sábado, 18 de julho de 2020

Varal de Trovas n. 324


Stanislaw Ponte Preta (O Leitão de Santo Antônio)


O vigário rosado, gordo e satisfeito, queridíssimo dos paroquianos daquela cidadezinha, não teria maiores problemas para pastorar suas ovelhas, não fora o mistério do cofre de Santo Antônio. Era um povo quieto, sem vícios, cidade sem fofocas, salvo as pequeninas, entre comadres. E o bom padre controlava a coisa, ouvindo uma, perdoando outra, em nome de Deus.

Mas havia o mistério do cofre de Santo Antônio!

Tudo começou no dia em que o padre resolveu colocar, ele mesmo, uma notinha de vinte cruzeiros, novinha em folha, dessas que saem logo depois de uma revolução, em emissão especial para pagar as despesas democráticas. O padre notou que seus paroquianos não contribuíam muito para o cofre que ficava ao pé da imagem de Santo Antônio e então tratou de colocar ali a nota de vinte cruzeiros, na base do chamariz. Admitia a possibilidade de os fiéis, ao verem a contribuição "espontânea", contribuírem também.

E qual não foi a sua preocupação no dia seguinte, ao recolher as contribuições nos diversos cofres da igreja, notar que os vinte cruzeiros tinham ido pra cucuia? Alguém (e não fora Santo Antônio, evidentemente) passara no cofre antes do padre.

Aquilo era grave. Desde que fora designado para aquela paróquia, nunca soubera de um caso de roubo, em toda a cidade. Pelo contrário, a população orgulhava-se de dormir sem trancas. E agora surgia aquele problema. O cofre de Santo Antônio era o que ficava mais perto da porta e devia ser esta a causa de estar sempre vazio. O ladrão se viciara em roubá-lo. Devia estar fazendo isto há muito tempo, o que explicava a falta de óbolos, que o padre não sabia roubados até o dia em que resolveu incentivar os fiéis com a sua própria notinha de vinte.

Naquele domingo, preocupado com as consequências de seu sermão, o padre andava de um lado para outro, na sacristia. Tinha de arranjar um jeito de avisar ao ladrão de que já era senhor de suas atividades, mas não devia magoar o povo com a notícia de que, na comunidade, havia um gatuno, isto poderia indignar de tal maneira a todos, que a vida pacata da cidadezinha ficaria comprometida pela indignação dos "sherlocks", pois é sabido que de médico e louco (e detetive) todos nós temos um pouco.

O padre fez o sinal-da-cruz e atravessou o átrio para dizer sua missa. Já tinha tudo planejado. Na hora do sermão, pigarreou e contou que Santo Antônio lhe aparecera em sonho, para agradecer a preferência de certo cristão daquela cidade, que sempre que podia deixava uma esmola gorda para os pobres e ainda "limpava" o cofre, possivelmente em sinal de contrição.

O sermão acabou e ninguém notou que o verbo "limpar" tinha sido usado com segundas intenções, mas o padre tinha certeza de que o ladrão se mancara. Mais cedo ou mais tarde viria contrito confessar-se. E — para reforçar sua tese — naquela tarde o cofre de Santo Antônio estava cheio de moedinhas.

Passaram-se alguns dias. Certa manhã o padre viu chegar o velho que tomava conta da estação. Era um negro forte, de cabelo grisalho, muito tranquilo até a hora de largar o serviço, ocasião em que entrava na tendinha e enchia a cara.

O negro chegou amparando uma bruta bandeja. Parou na frente do padre e explicou:

— Seu padre, eu também andei sonhando com Santo Antônio.

— Não me diga! — exclamou o padre, fingindo estranheza, mas já certo que aquele era o ladrão, com remorsos.

— Mas é verdade. Sonhei com Santo Antônio e soube que o santo anda com vontade de comer um leitãozinho. Eu estava engordando este aqui para o meu aniversário. Ele já está gordo e eu já tenho idade bastante para não comemorar mais nada.

Dito o quê, descobriu a bandeja e apareceu o mais apetitoso dos leitõezinhos, assado em forno de lenha. O padre sentiu o cheiro gostoso do seu prato preferido. Mas aguentou firme e disse pro preto:

— Deixa a bandeja aí na sacristia que eu entrego o leitão pro santo.

O bom ladrão obedeceu. Deixou a bandeja e voltou para casa de alma leve. Mas o padre também era um excelente sujeito. Minutos depois, o menino que fazia às vezes do sacristão na igreja chegava à porta com um recado do padre:

— Seu vigário mandou dizer — falou o moleque — que Santo Antônio está de dieta e que é pro sinhô ir comer o leitãozinho com ele, logo mais.

Foi um santo jantar.

Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Dois amigos e um chato. Ed. Moderna, 1996

Hilda Persiani (Poemas Avulsos) 2


A MOCIDADE

Que beleza é a mocidade!
Ser jovem é estar de bem com a vida,
É não saber ainda o que saudade
E desfrutar a estrada escolhida ...

É como a luz rompendo a madrugada,
Eu a comparo ao alvorecer,
Ter pela frente toda uma caminhada,
Tudo é novidade para conhecer.

O caminho de cada um é desconhecido,
Não são iguais os destinos da jornada,
Cada qual segue em frente convencido

Que se preparou para o que vier depois
E procura encontrar a pessoa amada,
Para a caminhada percorrer a dois .
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AMOR-PERFEITO


Este amor-perfeito, murcho, descorado
Pelo tempo e pelos beijos que lhe dei,
Num dia chuvoso e frio me foi dado
Pelas mãos de quem eu muito amei.

O dia era cinzento, o chão molhado,
Fitando-me com ternura ele me ofereceu,
Envolto em celofane e fio dourado,
Um amor-perfeito e o carinho seu.

Beijei a flor e guardei-a docemente
Com ternura e carinho de quem ama
E a vida foi decorrendo normalmente ...

Mas o tempo que caminha acelerado,
Do nosso amor foi apagando a chama
E só restou o amor-perfeito desbotado!…
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DESPEDIDA


Ao meu marido,Clênio
* 12-03-1923 - 14-10-2007


Foi muito triste a nossa despedida,
A nossa vida decorria alegre e feliz.
Não sei porque, são coisas da vida
Ou certamente Deus assim o quis;

Aconteceu tudo tão rápido, tão ligeiro,
Você me precedeu da vida na partida,
Foi de surpresa, perdi meu companheiro,
Agora, fiquei só e para sempre entristecida.

Você levou consigo o meu coração.
Ficarei um pouco mais, depois irei também...
Meus lábios estarão sempre em oração,

Meu dia chegará , então juntos novamente,
De mãos dadas, alegres e felizes no além,
Ao seu lado estarei sorrindo de contente!...
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ENVELHECER CONSCIENTEMENTE


Mesmo depois de tantos anos ter vivido,
De haver perdido os traços, talvez belos,
No espelho os procuro, não consigo vê-los,
Sou feliz por eles terem existido...

O tempo, nosso semblante desfigura,
Recompensa-nos com traços de ternura.
A alma torna-se mais bela, mais pura
E nos deixa mais firmes, mais seguras.

A tolerância toma lugar da presunção,
O interior é mais tranquilo, temos doçura,
A empáfia deu lugar à brandura.

Nossos comentários vêm do coração.
Quando sorrimos, nosso sorriso é franco,
Não nos aflige nosso cabelo branco.
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LEMBRANÇAS


Quando à tardinha me ponho a cismar,
Vêm-me á cabeça muita lembrança.
Sentada na rede a me embalar,
Recordo o meu tempo de criança...

Minhas bonecas, meus brinquedos,
Pular amarelinha na calçada,
As brincadeiras de roda, os folguedos,
Esconde, esconde, com a meninada.

De repente, voltando ao presente,
O coração arfando de saudade,
Ao em vez de ficar triste, fico contente

Por chegar à longevidade
E ter ainda dentro em mim,
Tantas alegrias para recordar assim…
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MARINA


Para minha sobrinha neta

Menina-moça, olhar de candura,
Tão delicada e tão feminina,
O seu sorriso emana doçura,
Invejo sua formosura, MARINA!

É ainda o botão de uma rosa,
Meiga, delicada, franzina,
Quando a vejo bela e carinhosa,
Como a invejo, MARINA!

Quando minha alma às vezes chora
Vendo que minha vida termina,
Ao ver sua deslumbrante aurora

Bendigo sua juventude, menina;
Estou aos poucos indo embora
Mas ai! Como a invejo, MARINA!…
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MOMENTOS


Como é bom passear na carruagem
Alada do pensamento,
Recordando cada momento
Que marcou como tatuagem...

Momentos que foram vividos,
Que guardados ficaram
E que nunca serão esquecidos,
Nos corações dos que amaram.

Momentos que farão mais sentido,
Quando a velhice chegar,
Felizes dos que nos tempos ido

Guardaram no coração
Doces momentos para recordar
Os anos que jamais voltarão.

Fontes:
Carlos Leite Ribeiro. Portal CEN.
Denise Barros (org.). Sonetos Eternos: Antologia de Sonetos / Celeiro de Escritores. Santos/SP: Ed. Sucesso, 2009.

Figueiredo Pimentel (O Papagaio Encantado)


Longe, muito longe daqui, lá para as bandas onde o sol nasce, dizem que existia maravilhoso país, diferente em tudo e por tudo do nosso. Governava-o um soberano, um rei, que fez a felicidade dos seus súditos, pelos generosos dotes de coração que abrigava; pelo seu amor e respeito à Justiça, ao Direito, à Liberdade, à Igualdade e à Fraternidade; e, sobretudo pela sua grande sabedoria. Chamava-se Marval, e tinha três filhas, qual delas a mais bonita: a primeira tinha por nome Alice, – a do meio – Rosa, e a terceira, – Amanda.

Um dia ordenou-lhes o pai que elas lhe contassem todos os dias, pela manhã, o sonho que por acaso, cada uma tivesse durante a noite. As meninas receberam essa ordem com certa estranheza. Contudo, como eram muito obedientes, prometeram cumprir o que lhes era mandado.

À noite, antes de se deitarem, em conversa, começaram a discutir aquela ordem absurda e tão fora de propósito.

Dizia Alice, a mais velha:

– Estou admirada da ordem que o nosso pai nos deu, manas, tão esquisita é ela; e nem sei que farei amanhã, se acaso sonhar uma tolice, como às vezes sucede a gente sonhar. Com certeza terei pejo em narrá-la.

– Eu não, disse Rosa, não tenho vergonha alguma de meu pai, e contarei tudo, se tiver algum sonho.

– E eu, falou Amanda, a caçula, já que, é a vontade do meu pai, dir-lhe-ei tudo nem que saiba zangar-se ele depois comigo.

No dia seguinte, pela manhã, Marval mandou, dizer às moças que já estava à espera, para elas lhe contarem os seus sonhos.

As duas primeiras nada tinham sonhado, por isso nada disseram. Amanda, porém, sonhara que por aqueles dias havia de se casar com um príncipe muito lindo e muito rico, senhor de um país onde as casas eram de ouro e pedras preciosas, e que cinco reis haviam de lhe beijar a mão, achando-se entre eles seu pai.

O monarca, zangadíssimo com a filha, declarou que se ela sonhasse outra vez semelhante coisa, e tivesse coragem de lhe relatar outro sonho, assim tão soberbo, mandaria matá-la.

As duas irmãs ficaram tristes, quando souberam do sonho de Amanda e foram lhe pedir para não contar outro, que por ventura tivesse, no mesmo sentido, sendo nesse caso preferível mentir.

– Papai disse que te mandaria matar. Ora, bem sabes que palavra de rei não volta atrás. Por isso acho bom nada mais lhe narrares.

No dia seguinte a menina quis enganá-lo. Mas como não sabia mentir, chegou-se para ele chorando muito, e lhe contou entre lágrimas, o sonho da véspera, que se repetira naquela noite.

Marval enfureceu-se com a desobediência da filha, pensando, que ela estava procedendo propositadamente. Mandou, pois, que os criados a levassem para uma floresta distante, e a matassem; trazendo-lhe o dedo mindinho, como prova de sua morte.

As irmãs, tendo notícia da sentença, de joelhos, pediram ao rei que a perdoasse, pois se Amanda havia contado o sonho, foi porque lhe tinha sido ordenado; que elas duas lhe haviam aconselhado não repetir a narração, mas, como era muito verdadeira, não quis mentir, e confiara na bondade do pai para absolvê-la.

– Antes papai a mande presa para a torre do castelo, opinou Rosa, sem poder sair, senão uma vez por ano.

Continuando a suplicar o perdão da irmã, ou, pelo menos, a comutação da pena, Rosa e Alice inventaram mil castigos. O rei, todavia, foi inflexível; não revogou a ordem, e as meninas saíram dali com o coração cheio de dor, pela próxima perda da irmãzinha que tanto estimavam.

No outro dia, assim que rompeu a madrugada, a princesa Amanda partiu para a Floresta Negra, toda de luto, com um véu preto, que lhe cobria completamente o rosto, a ponto de torná-la desconhecida.

Ordenara-lhe Marval o uso desse véu, para que a corte ignorasse o fato, e não começasse a propalar a sua maldade. Os próprios criados de confiança, que foram designados para matar a princesa, não sabiam quem era aquela moça toda de preto, com um véu tão espesso, que não deixava ver sequer a sua fisionomia.

Antes de chegarem à Floresta Negra, os emissários reais encontraram uma velhinha, uma mendiga, que todos os dias ia receber esmolas que Amanda lhe dava. Essa velhinha, que era adivinha, ao ver passar aquela gente tão cedo, ainda de madrugada, conheceu logo a princesa, e gritou:

– Adeus, princesa Amanda, minha benfeitora, filha do muito poderoso rei Marval! Desejo-lhe muitas venturas. Vá depressa, que seu noivo está à sua espera!...

A moça, que ia muito triste, pensando na sua sorte desgraçada, mais triste ficou, por se lembrar que a pobrezinha ia passar sem esmolas.

Não obstante não poder parar, nem um segundo, sob hipótese alguma, a carruagem que ia, teve ela ainda tempo de atirar uma moedinha, que se achava acaso no bolso do vestido.

A velha, compreendendo o bom coração da menina, exclamou:

– Deus nunca desampara os bons, princesa Amanda! Nossa Senhora há de acompanhá-la e protegê-la!

Ora, entre os criados que haviam ido levar a princesa, para matá-la na Floresta Negra, achava-se um, de nome João, já velho, que a tinha criado. Sabendo, pelas palavras da mendiga, que a moça a quem levavam para assassinar tão cruelmente, ser a sua querida, a sua extremosa, sua dileta filhinha, – como ele chamava e considerava a princesa, – protestou logo no não cumprimento da ordem real, sucedesse o que sucedesse.

Firme nesse propósito, logo que o cortejo chegou à entrada da Floresta Negra, João disse aos seus companheiros que fora ele o encarregado de matar a moça; e por isso que o esperassem ali, pois não precisava de ajudante para tal serviço. Levou a menina para longe, no meio da mata, e como estimava muito a princesinha teve pena de matá-la. Trouxe, todavia, para o rei não desconfiar, o dedo mínimo de Amanda como, prova de sua morte, e em cumprimento à ordem que recebera.

Assim que a jovem Amanda se viu só, principiou a chorar de medo, porque ouvira dizer que aquela floresta era mal-assombrada. Começou a andar; e, andando muito, já bastante fatigada, chegou a um buraco.

Aproximou-se dele, e assim que transpôs a entrada, percebeu que quanto mais caminhava, tanto mais largo se tornava ele, do mesmo modo que o terreno mais pedregoso e cheio de raízes, se cobria de relva fina e macia, que seus pés cansados pisavam.

Prosseguindo sempre, deparou-se-lhe deslumbrante palácio todo de mármore cor-de-rosa, e janelas e portas de ouro. Sentindo-se bem, ficou residindo aí, satisfeita, almoçando, jantando e ceando, sem no entanto ver pessoa alguma, o que de algum modo a impressionava.

A única coisa que quebrava o silêncio desse palácio, era um papagaio, que falava dentro de um quarto fechado e cujas portas jamais se abriam.
***

Havia algum tempo já que Amanda ali se achava, vivendo, cada vez mais serena e feliz, apenas muitíssimo triste, quando um dia, lhe apareceu um moço, formoso, ricamente vestido. Entregou-lhe ele a chave do quarto, dizendo que podia abri-lo, o que fez sem mais demora.

Foi um deslumbramento. Ficou maravilhada de ver papagaio tão grande, tão bonito, de asas tão douradas que parecia o sol, e tendo na cabeça um diamante de inexcedível preço, e lindo, lindíssimo, sem igual no mundo.

Ao ver aproximar-se a moça, a ave sacudiu as penas, contentíssima, e disse:

– Bons-dias, princesa Amanda, filha do rei Marval! Como vem tão bonita, tão formosa!

– Mais formoso do que eu, és tu, meu lindo papagaio dourado...

Ainda bem não havia terminado a última palavra, e o papagaio transformou-se no lindo moço que lhe tinha aparecido para lhe dar a chave do quarto. Esse moço era sua alteza o príncipe imperial Calcim, filho e herdeiro de Manarés XI, imperador da região das Pedras Raras. Fora transformado num papagaio, e deveria permanecer nesse estado até encontrar uma princesa que descobrisse o palácio subterrâneo e o desencantasse.

Assim, meses após, celebrou-se o seu casamento com Amanda, comparecendo cinco reis tributários do imperador Manarés XI, entre os quais se achava o rei Marval para beijarem a mão da noiva.

Todos os outros beijaram a mão da princesa, mas, quando chegou a vez de Marval, a nova imperatriz recusou-a.

Escandalizado com tão grave injúria, à vista dos outros reis, Marval perguntou o motivo do procedimento da princesa.

Calcim, querendo dar uma satisfação da recusa, perguntou a Amanda por que assim procedia com um rei tão ilustre e senhor de uma nação poderosa e amiga.

A moça narrou, então, a sua história, que foi ouvida por todos com a máxima atenção. Marval foi muito censurado, mas, mostrando-se arrependido, obteve o seu perdão, e viveu feliz ainda muitos anos.

Fonte:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado em 1896.

3. Concurso de Declamação Poetizar o Mundo (Resultado Final)


É com muita satisfação que anunciamos os vencedores do 3º Concurso de Declamação do Projeto "Poetizar o Mundo". Esclarecemos que as declamações apresentadas revelaram boa qualidade de interpretação. Agradecemos a participação de todos os inscritos e o apoio dos jurados.

A comissão julgadora foi composta por José Feldman, poeta trovador, organizador de concursos de trova, Marco Antonio Garbellini, diretor de teatro, ator e produtor, e Leny Mell, poeta e administradora do grupo Mell Poesias.

Os jurados analisaram todos os vídeos inscritos, focando
a) Postura cênica,
b) Imposição de voz,
c) Harmonização da palavra e gesto,
d) Efeito emocional.

Todos os poemas declamados são de autoria de Isabel Furini.
Jul Leardini recebeu o primeiro lugar por unanimidade. No segundo lugar ficou o poeta Moisés António. Duas inscritas receberam a mesma nota final, ficando Bia Tarachuka Gonçalvez e Maria Antonieta Gonzaga Teixeira no terceiro lugar.
Todos os participantes receberão certificado.
 
Apresentamos a seguir um pouco do currículo dos vencedores:

Jul Leardini
É escritor, poeta, dramaturgo e roteirista, atuando também como professor de Arte, Cinema e Teatro, adlém de ator e diretor teatral. Tem mais de 100 produções realizadas.

Moisés António
Formou-se em Letras, na Universidade Agostinho Neto de Luanda-Angola, em Lingua e Literatura em Língua Inglesa, além de outros cursos de curta e longa duração. Exerce trabalhos autônomos de Tradução de livros, capas e diagramação, além de aulas em grupos ou particulares de Inglês.

Bia Tarachuka Gonçalves
Estudou Teatro na instituição de ensino Teatro Lala Schneider, estudou Produção Cênica na instituição de ensino UFPR - Universidade Federal do Paraná, e fez curso de Interior design na instituição de ensino Centro Europeu.

Maria Antonieta Gonzaga Teixeira
É poeta e artista. Graduada em Pedagogia e Pós-Graduada em Psicopedagogia e Didática. Em 2014, publicou o livro Dos Pequizeiros às Araucárias, em 2015. Um poema de sua autoria recebeu Menção Especial do Jurado no Salão Internacional de Necochea (Buenos Aires, Argentina,2017).


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POEMAS VENCEDORES


 

Poema declamado por Jul Leardini:

DIANTE DA SOLIDÃO E DO VAZIO
 

Ressurgem incômodas lembranças
memórias enterradas em gavetas de madeira
com sete fechaduras
memórias que acordam
e realizam inventários detalhados
ou permanecem escondidas entre tímidos sorrisos
é o poder da solidão

a solidão abre gavetas mentais escondidas
e ficamos aterrorizados
diante das vozes dissonantes do passado
diante do medo, da culpa e do remorso
perguntando se poderíamos
ter sido melhores do que somos ou piores ...

o arpão da memória nos machuca
e ficamos sozinhos como uma gárgula no telhado
sozinhos como o santo e o condenado
sozinhos com nossas realizações e fracassos
com nossos sonhos despedaçados
com o peso de nossas escolhas
com nossos pavores imaginários

a civilização que fingia ser poderosa
está a poucos passos do desmoronamento
caiu o véu da grandiosidade
estamos desamparados e com as emoções
ameaçando descontrolar-se
nossos pensamentos voam sem rumo
como pássaros libertos
nossas lembranças chegam em avalanche
de imagens e de palavras

estamos sozinhos no caminho
sozinhos diante do vazio
sozinhos e clamando por Deus.

*
Moisés António declamou 

ENTRE CANÇÕES

Naveguei pelo mar da subjetividade
e encontrei ilhas
isoldas
entre as águas da incompreensão
levei barcos com amigos e canções
e entre o vinho e as canções de amor
eu vi o tédio sendo esmagado
(impiedosamente)
e percebi a morte abrupta da solidão.

*
O poema declamado por Bia Tarachuka Gonçalves

ANTIGO AMORferozes lembranças
fogem
das cavernas da noite
e açoitam a mente
como cem mil arqueiros
atacando cruelmente
com felizes imagens
de um amor já morto.
*

Maria Antonieta Gonzaga Teixeira declamou 

SERPENTINASDeixe a sua alma
dançar entre as flores
pois a beleza
amaina os rigores da vida
sonhos e amores
são serpentinas
que se desenrolam
ao longo dos anos
e depositam nas mãos
profundos oceanos
de lágrimas e de risos.

Fontes:
Texto enviado por Isabel Furini.
Revista Carlos Zemek.

sexta-feira, 17 de julho de 2020

Varal de Trovas n. 323


A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) As Fontes do Américo


Américo Dias Ferraz, eleito em 1956, foi o segundo prefeito de Maringá. Deixou para as gerações futuras uma imagem um tanto folclórica e a fama de valentão. Prefiro, porém, lembrá-lo como um homem de modesta cultura escolar mas de inteligência acima da média e ideias bastante avançadas em relação à época em que aqui viveu.

Veio de Minas quando Maringá respirava ainda o aroma da mata. Competente negociante, fez fortuna no ramo de beneficiamento de café. Graças à sua simpatia pessoal, foi chamado a disputar a prefeitura. Entrou na campanha 45 dias antes do pleito, comprou uma motoniveladora e saiu de bairro em bairro endireitando as ruas então superesburacadas. Com uma viola em punho, subia aos palanques e atraía multidões. Derrotou sem dificuldade os dois candidatos tidos antes como favoritos: O advogado Haroldo Leon Peres e o médico Gerardo Braga.

Sua administração foi bastante tumultuada. Brigou com a Companhia Melhoramentos, com a Câmara de Vereadores, fez uma série de outras estripulias e acabou perdendo o mandato antes do prazo. Mas o que desejo destacar não é nada disso.

Penso que o que de fato marcou a passagem do Américo pela prefeitura foi sua visão de futuro. A cidade era ainda pouco mais que um vilarejo, sem rua calçada, sem redes de água e esgoto, mas com todo o jeito de lugar destinado a prosperar rapidamente.

O novo prefeito tinha certeza disso e decidiu que era preciso providenciar de imediato um trabalho de embelezamento da urbe. Começou pela construção de uma fonte luminosa na Praça Raposo Tavares. Alguns criticavam, mas vinha gente de longe admirar a novidade.

“Maringá nasceu pra ser uma cabocla bonita”, dizia. E explicava: “Estamos numa localização estratégica, prontos para ser um grande polo. Isto aqui vai ser a grande loja da região. Toda a vizinhança, até as barrancas do Paranazão, virá aqui fazer suas compras, suas operações bancárias, consultar médicos, além de estudar e se divertir. Então temos que enfeitar a ‘loja’, embonitar as ruas e praças e criar o máximo possível de atrações”.

Dizia mais: “Se a cidade é bela, atrai mais gente. Se atrai mais gente, vende mais. Se vende mais, a prefeitura arrecada mais impostos e assim tem mais recursos para atender melhor a população, fazer mais pelos bairros etc. etc.” Sabia das coisas o homem.

Com esse mesmo espírito, Américo investiu seu próprio dinheiro na montagem de um estabelecimento arrojadamente moderno, o Bar Colúmbia, na Avenida Getúlio Vargas, com tudo “nos trinques do chique”, sem perder em nada para lugares que ele estava acostumado a frequentar em suas viagens ao Rio e São Paulo.

Maringá nasceu mesmo para ser uma “cabocla bonita”. Américo estava certo. Por ser bonita, chique, bem servida de atrativos modernos, ela é hoje a metrópole que a todos encanta. Precisa agora apenas manter a cosmética em dia.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 30-4-2020)
Fonte:
Texto enviado pelo autor
Desenho digital sobre foto do autor.

Cláudio de Cápua (Meu Vizinho)


Nasci na década de quarenta, tempo em que se nascia em casa. Entrei neste mundo num dia glorioso, oito de março, Dia Internacional da Mulher, no bairro de Indianópolis, na av. Inajá, hoje Lavandisca. O bairro agora tem outro nome, o do seu antigo ponto de bonde, Moema.

Lá morava gente famosa como seu Hugo Gemignani, amansador de onça das expedições do sertanista Orlando Villas--Bôas, Henrique Novak, futuro editor da Página do Livro, do Diário Popular, o locutor esportivo José Geraldo Almeida, a humorista Nhá Barbina, Narciso Vemise (O homem do tempo), o casal de artistas Rosa Maria Murtinho e Mauro Mendonça, Helene Elfride (Geórgia Gomide), Hélio Ansaldo, Alvarenga, da famosa dupla caipira, e até o gordo Jô Soares morou lá na Al. Jauaperi. Tivemos até uma rainha, a menina Sílvia, hoje soberana da Suécia, mas também tivemos um rei que era meu vizinho, "O Rei das Rosas".

Romeu Edwiges e Francelina, sua esposa, mineiros de Jacutinga. Ela, a bondade em forma de gente, ele, sempre alegre, bom papo e, talvez por não terem filhos, davam muita atenção a mim e ao meu irmão Beto.

Embora Romeu e Francelina fossem funcionários do estado de Minas, lotados num departamento na Pauliceia, tinha ele alma de artista, tocava violino, tecia tapeçaria, e, numa técnica toda sua, esculpia tipos populares de sua infância em cimento, que hoje estão ornando recantos de sua terra natal.

Seu forte, porém, era o cultivo de roseiras com dezenas de pés plantados. O jardim central tinha formoso pé de oliveira, que dava frutos, rodeada de roseiras "príncipe negro", e os canteiros laterais explodiam em rosas de cores variadas.

Um dia, Francelina, já com idade avançada, partiu para outra dimensão, deixando triste o alegre Romeu. O tempo passa e consola e ele continuou a cuidar de suas rosas. Por contingências da vida, hoje Romeu, a caminho dos noventa e sete anos, mora em Arujá entre gente amiga, que o faz muito feliz. Por solidariedade, cedeu o sobrado a uma parente, insensível, que acabou por extirpar todas as suas roseiras. E o alegre Romeu, por certo, mais uma vez, deve ter ficado tão triste como quando perdeu sua amada Francelina.

Numa viagem de navio, foi ele, certa vez, reconhecido em pleno Mare Nostro, por passageiros, como sendo o "Rei das Rosas".

Passei de táxi, num dia destes, em frente ao antigo sobrado. Fechei os olhos. O perfume das rosas, ainda na minha imaginação, impregnava o ar. Tenho certeza de que todas as gerações que viveram naquela época, como eu, quando por lá passam, sentem ainda o perfume das rosas, do "Rei das Rosas", o alegre Romeu, o meu vizinho,

(Artigo publicado em janeiro de 2007 - edição 1, republicado na Revista Santos Arte e Cultura - maio 2012, edição 33, em homenagem aos 101 anos do Rei das Rosas)

Fonte:
Cláudio de Cápua. Retalhos de Imprensa. São Paulo: EditorAção, 2020.
Livro gentilmente enviado pelo escritor.
Desenho digital sobre foto do autor por José Feldman

Sarau On Line Dia do Trovador (18 de Julho, sábado – 16hs)

Em 2020 dada a situação de pandemia pela qual o país atravessa e as medidas de controle da disseminação do Corona Vírus, realizaremos a comemoração do Dia do Trovador de forma remota (SARAU ONLINE).

Durante o mesmo, serão realizadas homenagens, será divulgado o Resultado do II Concurso de Trovas Cidade de Curitiba com leitura das trovas premiadas pelos classificados ( Se você participou do concurso tenha em mãos as trovas inscritas, assim ficará mais fácil para que leia sua trova se premiado(a))

Segue abaixo dados necessários para acesso à reunião online, bem como a programação, caso você queria fazer sua inscrição antecipada, envie-nos e-mail solicitando-a.


Dia: 18 de julho de 2020, sábado

Hora: 16 h às 18 h


Plataforma: Zoom

Link de acesso: https://bityli.com/jrZC2

ID: 996 188 6580

Senha: 5phXuY

PROGRAMAÇÃO:

1. Abertura
        (1). Andréa
        (2). Nei Garcez

2. Arlindo Tadeu Hagen (UBT-Nacional)

3. Música (por Beth Fontes)

4. Divulgação Resultado
       (1) Andréa Motta (Apresentação do Livreto)
       (2) Lilia M. M. Souza
               • Leitura das trovas premiadas pelos classificados presentes.
       (3) Andréa Motta
              • Leitura das trovas premiadas pelos classificados presentes.

5. Música ( inscrição será feita após início de Sarau)

6. Therezinha Brisolla (Homenagem)

7. Declamações de poesia – quaisquer gêneros ( inscrições será feita após início de Sarau)

8. Música ( inscrição será feita após início de Sarau)

9. Encerramento

ATENÇÃO: Não esqueça de ter em mãos as trovas inscritas no Concurso!!!! O Livreto em PDF somente será enviado por e-mail após o Sarau.

Contamos com a sua participação!

Andréa Motta
UBT-Curitiba

quinta-feira, 16 de julho de 2020

Varal de Trovas n. 322


Rafael Figueiredo (A Inveja do Poeta)


E hoje não há mendigo que eu não inveje por não ser eu.”
Álvaro de Campos – Poema Tabacaria


Desde que li os textos do Mestre Zen, nunca mais olhei da mesma forma para as cadeiras. Sempre que vejo uma penso, e meu pensamento é como uma ave de metal, fazendo estardalhaços, em uma frenética e débil tentativa de alçar voos noturnos. Barulhenta e desajeitada, com o antagonismo próprio de sua condição física, munida de asas e desprovida da leveza natural das aves, minha ave-pensar, pesa! As cadeiras não são de fato cadeiras, elas estão. Sua matéria prima foi retirada de uma árvore e seu estado atual é mera formalidade de utensílio, um dia deixará de estar, e estará outra coisa, e depois outra e outra. Tudo é transitório, nada é permanente. Sento-me a escrever pequenas futilidades no papel. É a cadeira mais útil do que eu.

Carrego minha ave-pensar por todo lado, tento inútil, dissimular seu voo desengonçado, mas sempre acabo por expor-lhe as penas, certa vez tive a certeza de ouvir a moça do caixa de um posto de gasolina dizer ao cliente: o banheiro é imaginário senhor. Aquilo fez-me rir por dias. Quando voltei ao posto na semana seguinte e perguntei a moça sobre o assunto e descobri que o banheiro estava interditado. Antes não tivesse voltado, a fantasia é muito mais interessante do que a realidade, e é certo que muitas vezes pode-se viver nela, como fazem os loucos. Mas eu não. Eu, transito entre os dois lados do rio e como de um sonho, desperto inúmeras vezes durante o mesmo dia. Pelo que vejo todos temos aves-pensar, e é certo que alguns tem galinhas, codornas, avestruzes, outros falcões ou corujas. Mas eu tive a desdita sorte de nascer com essa anormalidade que não respeita sequer as leis da física. Por este motivo as vezes sinto um enorme cansaço devido ao vai e vem de minhas ideias, confuso e vago ando entre meus pares. E reconheço em suas faces a origem de suas aves-pensar. É como um retrato, está ali estampado. Aquele tem cara de pensar coruja, aquele outro de pato.

A questão é que alguns dias atrás vi um homem com cara de pensar beija flor. Isso me emocionou, o beija flor é uma espécie muito singular, raramente se vê por ai. Um pensamento desses, quem me dera. Sua sorte está em parar, observar e decidir tudo em um espaço muito curto de tempo e logo seguir seu destino. Outra coisa muito incomum é que nunca se vê um cadáver de beija flor, eles devem ser imortais, imagino, ou apenas se esquecem de morrer. Como vivem correndo por aí esse seria um esquecimento bastante compreensível.

Esse homem, tinha o rosto iluminado e a paz de um pastor de ovelhas, é verdade que nunca conheci um, mas acredito que devem ter aquela mesma expressão, um sorriso esquecido no canto da boca, e os olhos profundos e calmos como uma tarde de outono. Nada é permanente, tudo é transitório diz o Mestre Zen. Mas o homem com alma de beija-flor permanece, e ao contrario de sua ave-pensar anda lento entre os outros que comumente desviam dele. Talvez seja pela grandeza de seu espirito, ou a luz que emana naturalmente de seu rosto. Outra coisa interessante é que sempre lhe dão dinheiro, mesmo que ele nunca peça. Que sorte tem o homem beija flor, tão tranquilo, tão vivido e ainda por cima dão-lhe dinheiro assim a toa. Que inveja sinto dele por não ser eu. Mas, contento-me com este corvo de lata batendo as asas dentro do meu peito diariamente. Ao menos posso observar o homem e vê-lo como é. Ao contrário desses ambulantes que lhe desviam o olhar dia após dia. Eles não, mas o homem-beija-flor sabe que não passamos de aspectos de uma mesma coisa, uma consequência de infinitas possibilidades combinadas nessa grande teia de acontecimentos que chamamos de vida. E por isso volto sempre ao mesmo lugar, e observo seu pensamento voando para lá e para cá, entre as ideias que desabrocham nesta época do ano.
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Rafael Figueiredo nasceu em 1985 e hoje reside na cidade de Sapiranga. Educador social. No colégio fez aulas de teatro e música, aos 14 anos escreveu suas primeiras peças para o grupo escolar de teatro. Estudou violão e piano em conservatório particular e mais tarde ingressou na universidade de música. Seu repertório autoral conta com mais de duzentas músicas compostas e arranjadas por ele, e contemplam vertentes da música brasileira como as modas de viola, a trova, a música popular, além de temas para peças de teatro.

Fonte:
Escrita Criativa

Gislaine Canales (Glosas Diversas) XVIII


RETRATOS... TEMPO...

MOTE:
Passa o tempo sem demora
e causa tantos maus tratos,
que os meus retratos de outrora
não são mais os meus retratos!
Adalberto Dutra Rezende
Cataguazes/MG, 1913 – 1999, Bandeirantes/PR


GLOSA:
Passa o tempo sem demora,
tal qual um vento bem forte,
e o que vou fazer agora
para encontrar o meu norte?

E o tempo chega inclemente
e causa tantos maus tratos,
que machuca muito a gente
com seus males imediatos!

Sigo triste, vida afora,
e constato com agonia
que os meus retratos de outrora
eram cheios de alegria!

Eu sinto que não mereço
essas imagens. São fatos,
que me cobram alto preço!
não são mais os meus retratos!
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NÃO

MOTE:
Não andem por onde andei,
nem façam nunca o que fiz,
que envelheci e cansei
sem conseguir ser feliz!
Adelmar Tavares
Recife/PE, 1888 – 1963, Rio de Janeiro/RJ


GLOSA:
Não andem por onde andei,
os caminhos são amargos
e, por eles, caminhei,
divagando, a passos largos!

Não sigam o meu exemplo,
nem façam nunca o que fiz,
hoje, o passado eu contemplo
e ele nada bom me diz!

Grande dano me causei!
Vi na procura sem fim,
que envelheci e cansei
e esqueci até de mim!

No tempo cruel, passando,
eu sou o meu próprio juiz
e continuo chorando
sem conseguir ser feliz!
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RELÓGIO

MOTE:
Relógio, fique parado!
Não deixe o tempo passar...
Eu quero ser enganado,
quando a velhice chegar!
Amália Max
Ponta Grossa/PR, 1929 – 2014


GLOSA:
Relógio, fique parado!
As horas, não marques mais,
é um pedido emocionado,
para esquecer os meus ais!

É de joelhos que lhe imploro,
não deixe o tempo passar...
Gosto de viver... Adoro!
Eu preciso me salvar!

Quero amar e ser amado!
Se o engano for de amor,
eu quero ser enganado,
pois solidão, causa dor!

E com o passar dos anos,
quero bem jovem estar,
enfrentando os desenganos
quando a velhice chegar!
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ROMANCE TERMINADO

MOTE:
Quase morro de saudade
de um romance terminado,
que o tempo só por maldade
nunca deu por acabado!
Analice Feitoza de Lima
Bom Conselho/PE, 1938 – 2012, São Paulo/SP


GLOSA:
Quase morro de saudade
dos nossos beijos de amor,
daquela felicidade,
daquele nosso fervor!

Ficou em mim a lembrança
de um romance terminado,
mas não morreu a esperança
de vê-lo recomeçado!

Chorei na realidade
o fim de um amor tão grande,
que o tempo só por maldade
mais e mais, em mim, expande!

O tempo não conseguiu,
matar meu sonho sonhado,
e esse amor que ressurgiu,
nunca deu por acabado!
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PEQUENINO PESCADOR...

MOTE:
Eu me sinto pequenino
ante a grandeza do mar,
sou pescador do destino
que inda não sabe pescar!
Delcy Canalles
Porto Alegre/RS


GLOSA:
Eu me sinto pequenino
como um grãozinho de areia,
me sinto quase um menino
que pela praia vagueia!

Me extasio ante a beleza,
ante a grandeza do mar,
afogo nele a tristeza,
e, então, me ponho a sonhar!

Me lanço a esse mar divino,
procurando nem sei quê,
sou pescador do destino
tentando pescar você!

Com mil anzóis de poesia
eu a quero conquistar,
sou pescador – fantasia,
que inda não sabe pescar!

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas. Glosas Virtuais de Trovas XXXIV. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. 2007.

Aparecido Raimundo de Souza (Comédias da Vida na Privada) Parte Um


COMO FOI MESMO QUE EU ME PERDI DE TUDO?

DA VARANDA DO MEU APARTAMENTO, olho compridamente para um ponto fixo bem longe que se descortina diante de mim. Desde aí, pareço suscitar, numa espécie de devaneio maquinal, um espaço oculto dentro de meu ser, onde alguma coisa que nele está aprisionada, quer se libertar de qualquer jeito, a ponto de me fazer alcançar, custe o que custar, o desiderato, como se fosse um sonho adormecido e não realizado que há muito desejei, em louca ambição. Não sei exatamente o quê. Alguma coisa, por certo, que me fez viajar além do descomedido, à custa de me fumegar por dentro, como um brandão que iluminasse uma áurea abandonada.

Num primeiro momento, tenho a impressão de ter acordado de um sono profundo. Melhor me expressando, voltado de um repouso recuperatório e, ao ter aberto os olhos, incrivelmente percebido robustas vibrações de medo. Medo e vazio. Medo por voltar de onde estava, assim, sem mais nem menos, e vazio, por senti-lo forte e horrendo, e não só isto, cheio de dimensões gigantescas. Tudo, num repente, se faz agora e, dentro dele, sessenta e sete anos parecem ter sido jogados fora. Literalmente lançados nas sarjetas da vida. Grosso modo, pareço bastante com aquela figura metálica do homem armado que, nos relógios antigos, dava as horas com um martelo e nossos avós apelidaram de Jaquemart.

Me vejo caminhando por uma estrada de compleição agrestemente chucra e tosca, os passos incertos, sem vislumbrar um porto seguro onde estancar esta dor forte e imensa que se alojou em mim e, contra a minha vontade, insiste permanecer sem pressa de ir embora. Esta dor estranha, esquisita,  fez de meu espírito  seu templo doméstico. Me sinto, por conta, como se tivesse a alma  alanceada por uma batalha da qual não participei, mas saí dela mortificadamente oprimido e derreado. Parece haver uma contenda acirrada, que não se define,  entre meu ser asfixiado e o meu agora -, meu agora desprovido de fôlego para continuar na peleja.

Esta dor parece também, lado outro, crescer como um tumor maligno, e, ao tempo em que evolui, me dá sinais de querer desgraçar a alma frangalhada e me colocar num buraco negro e inóspito, de onde tenho a impressão não haver retorno. Dentro da minha cabeça, uma confusão de ideias e pensamentos embaralhados tenta, a todo custo, me aniquilar, enquanto o coração, no peito, fortemente  descompassado e, numa aceleração centuplicada, me apavora e não só  isto, me tira fora da normalidade da razão. Todos os cômodos da minha residência, parecem ocupados por velhos fantasmas de semblantes  monásticos, que agora se juntam e me assustam.

Os ruídos ensurdecedores que eles  produzem (numa diversidade de aspectos infernais), irrompem dentro destes meus espaços compostos por (além aqui da varanda), uma sala, três quartos, banheiro e cozinha, como látegos martirizantes. Esta babel não vêm do motor da geladeira, nem do ventilador. Tampouco do aparelho de ar condicionado. Menos ainda dos pingos que rolam intermitentes da torneira da pia do lavabo que deixei aberta, inda  a pouco, quando  minutos atrás, escovava os dentes. Recordo que passei água num copo onde tomei um gole de café com leite. Os móveis da sala, o sofá, minha cadeira de descanso, a televisão, o som e até meus livros  igualmente entraram no furdunço.

Me dão a impressão de estarem mancomunados com esses espalhafatos horripilantes. Em razão disto, sinto como se, de repente, todos estes contratempos zaragatados houvessem fundidos, numa câmara de som compactada com o intuito único de me enervarem  os ouvidos.  A estuporação que me pesa no corpo, tem um aspecto desfigurado e repugnante. Se assemelha a galhofas inumanas. Como meu rosto, deve estar com uma máscara aterradora. Gelo, paralisando os movimentos. Esfrio o sangue nas veias. Fico como que petrificado, chumbado literalmente subjugado aos ladrilhos do alpendre. Boa parte de mim se acha perdida num emaranhado de quimeras desfeitas.

Um sentimento de urgência se apodera de todo meu eu e tenta me curvar derrubando meu esqueleto de encontro ao rés do chão. Meus movimentos, mesma onda,  se  portam sem ação, tolhidos e entravados, a ponto de não conseguirem mexer  os músculos, ao menos para me divorciarem um pouco dos maus presságios que chegaram e ainda chegam sem prévio aviso. Pareço, de repente, ter morrido. Perdido o ar hospedeiro da respiração,  todavia, não deixado o corpo. Não me vejo, não me sinto desvencilhado totalmente do plano terreno. A impressão que tenho é a de estar vagando por sobre toda a minha vida passada...

Vislumbro,  a cada dia, a cada minuto, a cada segundo,  tudo assim, numa  espécie de filme colorido como se voltasse literalmente no tempo. Nessa regressão, lobrigo  a minha família em peso. Encontro as minhas ex-mulheres,  topo com meus filhos, meus  netos, cada irmão, cada amigo, enfim, cada aparentado antes distante, agora tão perto... Pessoas que conheci por acaso no acaso do meio da rua, no bar da esquina, na padaria, no supermercado sem troca de olhares, sem gestos ou palavras... Bispo*, numa rápida de visu, minha mãe, imponente como a Vênus de Milo, de natureza inata, acomodada num lugar especial, solitária, como sempre,  na sua serenidade ímpar.

Meu pai, também se faz materializado, o sorriso entristecido. Percebo, igualmente, criaturas que  sumiram do mapa, outras que se foram... Por vontade própria... Numa espécie de magia, estão todas aqui diante de mim. Quero gritar, me fazer presente, me fazer ouvir per fas et nefas*. Dizer que sinto saudades, que me dói a falta de todo mundo... Me corrói uma tragédia escrita do fundo da subitaneidade dos refrigérios do meu ego.  No instante seguinte, me questiono, boquiaberto, espantado, quase enlouquecido: como foi mesmo que me perdi de tudo? Alguém, por favor, teria como me responder sem imprimir delongas?!  Por certo que não! Que bobo fui, ou...

Resumindo meus dissabores: o escalpelo que a vida me deixou, atingiu em cheio o meu porvir. Foi grandiosa a incisão e acredito que não haja cicatrização para o tamanho da ferida aberta. O fogo selvagem de todos os fracassos se deflagrou em mim. Me debato, ainda agora, na ganga da mediocridade e me sinto ajoelhado diante de um amanhã umbroso e repletado de trevas. Me questiono, por tudo o que vejo e sinto: em que espécie de idiota oblongo enlargado de imbecilidades me transformei? Nada nem ninguém, me responde. E o resto... Bem, o resto ao meu redor são só migalhas do que fui; ciscos de boas lembranças embalsamadas com respingos de árida e nervosa solidão.   
- - - - - –
Notas:
*Per fas et nefas – é uma locução latina que, traduzida, significa "por (para o) bem ou por (para o) mal". Isto é, com todos os meios possíveis. Ela é citada por Arthur Schopenhauer como representativa de uma situação em que um debatedor tenta manter de todas as formas possíveis qualquer coisa que tenha sido dita, mesmo que ele considere-a falsa ou duvidosa.
* Bispo – vislumbro, enxergo.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.
Aparecido Raimundo de Souza, “Comédias da vida na privada”.  RJ: Editora AMC-Guedes, 2020.

quarta-feira, 15 de julho de 2020

Varal de Trovas n. 321


Altino Afonso Costa (Doce é Viver e Cantar)


Não é doce morrer no mar.

Doce é viver nas praias da Bahia, bebendo água de coco, vendo as mulheres passarem com seus corpos morenos e sentindo a brisa do mar; vendo as ondas debulhando espumas salgadas, na tarde ensolarada do Nordeste brasileiro.

Por mais linda que seja a flor, não posso colhe-la perfumada se nasceu entre o lodo do lago.

Eu não escrevo para os que estão tristes; escrevo para aqueles que estão imunes ao pessimismo, por enquanto.

Escrevo o que sinto e sinto o que escrevo.

Se há tristeza no que escrevo, é porque não sei mentir e encobrir os acontecimentos.

A vida não é somente uma pintura surrealista de Salvador Dali e nem é também apenas um sorriso enigmático aflorando nos lábios da Mona Lisa de Da Vinci...

Os atores fingem, por isso são chamados de hipócritas, por transmitirem uma realidade que não sentem, apenas interpretam.

Eu escrevo para aqueles que pensam livremente e claramente enxergam a vida com olhos anatômicos.

Viver é simplesmente lutar para não ser vencido; e vencer é a meta de todo guerrilheiro.

A minha vida sempre foi um campo de batalha e nesse campo eu luto, me firo, me esfarrapo, indiferente ao rufar dos tambores da morte.

Assim vivo, assim penso, assim descrevo o que sinto.

Disse-me um amigo fraterno: "o teu canto é triste e sem fim".

E eu respondi-lhe: eu sei que o meu canto é entristecido... mas, se não for para cantar assim, prefiro ficar emudecido.

Fonte:
Altino Afonso Costa. Buquê de estrelas: crônicas e poemas. Paranavaí/PR: Olímpica, 2001.
Livro gentilmente enviado por Dinair Leite.

IX Concurso Internacional de Trovas Estados Unidos (Trovas Premiadas)



Tema: AMIZADE
 
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VETERANOS
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VENCEDORES

1º Lugar

Sempre certa em hora incerta,
a fraternal amizade,
é casa de porta aberta
em noite de tempestade.
Dulcídio de Barros Moreira Sobrinho
Juiz de Fora/MG

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2º Lugar
Meus  amigos,  sou  bem  franco,
como  é  bom  ter  nesta  vida,
mesmo  em  mundo  em  preto   e  branco,
a  amizade  colorida !!!
Antonio Colavite Filho
Santos/SP

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3º Lugar
Ao saber que por fracassos
vivemos ao rés do solo,
a amizade abre os seus braços
e nos carrega no colo.
Maurício Cavalheiro
Pindamonhangaba/SP
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4º Lugar

Amizade é uma conduta,
às vezes, firme e calada,
no gesto de quem te escuta,
te empresta um ombro, e mais nada.
Marília Oliveira
Porto Alegre/RS
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5º Lugar 
Todo aquele que é cercado
de amizades verdadeiras
tem o visto carimbado
para um mundo sem fronteiras!
Renata Paccola
São Paulo/SP
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MENÇÃO HONROSA

1º Lugar

Ah! Seria mesmo incrível
se fosse assim a amizade:
produto não perecível,
sem data de validade!
Geraldo Trombin
   São Paulo/SP  
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2º Lugar

Nossa paixão quase trágica,
foi a amizade quem fez…
paixão que, perdendo a mágica,
fez-se amizade outra vez.
Francisco Gabriel Ribeiro
Natal/RN
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3º Lugar

Aos  amigos  de  verdade,
de  coração  agradeço,
pois  a  sincera  amizade
é  um  amor  que  não  tem  preço!
Edna Gallo
Santos/SP
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4º Lugar

Nesse abraço, cativante,
minha mente me afiança,
que amizade é semelhante
ao amor de uma criança.
Ari Santos de Campos
 Balneário Camboriú/SC  
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5º lugar

Do amigo espero a verdade,
mútua confiança, sem medo;
que o segredo da amizade
é amizade sem segredo!
A. A. de Assis
Maringá/PR
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MENÇÃO ESPECIAL

1º Lugar

Naqueles momentos quando
tudo soa indiferente,
amizade é Deus mandando
alguém pra cuidar da gente.
Manoel Cavalcante
Pau dos Ferros/RN
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2º Lugar

Toda amizade conforta:
dá leveza em qualquer hora.
E sempre nos abre a porta,
não tem fim...nem vai embora!
Maria Dulce de Lima Pessoa
Tabira/PE
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3º Lugar

A amizade é tecelã
de amor, respeito, aliança;
ela tece no amanhã
o fio da confiança…
Cristina Cacossi
Bragança Paulista/SP 
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4º Lugar

Amor que não conseguiu
transformar-se em amizade
depois que a paixão ruiu,
não foi amor de verdade.
Massilon Ferreira da Silva
Aracaju/SE
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5º Lugar

Amizade é a força atenta,
que nos ama e nos cativa:
Na queda, é a mão que sustenta;
na glória, é a mão que incentiva!
Mara Melinni Garcia
Caicó/RN
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NOVOS TROVADORES
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1º Lugar

Amizade é um sentimento
de inestimável valor,
pois no meu entendimento,
amizade é quase amor.
Suely Ribella
Santos/SP
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2º Lugar

O valor de uma amizade
não se pode calcular,
um amigo de verdade
ninguém consegue comprar!
Aurineide Alencar de Freitas Oliveira
Dourados/MS
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3º Lugar
Tempos de calamidade,
tudo lembra escuridão.​
Grandeza de  uma amizade​
ilumina o coração.
 Agnes Izumi Nagashima
 Londrina/PR
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4º Lugar

“Amizade não tem preço”
diz o dito popular.
Tem mais valor, esclareço,
que o próprio familiar.
Maria Cristina de Oliveira
Campinas/SP
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5º Lugar
Amizade é como agir
presente sem se mostrar,
doando sem exigir,
amando sem revelar.
Abelardo Nogueira
Araçoiaba/CE


Fonte:
Maria Luíza Walendowski (coordenadora geral)

Monteiro Lobato (Velha Praga)


ANDAM TODOS EM NOSSA TERRA por tal forma estonteados com as proezas infernais dos belacíssimos “vons” alemães, que não sobram olhos para enxergar males caseiros.

Venha, pois, uma voz do sertão dizer às gentes da cidade que se lá fora o fogo da guerra lavra implacável, fogo não menos destruidor devasta nossas matas, com furor não menos germânico.

Em agosto, por força do excessivo prolongamento do inverno, “von Fogo” lambeu montes e vales, sem um momento de tréguas, durante o mês inteiro.

Vieram em começos de setembro chuvinhas de apagar poeira e, breve, novo “verão de sol” se estirou por outubro adentro, dando azo a que se torrasse tudo quanto escapara à sanha de agosto.

A serra da Mantiqueira
ardeu como ardem aldeias na Europa, e é hoje um cinzeiro imenso, entremeado aqui e acolá de manchas de verdura — as restingas úmidas, as grotas frias, as nesgas salvas a tempo pela   cautela dos aceiros. Tudo mais é crepe negro.  
 
À hora em que escrevemos, fins de outubro, chove. Mas que chuva cainha! Que miséria d’água! Enquanto caem do céu pingos homeopáticos, medidos a conta-gotas, o fogo, amortecido mas não dominado, amoita-se insidioso nas piúcas, a fumegar imperceptivelmente, pronto para rebentar em chamas mal se limpe o céu e o sol lhe dê a mão.

Preocupa à nossa gente civilizada o conhecer em quanto fica na Europa por dia, em francos e cêntimos, um soldado em guerra; mas ninguém cuida de calcular os prejuízos de toda sorte advindos de uma assombrosa queima destas.

As velhas camadas de húmus destruídas; os sais preciosos que, breve, as enxurradas deitarão fora, rio abaixo, via oceano; o rejuvenescimento florestal do solo paralisado e retrogradado; a destruição das aves silvestres e o possível advento de pragas insetiformes; a alteração para pior do clima com a agravação crescente das secas; os vedos e aramados perdidos; o gado morto ou depreciado pela falta de pastos; as cento e um particularidades que dizem respeito a esta ou aquela zona e, dentro delas, a esta ou aquela “situação” agrícola. Isto, bem somado, daria algarismos de apavorar; infelizmente no Brasil subtrai-se; somar ninguém soma...

É peculiar de agosto, e típica, esta desastrosa queima de matas; nunca, porém, assumiu tamanha violência, nem alcançou tal extensão, como neste tortíssimo 1914 que, benza-o Deus, parece aparentado de perto com o célebre ano 1000 de macabra memória. Tudo nele culmina, vai logo às do cabo, sem conta nem medida. As queimas não fugiram à regra.

Razão sobeja para, desta feita, encararmos a sério o problema. Do contrário a Mantiqueira será em pouco tempo toda um sapezeiro sem fim, erisipelado de samambaias — esses dois términos à uberdade das terras montanhosas.

Qual a causa da renitente calamidade?

É mister um rodeio para chegar lá.

A nossa montanha é vítima de um parasita, um piolho da terra, peculiar ao solo brasileiro como o Argas o é aos galinheiros ou o Sarcoptes mutans à perna das aves domésticas. Poderíamos, analogicamente, classificá-lo entre as variedades do Porrigo decalvans, o parasita do couro cabeludo produtor da “pelada”, pois que onde ele assiste se vai despojando a terra de sua coma vegetal até cair em morna decrepitude, nua e descalvada. Em quatro anos a mais ubertosa região se despe dos jequitibás magníficos e das perobeiras milenárias — seu orgulho e grandeza, para, em achincalhe crescente, cair em capoeira, passar desta à humildade da vassourinha e, descendo sempre, encruar definitivamente na desdita do sapezeiro — sua tortura e vergonha.

Este funesto parasita da terra é o CABOCLO, espécie de homem baldio, seminômade, inadaptável à civilização, mas que vive à beira dela na penumbra das zonas fronteiriças. À medida que o progresso vem chegando com a via férrea, o italiano, o arado, a valorização da propriedade, vai ele refugindo em silêncio, com o seu cachorro, o seu pilão, a pica-pau e o isqueiro, de modo a sempre conservar-se fronteiriço, mudo e sorna. Encoscorado numa rotina de pedra, recua para não adaptar-se.

É de vê-lo surgir a um sítio novo para nele armar a sua arapuca de “agregado”; nômade por força de vagos atavismos, não se liga à terra, como o campônio europeu: “agrega-se”, tal qual o Sarcoptes, pelo tempo necessário à completa sucção da seiva convizinha; feito o que, salta para diante com a mesma bagagem com que ali chegou.

Vem de um sapezeiro para criar outro. Coexistem em íntima simbiose: sapé e caboclo são vidas associadas. Este inventou aquele e lhe dilata os domínios; em troca o sapé lhe cobre a choça e lhe fornece fachos para queimar a colmeia das pobres abelhas.

Chegam silenciosamente, ele e a “sarcopta” fêmea, esta com um filhote no útero, outro ao peito, outro de sete anos à ourela da saia — este já de pitinho na boca e faca à cinta. Completam o rancho um cachorro sarnento — Brinquinho, a foice, a enxada, a pica-pau, o pilãozinho de sal, a panela de barro, um santo encardido, três galinhas pevas e um galo índio. Com estes simples ingredientes, o fazedor de sapezeiros perpetua a espécie e a obra de esterilização iniciada com os remotíssimos avós. Acampam.

Em três dias uma choça, que por eufemismo chamam casa, brota da terra como um urupê. Tiram tudo do lugar, os esteios, os caibros, as ripas, os barrotes, o cipó que os liga, o barro das paredes e a palha do teto. Tão íntima é a comunhão dessas palhoças com a terra local, que dariam ideia de coisa nascida do chão por obra espontânea da natureza — se a natureza fosse capaz de criar coisas tão feias.

Barreada a casa, pendurado o santo, está lavrada a sentença de morte daquela paragem.

Começam as requisições. Com a pica-pau o caboclo limpa a floresta das aves incautas. Pólvora e chumbo adquire-os vendendo palmitos no povoado vizinho. É este um traço curioso da vida do caboclo e explica o seu largo dispêndio de pólvora; quando o palmito escasseia, rareiam os tiros, só a caça grande merecendo sua carga de chumbo; se o palmital se extingue, exultam as pacas: está encerrada a estação venatória.

Depois ataca a floresta. Roça e derruba, não perdoando ao mais belo pau. Árvores diante de cuja majestosa beleza Ruskin choraria de comoção, ele as derriba, impassível, para extrair um mel-de-pau escondido num oco.

Pronto o roçado, e chegado o tempo da queima, entra em funções o isqueiro. Mas aqui o Sarcoptes se faz raposa. Como não ignora que a lei impõe aos roçados um aceiro de dimensões suficientes à circunscrição do fogo, urde traças para iludir a lei, cocando destarte a insigne preguiça e a velha malignidade.

Foi neste momento que o viu o poeta:

Cisma o caboclo à porta da cabana. (1)

Cisma, de fato, não devaneios líricos, mas jeitos de transgredir as posturas com a responsabilidade a salvo. E consegue-o. Arranja sempre um álibi demonstrativo de que não esteve lá no dia do fogo.

Onze horas.

O sol quase a pino queima como chama. Um Sarcoptes anda por ali, ressabiado. Minutos após crepita a labareda inicial, medrosa, numa touça mais seca; oscila incerta; ondeia ao vento; mas logo encorpa, cresce, avulta, tumultua infrene e, senhora do campo, estruge fragorosa com infernal violência, devorando as tranqueiras, estorricando as mais altas frondes, despejando para o céu golfões de fumo estrelejado de faíscas. É o fogo de mato!

E como não o detém nenhum aceiro, esse fogo invade a floresta e caminha por ela adentro, ora frouxo, nas capetingas ralas, ora maciço, aos estouros, nas moitas de taquaruçu; caminha sem tréguas, moroso e tíbio quando a noite fecha, insolente se o sol o ajuda.

E vai galgando montes em arrancadas furiosas, ou descendo encostas a passo lento e traiçoeiro até que o detenha a barragem natural dum rio, estrada ou grota noruega. Barrado, inflete para os flancos, ladeia o obstáculo, deixa-o para trás, esgueira-se para os lados — e lá continua o abrasamento implacável.

Amordaçado por uma chuva repentina, alapa-se nas piúcas, quieto e invisível, para no dia seguinte, ao esquentar do sol, prosseguir na faina carbonizante.

Quem foi o incendiário? Donde partiu o fogo? Indaga-se, descobre-se o Nero: é um urumbeva qualquer, de barba rala, amoitado num litro de terra litigiosa.

E agora? Que fazer? Processá-lo?

Não há recurso legal contra ele. A única pena possível, barata, fácil e já estabelecida como praxe, é “tocá-lo”.

Curioso este preceito: “Ao caboclo, toca-se”. Toca-se, como se toca um cachorro importuno, ou uma galinha que vareja pela sala. E tão afeito anda ele a isso, que é comum ouvi-lo dizer: “Se eu fizer tal coisa o senhor não me toca?”.

Justiça sumária — que não pune, entretanto, dado o nomadismo do paciente. Enquanto a mata arde, o caboclo regala-se.

— Eta fogo bonito!

No vazio de sua vida semisselvagem, em que os incidentes são um jacu abatido, uma paca fisgada na água ou o filho novimensal, a queimada é o grande espetáculo do ano, supremo regalo dos olhos e dos ouvidos.

Entrado setembro, começo das “águas”, o caboclo planta na terra em cinzas um bocado de milho, feijão e arroz; mas o valor da sua produção é nenhum diante dos males que para preparar uma quarta de chão ele semeou.

O caboclo é uma quantidade negativa. Tala cinquenta alqueires de terra para extrair deles o com que passar fome e frio durante o ano. Calcula as sementeiras pelo máximo da sua resistência às privações. Nem mais, nem menos. “Dando para passar fome”, sem virem a morrer disso, ele, a mulher e o cachorro — está tudo muito bem; assim fez o pai, o avô; assim fará a prole empanzinada que naquele momento brinca nua no terreiro.

Quando se exaure a terra, o agregado muda de sítio. No lugar fica a tapera e o sapezeiro. Um ano que passe e só este atestará a sua estada ali; o mais se apaga como por encanto. A terra reabsorve os frágeis materiais da choça e, como nem sequer uma laranjeira ele plantou, nada mais lembra a passagem por ali de Manoel Peroba, de Chico Marimbondo, de Jeca Tatu ou outros sons ignaros, de dolorosa memória para a natureza circunvizinha.
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Nota:
(1) Verso de Ricardo Gonçalves (1888-1916), poeta e j ornalista libertário que fez parte do célebre grupo “Minarete”, organizado por Lobato.


Fonte:
Monteiro Lobato. Urupês. Publicado em 1914.

terça-feira, 14 de julho de 2020

Varal de Trovas n. 320


Arthur de Azevedo (Toc, Toc, Toc, Toc...)


O Borges não a tinha visto nunca senão à janela da casa paterna: só lhe conhecia o busto, e não era preciso mais nada para encantá-lo, porque na verdade ela possuía o palmo da cara mais simpático e ao mesmo tempo mais lindo que era possível imaginar.

Chamava-se Idalina, e era filha natural de um vidraceiro estabelecido na loja do prédio em que ambos moravam. Não iam a parte alguma.

Havia uma circunstância, uma só, que contrariava o Borges; a mãe da pequena tinha sido mulher da vida alegre; dera em público toda a espécie de escândalos, e fora, afinal, assassinada, durante uma pândega, por um dos seus inúmeros e sucessivos amantes. É verdade que Idalina desde a mais tenra idade fora subtraída ao contato dessa mulher, e nunca mais a viu: mas o Borges preferia, naturalmente, que ela fosse filha de outra mãe; entretanto, não se lhe dava de ligar o seu destino ao dela, tão forte era a simpatia que a moça lhe inspirava.

A filha do vidraceiro parecia não ser indiferente ao afeto que se formara no coração de Borges; todas as vezes que ele passava, pela manhã ou à tarde, caminho da repartição ou caminho de casa, ela correspondia ao seu cumprimento respeitoso com um sorriso afável, que não era o sorriso de uma janeleira vulgar, e tinha alguma coisa de triste e de reservado.

Estava o Borges impressionado ao último ponto, quando um feliz acaso lhe revelou que o Ventura, um dos seus melhores amigos, conhecia intimamente o pai e a filha. Ele, o Borges não sabia outra coisa senão a lamentável particularidade do nascimento de Idalina; soubera-o por casualidade, no bonde, ouvindo a conversa de dois passageiros que a viram à janela e a conheciam.

O Ventura, quando o amigo pediu as desejadas informações, desfez-se em calorosos elogios.

- É a criatura mais doce, mais bondosa que o céu cobre! É uma santa; uma verdadeira santa; mas, meu amigo... sim, infelizmente há um mas...

O Borges adivinhou que o amigo se referia à mãe de Idalina, e atalhou:

- Sei o que é, mas não importa... Coitada! Que culpa tem ela dessa desgraça?

- Nenhuma culpa tem, mas dificilmente encontrará marido. Se fosse rica, não digo nada; há homens que por dinheiro fecham os olhos a tudo, mas o Lemos, o pai, não tem por onde se lhe pegue...

- Pois fica sabendo que não se me dava de ser seu marido.

- Tu?... Apesar de...?

- Apesar de tudo!

- Mas olha que não poderias levar tua mulher a parte alguma!

- Por quê?

- Seria ridículo!

- Deixá-lo ser! Ela é boa, é digna, é honesta, não é?

- Ah! Por esse lado, não conheço outra que mais o seja!

- Neste caso, exijo de ti um grande serviço: rogo-te que vás ter com o pai e que a peças em meu nome.

- Alto lá! Essas coisas não se fazem assim! Deves primeiramente consultá-la, e só depois de autorizado por ela, pedi-la ao pai, mas tu, pessoalmente, e não eu. O mais que posso fazer é apresentar-te ao velho.

- Pois está dito!

No mesmo dia o Borges encontrou meios e modos de fazer com que um bilhete seu chegasse às mãos de Idalina:

"Minha senhora", dizia esse bilhete, "eu chamo-me Laurindo Borges, sou de família honrada, tenho perto de trinta anos, exerço um emprego público, não tenho ligações nem compromissos de espécie alguma, e ganho o necessário para constituir família. Julgo que não lhe sou de todo indiferente; portanto, rogo-lhe a necessária autorização para pedi-la em casamento a seu pai. O obstáculo que de alguma forma se poderia opor a nossa união desaparece diante do amor profundo e da sincera estima que a senhora me inspirou."

A resposta não se fez esperar:

"Uma vez que o sr. fecha os olhos a um obstáculo que parecia condenar-me ao celibato, e uma vez que, não sendo ingrata, retribuo largamente os sentimentos que despertei no seu coração, autorizo-o a pedir a minha mão a papai. Venha domingo, ao meio-dia: ele estará em casa, e prevenido por mim."

À vista desse bilhete, o Borges poderia apresentar-se sozinho, mas foi ter com o Ventura e pediu-lhe que o acompanhasse.

No domingo aprazado, ao meio-dia em ponto, entravam ambos na sala do Lemos, que os recebeu de braços abertos.

- Aqui tem - disse-lhe o Ventura - o meu amigo Laurindo Borges, que lhe vem fazer um pedido muito sério, e cá estou eu para aboná-lo.

- Queiram sentar-se - disse o velho; e, depois de sentados os três, continuou: - Já sei do que se trata. Minha filha, que não tem segredos para mim, mostrou-me o bilhete do sr. Borges e o que dirigiu em resposta. Mas fiquei surpreso, surpreso e ao mesmo tempo jubiloso, quando vi que o senhor não considera um obstáculo a...

- Não! - interrompeu o Borges. - E peço-lhe, sr. Lemos, que não me fale mais nisso. Dona Idalina possui qualidades morais que tudo compensam.

- Então o amigo fecha os olhos àquele defeito?

- Já lhe disse que sim.

- Bom; nesse caso, vou chamá-la.

E erguendo a voz:

- Idalina?

- Papai? - respondeu lá de dentro uma voz argentina e sonora que soou aos ouvidos de Borges como um hino de amor.

- Vem cá, minha filha!

Não se ouviram passos, mas um toc, toc, toc, toc, que intrigou seriamente o namorado, e quando Idalina, radiante de beleza, entrou na sala, ele verificou, à primeira vista, que a moça tinha uma perna de pau!

Foi tal o espanto do pobre rapaz, que todos adivinharam logo que ele ignorava aquela ausência de perna. Idalina caiu sentada numa cadeira, cobrindo o rosto com as mãos, debulhada em pranto.

- Pois o senhor não disse que conhecia o obstáculo? - perguntou o vidraceiro.

- Eu referia-me à mãe de D.Idalina...

- Ora, meu caro, isso jamais seria um obstáculo, porque ela é o contrário do que foi aquela infeliz mulher; é uma pérola, que saiu do lodo, como todas as pérolas.

Mas o Borges estava dominado pela beleza de Idalina, e as lágrimas da moça acabaram de subjugá-lo. Ele ergueu-se e, num generoso ímpeto de amor, correu para ela, ajoelhou-se aos seus pés - quero dizer: ao seu pé - tomou-lhe as mãos ambas, e beijou-as dizendo:

- Que me importa que tenhas uma perna de pau, se tens um coração de ouro?

- Ora, ainda bem! - exclamou o velho. - Case-se, e creia que leva uma mulher completa, apesar de lhe faltar uma perna!

Casaram-se e foram muito felizes. O pai tinha razão.

O Borges, para consolar-se do aleijão da esposa, muitas vezes dizia aos seus botões:

- Idalina talvez não fosse tão boa, tão carinhosa, tão submissa, tão fiel, se tivesse ambas as pernas...

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos Vários.

Paulo Leminski (Versos Diversos) 5


minha amiga
indecisa
lida com coisas
semifusas

quando confusas
mesmo as exatas
medusas
se transmudam
em musas
****************************************

sabendo
que assim dizendo
— poema —
estava te matando
mesmo assim
te disse

sabendo
que assim fazendo
você estava durando
foi duro
mesmo assim
te trouxe

mesmo assim
te fiz
mesmo sabendo que ias
fugaz
ser infeliz
sempre infeliz

mesmo assim
te quis
mesmo sabendo
que ia te querer
ficar querendo
e pedir bis
****************************************

pompa há tanto conquista
cautela tão mal calculada
pausa na pauta
quem sabe em pio pousada
me passa este meio-dia
atravessa este meio-fio
aplaca em luz
a causa desta madrugada

atiça-me a calma
em cólera e guerra floresça
toda esta falta minha alma
tanta valsa chama saudade
tanto A tanto B tanto Z

tanto mim me pareça você
****************************************

não possa tanta distância
deixar entre nós
este sol
que se põe
entre uma onda
e outra onda
no oceano dos lençóis
****************************************

sexta-feira
cinza

quantas vezes
vais ser treze?

quantas horas
têm teus meses?

quantas quintas
vão ser trinta?

quantas segundas
nem são nunca?

quantas quartas
infinitas?
****************************************

quando eu tiver setenta anos
então vai acabar esta adolescência

vou largar da vida louca
e terminar minha livre-docência

vou fazer o que meu pai quer
começar a vida com passo perfeito

vou fazer o que minha mãe deseja
aproveitar as oportunidades
de virar um pilar da sociedade
e terminar meu curso de direito

então ver tudo em sã consciência
quando acabar esta adolescência
****************************************

pétala
não caia esse orvalho

olho
não perca essa lágrima

auras que já se foram
grato pela graça
a graça que eu acho
em tudo que fica
por tudo que passa
****************************************

Desculpe, cadeira,
está pisando no meu pé.
Desse jeito, mais parece
esta mesa: nada mais faz
que cansar minha beleza.

Vocês vão ver uma coisa.
Nem porque é de ferro
pode moer meu dedo
este prego, o martelo.

Vocês não têm cabeça.
Não passam de objeto.
Vocês nunca vão saber
quanto dói uma saudade
quando perto vira longe
quanto longe fica perto.

Desculpe, cadeira,
está pisando no meu pé.
Desse jeito, mais parece
esta mesa: nada mais faz
que cansar minha beleza.

Quanto ao resto — até.
****************************************
elas quando vêm
elas quando vão
versos que nem
versos que não
nem quero fazer
se fazem por si
como se em vão

elas quando vão
elas quando vêm
poesia que sim
parece que nem

Fonte:
Paulo Leminski. caprichos & relaxos (saques, piques, toques & baques). Publicado em 1987.

Malba Tahan (O Santo Ladrão)


Certa vez, no interior da Índia, um ladrão aproveitando-se da escuridão da noite, tentou assaltar a casa de um rico senhor. Sentindo-se percebido, fugiu para um bosque vizinho e ficou escondido sob uma árvore, de onde via, de quando em vez, avermelhados clarões que surgiam nas trevas. Eram os criados do ricaço que o procuravam, com grandes tochas, pesquisando todos os recantos do bosque.

— Estou perdido — pensou. — Os malditos servos fatalmente virão encontrar-me aqui.

E, sem perda de tempo, resolveu arranjar um disfarce qualquer. Sujou o rosto de terra, rasgou as vestes e, ajoelhando-se no chão, fingia um santo faquir absorvido em profunda meditação.

Os seus perseguidores não reconheceram naquele humilde penitente o astucioso ladrão que, pouco antes, havia tentado violar a residência do rico patrão.

E pressurosos levaram a notícia ao dono do palácio:

— Não encontramos as pegadas do ladrão, e o único ser vivo que conseguimos descobrir foi um santo que orava sob uma árvore!

— Um santo em minhas terras! — bradou entusiasmado o proprietário — Que felicidade!

E foi, sem demora, acompanhado da esposa e filhos, levar frutas e doces ao falso anacoreta.

A notícia correu célere pela cidade. Na manhã seguinte, crentes, em multidão, foram admirar o extraordinário faquir que vivia no bosque sob uma árvore, com o rosto sujo de terra e as vestes em frangalhos. Deram-lhe muito dinheiro e valiosos presentes.

Ao ser informado da presença do santo, o Príncipe Nahor, que governava a região, assaltado por súbita e devota curiosidade, ordenou que seus oficiais fossem ao bosque e obtivessem do venerando penitente permissão para conduzi-lo ao palácio.

E num carro dourado, à frente de grande cortejo, o audacioso aventureiro foi levado à suntuosa morada do Príncipe Nahor. Pelas ruas, quando o préstito passava, os homens ajoelhavam-se e beijavam fervorosos a terra entre as mãos.

O príncipe recebeu o novo santo com o maior respeito e solenidade, beijando-lhe a ponta
esfarrapada da túnica.

— Santo faquir! — exclamou — Só hoje chegou ao meu conhecimento a vossa vida exemplar e modesta de orações e penitências. Desejo que demonstres aos meus queridos súditos a grandeza de vosso poder milagroso. Assim é que vos peço realizeis em minha presença, e na dos ilustres Brâmanes, um milagre prodigioso que robusteça ainda mais a nossa fé e confiança!

Respondeu o falso anacoreta:

— Ó Príncipe! Bem sei que sois generoso e bom, mas só poderei realizar o milagre que acabais de ordenar se prometeres conservar-me sob vosso amparo e proteção! Receio que contra mim se assanhem os ódios exaltados dos incrédulos!

— Asseguro-vos, sob palavra — atalhou o príncipe — que estais sob a minha proteção e
ninguém ousará o menor movimento contra a vossa pessoa. Aquele que tentar contra vós qualquer ofensa ou vingança será castigado impiedosamente.

— As vossas palavras — declarou o ladrão — traduzem a maior garantia que um ser humano pode desejar.

E acrescentou:

— Vou realizar diante de vossos olhos dois espantosos milagres que deslumbrarão os crentes e deixarão humilhados os pecadores. E, com o maior cinismo, narrou ao príncipe as peripécias por que havia passado desde a sua tentativa de assalto à casa do ricaço até sua chegada ao palácio.

— Eis, senhor — concluiu — os dois milagres que prometi.

— Que milagres? — retorquiu o príncipe, tomado de incontido rancor — Não vejo milagre algum, ó cão miserável!

— O primeiro milagre, ó príncipe generoso, foi o seguinte: com um punhado de areia e um pouco de cinza, transformei um ladrão num venerável e virtuoso santo. Depois, narrando a verdade em vossa presença, fiz com que o venerável santo se transformasse, novamente, num ladrão abjeto. Penso que essas extraordinárias metamorfoses que realizei foram altamente milagrosas!

Percebeu o arrebatado príncipe que se achava impossibilitado de castigar o inteligente ladrão, pois havia empenhado a sua palavra, e o aventureiro nada poderia sofrer. Dirigindo-se ao respeitável Sind Avastir, o mais sábio dos seus conselheiros, perguntou-lhe:

— Qual a conclusão moral, ó brâmane!, que poderíamos tirar dessa história? Não resultará dela algum ensinamento útil para o meu povo?

O digno sacerdote hindu respondeu:

— A aventura ocorrida com esse aventureiro que faz jus, aliás, a uma boa recompensa,
subministra-nos vários pensamentos e ensinamentos morais. Penso, entretanto, que será
mais interessante deixar o público, por si mesmo, tirar do caso as conclusões que achar mais acertadas.

E, nesse sentido, o príncipe lavrou uma sentença que se tornou célebre.

Fonte:
Malba Tahan. Lendas do deserto. Publicado originalmente em 1929, com prefácio de Olegário Mariano.