe que a qualquer instante
seu mundo pode acabar.
- - - - - –

Tanta dor, quanta saudade,
sente aquele que ficou,
de quem foi pra eternidade
e sequer adeus deixou...
- - - - - –

Um grande passo foi dado
na busca do crescimento,
outro, mais acelerado,
visa o desenvolvimento.
- - - - - –

Vagas lembranças gravamos
de um passado tão distante,
trazer às mãos, procuramos,
velhos passos do imigrante.
- - - - - –

Verdes matas da esperança
vastos campos promissores:
tudo temos como herança
dos nossos antecessores.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Lygia Fagundes Telles (Um Chá Bem Forte e Três Xícaras)



A borboleta pousou primeiramente na haste de uma folha de roseira que vergou de leve. Em seguida, voou até a rosa e fincou as patas dianteiras na borda das pétalas. Juntou as asas que se colaram palpitantes. Desenrolou a tromba. E inclinando o corpo para a frente, num movimento de seta, afundou a tromba no âmago da flor.

Maria Camila chegou a estender a mão para prendê-la pelas asas. Não completou o gesto. Entrelaçou novamente as mãos no regaço e ficou olhando. Era uma borboleta amarela, com um fino friso negro debruando-lhe as asas.

— Deve ser uma borboleta jovem — disse Maria Camila.

— Jovem? — repetiu a mulher debruçada na janela que dava para o jardim.

— Veja, as asas ainda estão intactas. E está sugando com tamanha força… Haverá tanto suco assim?

— Essa rosa abriu ontem cedo, a senhora lembra? E já está murchando — disse a mulher prendendo com um alfinete a alça do avental.

Maria Camila voltou-se para a janela. Estava sentada numa cadeira de vime, entre os dois canteiros do jardim. No céu azul-claro, as nuvens iam tomando uma coloração rosada. Havia uma poeira de ouro em suspensão no ar.

— Você ainda não pregou essa alça, Matilde?

— Não sei onde o botão foi parar.

— Pegue outro na minha caixa. Mas agora não! — pediu ela ao ver que a empregada já se dispunha a voltar para o interior da casa. Baixou o olhar até a roseira. — A gente vai clareando à medida que envelhece mas as rosas vermelhas vão escurecendo, veja, ela está quase preta.

— E essa borboleta ainda…

— Deixa — atalhou Maria Camila. Uniu as mãos espalmadas no mesmo movimento com que a borboleta unira as asas. Suas mãos tremiam. — Há de ver que a rosa está feliz por ter sido escolhida.

— Mas desse jeito ela vai morrer mais depressa.

— É melhor deixar.

A empregada passou lentamente a ponta do avental no peitoril da janela. Acompanhou com o olhar uma andorinha que cruzou o jardim num voo raso e desapareceu atrás do muro da casa vizinha. Suspirou.

— Acho que essa borboleta já esteve ontem por aqui, a senhora não viu?

Maria Camila concordou com um leve movimento de cabeça. Examinou com espanto as próprias mãos cheias de sardas.

— É a mesma.

— Acostumou — disse a mulher num tom indiferente. Fixou o olhar vadio nos ombros estreitos da patroa. — A senhora não quer que traga o chá?

— Estou esperando a menina.

— Mas a que horas ela ficou de aparecer?

— Às cinco — disse Maria Camila apertando os olhos. Inclinou-se para o relógio-pulseira. E escondeu no regaço as mãos fechadas. — Às cinco em ponto.

Foi emergindo do silêncio da tarde o zunido poderoso de uma abelha. O riso de uma criança explodiu tão próximo que pareceu brotar de dentro do canteiro.

— Essa menina… — E a empregada fez uma pausa para ajustar melhor o pente nos cabelos grisalhos: — Eu conheço?

— Não, não conhece.

— Quantos anos ela tem?

— Uns dezoito.

— Mas então não é menina!

Maria Camila fixou no céu o olhar perplexo. Voltou a examinar o relógio-pulseira. E cruzou os braços tentando dominar o tremor das mãos.

— Desde ontem ela já rondava por aqui. Cismou com essa rosa, tinha que ser essa rosa.

— Trabalhei na casa de um padre que tinha um canteiro só de roseiras brancas. Como duravam aquelas rosas!

Por um breve instante Maria Camila fixou-se de novo na borboleta. Teve uma expressão de repugnância.

— Chega a ser obsceno…

— Mas é sabido que as vermelhas têm mais perfume — prosseguiu a empregada apoiando-se nos cotovelos.

Duas crianças atravessaram a rua aos gritos. A borboleta recolheu precipitadamente a tromba e fugiu num voo atarantado. Uma pétala desprendeu-se da corola e foi pousar na relva. Outra pétala desprendeu-se em seguida e desenhando um giro breve, caiu num tufo de violetas. Maria Camila estendeu as mãos até a corola da flor. Não chegou a tocá-la. Recolheu as mãos e ficou olhando para as veias intumescidas com a mesma expressão com que olhara para a rosa.

— Ela é conhecida do doutor?

— Quem, Matilde?

— Essa moça que vem tomar chá…

— Trabalham juntos — disse Maria Camila passando nervosamente a ponta do dedo sobre a rede de veias. — Ela está fazendo um estágio no laboratório.

— Estágio?

— Sim, estágio.

A mulher ficou pensativa. Pôs-se a coçar o braço.

— E a senhora conhece ela?

— Já vi de longe.

— É bonita?

— Não sei, Matilde, não sei.

— Estágio — repetiu a empregada. — Então é essa que às vezes telefona pra ele.

Alguém iniciou na vizinhança um exercício de piano. O exercício era elementar e tocado sem vontade.

— Deve ser — sussurrou Maria Camila apanhando a pétala que caíra na relva. Levou-a aos lábios que estavam lívidos. — Deve ser.

— Hoje cedo ela telefonou, não perguntei quem era porque o doutor não quer mais que a gente pergunte. Mas reconheci a voz, só podia ser ela.

— São muito amigos. Os velhos, os mais velhos gostam da companhia dos jovens — acrescentou a mulher dilacerando a pétala entre os dedos. Fez um gesto brusco. — Esse menino era melhor no violino, não era?

A empregada fungou, impaciente.

— Nem no violino! A gente ficava com dor de cabeça quando ele começava com aquela atormentação. Diz que a mãe cismou que ele tem que tocar alguma coisa…

— Quem foi que disse?

— A Anita, que trabalha lá. Diz que a mãe fica o dia inteiro atrás dele, dando castigo se ele não estuda. São estrangeiros.

Maria Camila olhou furtivamente o relógio. Abriu e fechou as mãos num movimento exasperado. Manteve-as fechadas.

— Ele tocava melhor violino.

A mulher fez uma careta. E ficou seguindo com o olhar gelado uma adolescente que passava na calçada. Franziu a cara como se enfrentasse o sol.

— Como é que ela se chama? Essa do chá…

O menino interrompeu o exercício. O zunido da abelha voltou mais nítido, fechando o círculo em redor de um único ponto. Maria Camila respirou com esforço.

— Acho que estou gripada.

— Gripada? — E a mulher apoiou o queixo nas mãos. — A senhora está com os olhos inchados. Quer que eu vá buscar uma aspirina?

— Não, não é preciso — disse Maria Camila movendo a cabeça num ritmo fatigado. Encarou a empregada: — Não vai mesmo pregar esse botão? Não vai?

— Mas se não sei dele…

— Pegue um na minha caixa, já disse.

A mulher empertigou-se com solenidade. Passou ainda a ponta do avental na janela, a fisionomia concentrada. Chegou a abrir a boca. E enveredou para o interior da casa.

Maria Camila relaxou a posição tensa. Olhou o relógio, sacudiu a cabeça e fechou com força os olhos cheios de lágrimas. “Que é que eu faço agora?”, murmurou inclinando-se para a rosa. “Eu gostaria que você me dissesse o que é que eu devo fazer!…” Apoiou a nuca no espaldar da cadeira. “Augusto, Augusto, me diga depressa o que é que eu faço! Me diga!…”

A janela abriu-se. A empregada estendeu o braço num gesto digno. A voz saiu sombria.

— Não achei botão igual. Posso pregar este amarelo?

Maria Camila tirou do bolso do casaco o estojo de pó. Examinou-se ao espelho. Consertou as sobrancelhas. Umedeceu com a ponta da língua os lábios ressequidos e fechou o estojo. Ficou com ele apertado entre as mãos. Voltou-se para a janela.

— Pregue esse mesmo.

A mulher vacilava, rodando o botão entre os dedos.

— É o mais parecido que achei.

— Está bem, está bem — repetiu a outra reabrindo o estojo. Passou a esponja em torno dos olhos. Examinou as mãos. — Veja, Matilde, minhas mãos estão ficando da cor da tarde, tudo nesta hora vai ficando rosado…

— O céu parece brasa, que bonito!

— A gente vai ficando rosada também — disse atirando a cabeça para trás. Expôs a face à luz incendiada do crepúsculo. E riu de repente: — Acho a vida tão maravilhosa!

— Maravilhosa?

O menino parou de tocar. Maria Camila ficou alerta, os olhos brilhantes, as narinas acesas. Olhou para o relógio. Falou com energia.

— Assim que a moça chegar, sirva o chá aqui mesmo, faça um chá bem forte. E traga três xícaras.

— Mas se é só a senhora e ela…

— O doutor pode aparecer de surpresa, é quase certo que ele apareça — acrescentou a mulher limpando do vestido os pedaços da pétala dilacerada que ficara por entre as pregas da saia. Levantou-se. Respirava ofegante. — Quero os guardanapos novos, não vá esquecer, hein? Os novos.

Passos ressoaram na calçada. Quando ficaram mais próximos, a empregada pôs-se na ponta dos pés, tentando ver além do muro da casa vizinha:

— Deve ser ela… É ela! — sussurrou excitadamente. — É ela!

Maria Camila levantou a cabeça. E caminhou decidida em direção ao portão.

Fonte:
Lygia Fagundes Telles. Antes do Baile Verde. 1970.

terça-feira, 5 de maio de 2020

Varal de Trovas n. 259


A. A. de Assis (O Menino que Nasceu Voando)


Que pena que a memória é curta e o descapricho é grande. Aconteceu muita coisa importante em Maringá ao longo dos 65 em que aqui estou. Os fatos ficaram na lembrança, porém sem anotações quanto a determinados detalhes.

Por exemplo: a história de um menino que nasceu nas nuvens, dentro de um avião. Nos poucos registros a respeito, a primeira divergência é sobre a data: uns dizem que foi no dia 19 de julho de 1957 (data que me parece mais provável), outros falam em 10 de maio de 1958.

A população ouviu pelo rádio a notícia de que um avião da Vasp estava se aproximando de Maringá trazendo a bordo uma cena de cinema: uma jovem senhora entrara em trabalho de parto e precisou ser socorrida pelas aeromoças, que improvisaram algo parecido com cama no corredor da aeronave. Era um daqueles velhos e valentes Douglas DC-3, bimotor que prestou preciosos serviços aos nossos pioneiros.

Correria louca na cidade: uma ambulância com a sirene aberta abrindo caminho na Avenida Brasil. Radialistas, jornalistas, fotógrafos em disparada para não perder o furo de reportagem (televisão ainda não havia por aqui). Curiosos chegando de carro, de moto, de bicicleta, a pé. De repente o antigo aeroporto Gastão Vidigal foi tomado por uma enorme multidão.

Eu lá no meio, junto com o Manuel Tavares (diretor de “A Tribuna de Maringá”) e o fotógrafo Edgar Taborianski, já ensaiando a bela manchete em oito colunas para a edição do dia seguinte. “O menino que nasceu voando”.

O comandante do avião, bastante emocionado, ia informando ao pessoal de terra (creio que só um rapaz que cuidava do aeroporto), sobre o andamento da emergência. Pedia que a ambulância se postasse perto da pista de pouso e que os médicos e enfermeiras ficassem prontos para um procedimento imediato.

Não deu tempo. O bebê veio à luz dentro da aeronave, antes da aterrissagem, com a corajosa e eficiente ajuda das comissárias de bordo e o aplauso dos passageiros.

A história virou notícia nacional. O menino, que já nasceu famoso, foi registrado e batizado em Maringá, com um nome bem adequado: Miguel Vaspeano. Miguel por haver nascido voando, como um anjo; Vaspeano, como homenagem à Vasp, que lhe serviu de maternidade. Informou-se depois que a direção da empresa considerou tão importante o evento, que estaria até disposta a patrocinar os estudos do garoto até a universidade.

Mas veja como o destino às vezes surpreende. Miguel Vaspeano Lepeco fez carreira como piloto de táxi aéreo, voou durante 25 anos e terminou a biografia do mesmo modo como começou: morreu num acidente de avião, aos 52 anos, nas proximidades de Manaus, no dia 13 de maio de 2010. Ele pilotava o avião Sêneca prefixo PT JUV.

Se não há, deveria haver em Maringá uma Rua Miguel Vaspeano.

(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 16-4-2020)

Fonte:
Crônica enviada pelo autor.

Geraldo Pimenta de Moraes (Poemas Escolhidos)


DOCE INSTANTE...

Quantas vezes se busca pela vida
uma alegria, um bem, uma ventura,
sem nada achar-se, em luta estremecida,
vendo aumentar-se, sempre, a nossa agrura.

E, às vezes, num instante, sem corrida,
sem luta, sem espera e sem loucura,
ditosa e risonha, alma embevecida,
a gente tudo encontra, sem procura.

Que alegria de nós, então, se expande,
com doçura, através de um longo beijo,
num doce instante, que se faz bem grande!

E assim, a gente, em tão feliz ensejo,
recebe, palpitante, alma fagueira,
um Bem, que durar pode a vida inteira!...
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ENQUANTO ALGUNS...

Enquanto alguns batalham, sem temor,
com alma, com fervor e com respeito,
buscando um mundo bom e mais perfeito,
um mundo cheio de pureza e amor...

Enquanto alguns, com valentia e ardor,
se esforçam, procurando dar um jeito
de eliminar do mundo o desrespeito,
de eliminar do mundo a guerra e a dor...

Enquanto alguns, com seu amor profundo,
fraternidade buscam, neste mundo,
sofrendo, embora, todo escárnio e apodo:

– São muitos os que, em gesto furibundo,
buscam, com negro afinco e vil denodo,
fazer do mundo um mar de lama e lodo!
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FRUSTRAÇÃO

Pela vida alongando, um dia, os passos,
parti, confiante, austero e com ardor,
buscando, à minha frente, os róseos laços,
os róseos laços de um sublime amor...

E, em meus caminhos, só tive embaraços,
espinhos encontrando, em vez de flor...
— Fui enfrentando, assim, negros espaços,
negros espaços de tristeza e dor!...

E hoje, cansado, em minha mente, à toa,
eu sinto a imensa angústia, que povoa
toda a distância dos meus tempos idos,..

E a ferir-me a lembrança ainda vive
um punhado de sonhos vãos, perdidos,
do que eu quis ter na vida, mas não tive!
****************************************

NEM EM SONHO...

Eu sonhava contigo... Estavas linda!
Eras a santa imagem do pecado,
com atração tão doce, tão infinda,
que até fiquei pateta e deslumbrado.

E assim, eu disse a ti: — Sejas bem-vinda
a mim, que por ti vivo apaixonado!
E, como alguém que sai de uma berlinda,
sorridente, avancei para o teu lado...

E quando, todo amor, todo desejo,
quando faminto e louco por teu beijo,
quando, enfim, eu de ti me aproximei,

no instante do teu beijo então gozar,
não sei por que, meu Deus, eu acordei...
— Nem em sonho eu consigo te beijar!...
****************************************

O ZÉ TORRESMO

Era um pobre coitado o Zé Torresmo,
tão caolho, tão magro, tão sem trato,
que acreditava até, vivendo a esmo,
estar sobrando neste mundo ingrato.

Sem ter da vida um gesto bom e grato,
por todos desprezado, o Zé Torresmo,
esboçando na mente o seu retrato,
como que perguntava: — "Existo mesmo?..

Será que a minha vida ao mundo importa?…”
E assim, o Zé Torresmo, alma inocente,
fitava o céu, com sua vista torta,

como a dizer a Deus, humildemente,
num gesto triste, pela dor ferido:
"Perdão, Senhor, por eu haver nascido".
****************************************

SONETO SEM FIM...

Um soneto eu tentava, então, fazer,
todo inspirado num sublime rosto,
num lindo rosto, lindo de morrer,
— legítima expressão de encanto e gosto...

E esse rosto, que dava gosto ver,
queria ver num meu soneto posto,
quando acontece, então, me aparecer
o anjo divino — a dona desse rosto...

E eis que esse ente querido, um riso aberto,
de mim se aproximou, olhar esperto,
quando eu já tentava o último terceto...

Trêfega, esbelta, alegre e com meiguice,
"abraça-me, vovô!" — ela me disse,
interrompendo, assim, o meu soneto...
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SUBLIME PERFEIÇÃO...

Dos céus merece, como prêmio, a Palma
do Amor, quem nesta vida enfrenta escolhos,
de alegria vestindo, à beira da alma,
toda angústia que vem de seus refolhos.

E assim agindo, com bondade e calma,
sorrir procura para os seus abrolhos.
E os infernos de dor, que esconde na alma,
vai transformando em céu de amor, nos olhos.

É perfeito e se torna quase um santo,
pois sabe disfarçar seu desencanto,
quem tem gestos assim puros e sábios

de afogar sua angústia, seu desgosto,
dentro do amor a lhe florir no rosto,
com um sorriso a lhe bailar nos lábios!
****************************************

VIBRAÇÃO...

E deixa que minha alma, então contente,
sorrindo vibre, no êxtase do beijo
que, para festa desse meu desejo,
teus lábios hão de dar-me, ardentemente!

Todo o meu ser há de tremer, fremente,
ante o prazer infindo, que antevejo,
e em cujo doce e tão sublime ensejo,
hei de sorrir feliz, gostosamente!

De Cupido no Altar, então faremos
as núpcias desse amor sensacional…
e o grito do prazer, juntos, daremos,

como se fora a prece conjugal...
Enfim, nós ambos, eu e tu, seremos
do mundo inteiro o mais feliz casal!

Fonte:
Aparício Fernandes (org.). Anuário de Poetas do Brasil – Volume 4. Rio de Janeiro: Folha Carioca, 1979.

Irmãos Grimm (O Lobo e a Raposa)


Houve, uma vez, um lobo que tinha em sua companhia a raposa, e a coitada da raposa tinha de fazer tudo o que ele queria, pois era mais fraca, por isso, ficaria muito alegre se pudesse livrar-se de tal patrão.

Certo dia, em que estavam atravessando a floresta, o lobo disse-lhe:

- Pelo ruivo, vê se me arranjas algo para comer, do contrário como-te.

A raposa respondeu:

- Conheço por aqui um sítio no qual há um casal de ovelhinhas. Se desejas, podemos apanhar uma delas.

O lobo gostou da ideia e concordou. Foram até lá e a raposa furtou a ovelhinha, entregou-a ao lobo e afastou-se.

O lobo devorou-a num abrir e fechar de olhos mas não se satisfez, queria comer também a outra e foi buscá-la. Mas foi tão desastrado que a mãe da ovelhinha percebeu-o e desandou a berrar e a balir tão fortemente, que os camponeses vieram correndo. Lá encontraram o lobo e o espancaram, tão rudemente, que o pobre ficou reduzido a lastimável estado. Mancando e uivando, conseguiu arrastar-se para junto da raposa.

- Pregaste-me uma boa peça! - disse ele - Eu quis apanhar o outro cordeirinho e vieram os camponeses, que me encheram de pancadas.

- E tu, - respondeu a raposa - por que és tão guloso?

No dia seguinte, voltaram ao campo e o lobo disse:

- Pelo ruivo, vê se me arranjas qualquer coisa para comer, do contrário como-te.

- Conheço um sitiozinho aqui por perto, cuja dona hoje à tarde vai fazer bolinhos. Se quiseres podemos ir buscar alguns.

Foram até lá e a raposa esgueirou-se em torno da casa, tanto espiou e farejou que conseguiu descobrir o prato, furtou seis bolinhos e levou-os ao lobo.

- Eis aqui o que comer! - disse, e afastou-se para os seus afazeres.

O lobo engoliu os seis bolinhos de uma vez, dizendo:

- Chegam apenas para aumentar a vontade.

Dirigiu-se à casa, puxou o prato logo de uma vez; este caiu e ficou em mil pedaços, fazendo um barulhão dos diabos. A mulher correu para ver o que acontecia e descobriu o lobo, pôs-se a gritar chamando mais gente que, sem dó nem piedade, desandou a espancar o lobo até mais não poder. Este, mancando das duas pernas, saiu gemendo e foi ter com a raposa.

- Que boa peça me pregaste! - gritou choramingando - os camponeses pegaram-me e curtiram-me a pele sem dó nem piedade!

- Mas, - respondeu a raposa - por que és tão guloso?

No terceiro dia, tendo saído juntos, o lobo arrastava-se penosamente, assim mesmo disse:

- Pelo ruivo, vê se me arranjas qualquer coisa para comer, do contrário como-te.

A raposa respondeu:

- Conheço por aqui um homem que matou uma vaca e guardou a carne salgada dentro de um barril, na adega. Vamos buscá-la.

- Sim, - disse o lobo - mas eu quero ir junto contigo para que me ajudes, do contrário não poderei fugir.

- Como quiseres! - disse a raposa.

Foi mostrando-lhe o caminho e as passagens ocultas que por fim os levaram à adega. Havia lá grande quantidade de carne, e o lobo, esfaimado, atirou-se imediatamente a ela, pensando: "Não largarei tão cedo!"

A raposa também comia a valer, mas não deixava de olhar em volta, correndo de quando em quando para o buraco pelo qual haviam entrado a ver se estava ainda bastante delgada para passar por ele. O lobo, intrigado, perguntou-lhe:

- Explica-me, cara raposa, por que é que corres de cá para lá e pulas para dentro e para fora?

- Tenho, naturalmente, de espiar se vem alguém! - respondeu a espertalhona. - Mas aconselho-te a não comer demais.

- Ora, - disse o lobo - não sairei daqui enquanto não esvaziar o barril.

Nesse ponto, o camponês, que ouvira os saltos da raposa, desceu à adega, assim que o viu, a raposa deu um pulo para fora do buraco. O lobo quis fazer o mesmo, mas tanto se empanturrara que seu ventre enorme não conseguiu passar pelo buraco e ficou lá entalado.

Então o camponês pegou um pau e bateu-lhe tanto que o matou. A raposa, porém, fugiu para a floresta, muito feliz por ter-se livrado finalmente daquele glutão.

Fonte:
Contos de Grimm