sábado, 16 de outubro de 2021

Adega de Versos 51: Nemésio Prata

  
Da série "Correspondências", entre Nemésio Prata e José Feldman

Milton S. Souza (Promessa quebrada)

Eu sei que prometi não chorar. Mas não está sendo fácil suportar esta saudade imensa e esta certeza de que jamais poderei olhar novamente dentro dos teus olhos, sentir o teu perfume e te abraçar daquele jeito que eu tanto gostava.

Não está sendo fácil suportar o silêncio do meu mundo vazio, enquanto todos os meus sentidos gritam pela falta do som melodioso da tua voz.

Não está sendo fácil suportar estes dias cinzentos, repletos da neblina da tua ausência...

Eu sei que prometi ficar apenas recordando aqueles momentos felizes que passamos juntos, durante o curto tempo que Deus permitiu que tu fosses a luz que iluminava a minha vida. Mas quando fiz aquela promessa eu ainda cultivava dentro do meu coração uma esperança de que o destino não te levaria. Eu não conseguia entender porque o coração de alguém tão jovem e tão especial tivesse que parar de bater antes da realização de todos os seus sonhos. E prometi não chorar, também, para não te ver chorando naqueles dias em que as forças começaram a te abandonar...

Confesso, agora, que quase pedi para Deus te levar: eu já não suportava mais te ver sofrendo por causa daquela maldita doença.

Eu já não suportava mais ver os teus olhos meigos transbordando de tristeza.

Eu já não suportava mais saber que os recursos da medicina não estavam atingindo os seus objetivos.

Eu já não suportava mais mentir para mim mesmo que um milagre te devolveria a vida que, visivelmente, estava fugindo de teu corpo enfraquecido.

Eu não suportava mais ter que ficar fazendo tantas promessas que não conseguiria cumprir...

Eu sei que tu estás, agora, num lugar onde não existe sofrimento. E até imagino que deves ser o anjo mais lindo deste lugar. Tenho certeza disso, porque guardo na minha lembrança aquele teu jeito de anjo tão especial, que fazia todos sorrirem quando iluminava o mundo com a luz do teu sorriso. Mas são exatamente estas tantas lembranças que fazem surgir nuvens de tempestade dentro da minha alma. E são estas nuvens que derramam gotas de uma chuva salgada, que desce lentamente de dentro dos meus olhos, criando rios de lágrimas nos vales do meu rosto.

Eu prometi não chorar. Mas a cruz do “nunca mais” é pesada demais para as minhas forças. E se não fossem estas orações que rezo constantemente (muitas delas a gente rezava junto, lembras???), eu já teria sucumbido sob o peso desta saudade.

Sei que vou continuar quebrando a promessa que te fiz. Mas acredito que Deus vai transformar as minhas lágrimas em pérolas brilhantes. E são exatamente estas pérolas que vão iluminar o meu caminho, quando chegar a minha hora, para que eu consiga, mesmo chorando, te encontrar em algum lugar bonito do infinito. Quando isso acontecer, eu te prometo que não mais nos afastaremos e que viveremos juntinhos para toda a eternidade, na paz que Deus reservar para nós.

E podes ter certeza, se estiveres me escutando neste momento, que esta promessa eu não quebrarei...

Silmar Böhrer (Croniquinha) – 33 –


Na oficina do meu verbo incandescente malho palavras, frases, versos, rimas, vou a limar, joeirar, quase deslindar o que deve e o que não deve.

O fole da forja da ferraria atiça o fogo dos pensares - desnudo a alma e apresento o meu mundo interior, fazendo buscas, revolvendo mistérios, visões, indagações que habitam o recôndito do ser.

Incursões do dia a dia são momentos que têm algo de sagrado, até porque "no princípio era o verbo ", a missão é misturar doses de discernimento e compreensão, fazendo das palavras o caudal natural da essência dos dias, da essência da vida, da essência das essências.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Fabiane Braga Lima (Lia)

— Que garotinha birrenta! — Pensei comigo mesma. Os dias passavam lentos, e eu sempre cuidando de Samanta, a filha do senhor Norton! Eu praticamente morava naquele serviço, ajudando a criar aquela garotinha rebelde, desde que a mãe dela havia falecido no parto. Bom! Acho que já tinha me apegado a menina, até dormíamos juntas, como se fossemos mãe e filha. Até participava das reuniões e festas na escola preparatória da pequena.

Tinha também o pai, o senhor Norton! Sempre sentado em sua poltrona favorita, sempre lendo e sempre calado. De olhar sereno e sedento, ao mesmo tempo, o velho senhor procurava disfarçar sempre quando me olhava com os profundos olhos azuis piscina.

Já o dono da casa eu observava à distância, mais que segura, e com certa curiosidade, ver aquele homem de meia idade que pouco dizia. Ele, fechado em si mesmo, e sempre sentado em seu escritório. Ele, sempre fazendo e refazendo balancetes, planejamentos, revisando relatórios, dando poucos telefonemas e assinando ordens de serviço. Ou mesmo em momentos mais agitados, quando contratava diferentes bufês para pequenas festas e recepções fechadas que dava em casa. Eventos reservados para clientes seletos, poucos amigos e diretores da empresa. Norton trabalha em casa como se quisesse evitar perguntas embaraçosas e para se agarrar a dolorosas memórias de quando saía para trabalhar e voltava tarde da noite, quando a falecida esposa dormia no sofá à espera dele. Em suma, a culpa de não estar em casa com os seus, consumia aquele homem.

Certa noite, colocando a pequena Samanta na cama para dormir, escuto o senhor Norton a poucos passos atrás de mim. Virei-me apreendida com o inusitado.

— Poderia arrumar o nó da minha gravata!? — Perguntou de forma seca e formal.

— É claro que sim, senhor Norton, é um prazer.

Ele me devolveu um olhar calmo é atrevido ao mesmo tempo! O executivo estava seguro de si como sempre.

— Sabe Lia, nunca te agradeci por estes anos de dedicação conosco.

Dei um nó de gravata Windsor, ele ergueu os braços e acariciou minha nuca com um leve toque com as costas da mão. Fixei o meu olhar nos olhos castanhos esverdeados dele, então eu não pude resistir ao toque, Norton me envolveu intensamente . Ainda segurando forte em minha nuca, puxou meus cabelos com força, me colocando contra a parede.

— Quero muito te fazer mulher...deixa...!

As palavras se perderam no ar. Dominados pelo desejo subimos as escadas sem nada dizer. No quarto vendou meus olhos, tirou as minhas roupas, me pegou no colo e me jogou na cama! Rendi-me completamente.

No permitíamos tudo, desde os mais profanos atos de desejos, um amor que reprimíamos há anos. Nossos corpos cada vez mais febris, e a insanidade de nossa mente. Ele sussurrava em meu ouvido infindos prazeres. Fui a serva submissa, amante fiel, mulher e ele o meu homem, me tomava com força. Havia muita paixão e o saboroso gosto do pecado. Luxúria!

E assim foram nossas noites de intensa paixão e muito amor! Ele me abraçava, não conseguia descrever o que sentia. Era uma viagem sem volta, ao paraíso, um eterno aconchego de amor. Noites abraçadas e corpos colados! Daquela noite em diante, só tinha olhos para ele. E quanto a garotinha Samanta, foi ficando menos rebele e atenciosa com o pai.

Novamente houve uma festa na casa de Norton... Então o dono casa me chamou.

— Lia arrume o nó da minha gravata?!

—Sempre!

Acariciando meu corpo despido e excitado, me arrastou, ao seu quarto novamente... Nos amamos...

Fonte:
Texto enviado por Samuel C. da Costa

sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Varal de Trovas n. 529

 

Machado de Assis (Aquarelas) O Parasita Literário

O parasita literário tem os mesmos traços psicológicos de outro parasita, mas não deixa de ter uma afinidade latente com o fanqueiro* literário. A única diferença está nos fins, de que se afastam léguas; aquele é porventura mais casto e não tem mira no resultado pecuniário, — que, parece, inspirou o fanqueiro. Justiça seja feita.

A imprensa é a mesa do parasita literário; senta-se a ela com toda a sem-cerimônia; come e distribui pratos com o sangue frio mais alemão deste mundo — diante da paciência pública — que vacila sobre os seus eixos. Um amigo meu define perfeitamente este curioso animal; chama-o Vieirinha da literatura. Vieirinha, lembro ao leitor, é aquele personagem que todos têm visto em um drama nosso.

De feito, este parasita é um Vieirinha sem tirar nem pôr; cortesão das letras, cerca-as de cuidados, sem alcançar o menor favor das musas. Segue-as por toda a parte, mas sem poder tocá-las. Só não sobe ao monte sagrado, porque é uma excursão difícil, e só dada a pés mais de ferro, e a vontades mais sérias. Ali, ficam eles nas fraldas, soltando uma orquestra de gemidos, até que o velho cavalo os vem despedir com uma amabilidade de pata sofrivelmente acerba.

Um coice é sempre uma resposta às suas súplicas... Represália no caso. Eterna lei das compensações!

Entre nós o parasita literário é uma individualidade que se encontra a cada canto. É fácil verificá-lo. Pegais em um jornal; o que vedes de mais saliente? Uma fila de parasitas que deitam sobre aquela mesa intelectual um chuveiro de prosa ou verso, sem dizer — água vai!

Verificai-o!

O jornal aqui não é propriedade, nem da redação nem do público, mas do parasita. Tem também o livro, mas o jornal é mais fácil de contê-los.

Às vezes o parasita associa-se e cria um jornal próprio. Aqui é que não há de escapar-lhe. Um jornal todo entregue ao parasita, isto é, um campo vasto todo entregue ao disparate! É o rei Sancho na sua ilha!

Ele pode parodiar o dito histórico l’état c'est moi! Porque as quatro ou seis páginas, na verdade, são dele, todas dele. Ele pode gritar ali, ninguém lhe impedirá, ninguém; uma vez que não ofenda a moral pública. A polícia para onde começa o intelectual e o senso comum; não são crimes no código as ofensas a esses dois elementos da sociedade constituída.

Ora, sustentado assim pelos poderes, o parasita literário invade, como o Huno moderno, a Roma da intelectualidade, com a decência moral nos lábios, mas sem a decência intelectual.

Tem pois o jornal, próprio ou não próprio, onde pode sacudir-se a gosto, garantido pelas leis. Se desdenha o jornal tem ainda o livro.

O livro!

Tem ainda o livro, sim. Meia dúzia de folhas de papel dobradas, encadernadas, e numeradas é um livro; todos têm direito a esta operação simples, e o parasita por conseguinte.

Abrir esse livro e compulsá-lo, é que é heroico e digno de pasmo. O que há por aí, santo Deus! Se é um volume de versos, temos nada menos que uma coleção de pensamentos e de notas arranhadas laboriosamente em harpas selvagens como um tamoio. Se é prosa — temos um amontoado de frases descabeladas entre si, segundo a opinião do autor. É muitas vezes um drama, um romance misterioso, de que o leitor não entende pitada. Se eu quisesse ferir individualidades, tocar em suscetibilidades, desenrolaria aqui um sudário dessas invasões na literatura; mas o meu fim é o indivíduo, e não um indivíduo.

O parasita literário vai ainda aos teatros. Esta invenção de recitar nos teatros, tirada da antiguidade grega, que levanta um bardo em um festim, como nos mostra a Odisseia, abriu um precedente, e deu azo ao abuso. A autoridade, que é ainda a polícia, não indaga do mérito da obra, e quer apenas saber se há alguma coisa que fira a moral. Se não, pode invadir a paciência pública.

Todos os leitores estão de posse deste traço do parasita literário. As salas dos nossos teatros têm repercutido imensas vezes com esses arranhões de lira. Basta bater palmas de um camarote e ter alguns exemplares para distribuição; a plateia deve receber aquele aguaceiro intelectual.

O parasita está debaixo do código.

Ora, o que admira no meio de tudo isto, é que sendo o parasita literário o vampiro da paciência humana, e o primeiro inimigo nacional, acha leitores, — que digo? Adeptos, simpatias, aplausos!

Há quem lhes faça crer que alguma coisa lhes rumina na cabeça como a André Chérnier; eles, a quem já não faltava vontade de crer, aceitam, como princípio evidente, essa solução do impossível, que a parvoíce lhe dá de boa vontade.

Que gente!

Os tragos fisiológicos do parasita são especiais e característicos. Não podendo imitar os grandes homens pelo talento, copiam na postura e nas maneiras o que acham pelas gravuras e fotografias. Assumem um certo ar pedantesco, tomam um timbre dogmático nas palavras; e, ao contrário do fanqueiro, que tem a espinha dorsal mole e flexível, — ele não se curva nem se torce; a vaidade é o seu espartilho.

Mas, por compensação, há a modéstia nas palavras ou certo abatimento, que faz lembrar esse ninguém elogiado da comédia. Mas ainda assim vem a afetação; o parasita é o primeiro que esta cônscio de que é alguma coisa, apesar da sinceridade com que procura pôr-se abaixo de zero.

Pobre gente!

Podiam ser homens de bem, fazer alguma coisa para a sociedade, honrar a musa nacional, contendo-se na sua esfera própria; mas nada, saem uma noite da sua nulidade e vão por aí matando a ferro frio... É que têm o evangelho diante dos olhos...

Bem-aventurados os pobres de espírito.

O parasita ramifica-se e enrosca-se ainda por todas as vértebras da sociedade. Entra na Igreja, na política e na diplomacia; há laivos dele por toda a parte. Na Igreja, sob o pretexto do dogma, estabelece a especulação contra a piedade dos incautos, e das turbas. Transforma o altar em balcão e a âmbula em balança. Regala-se à custa de crenças e superstições, de dogmas ou preconceitos, e lá vai passando uma vida de rosas.

A história é uma larga tela dessas torpezas cometidas à sombra do culto.

O parasita da Igreja, toda a Idade Média o viu, transformado em papa vendeu as absolvições, mercadejou as concessões, lavrou as bulas. Mediante o ouro, aplanou as dificuldades do matrimônio quando existiam; depois levantou a abstinência alimentar, quando o crente lhe dava em troca uma bolsa.

É um desmoronamento social. O parasita teve uma famosa ideia em embrenhar-se pela Igreja. A dignidade sacerdotal é uma capa magnífica para a estupidez, que toma o altar como um canal de absorver ouro e regalias.

Assim colocado no centro da sociedade, desmoraliza a Igreja, polui a fé, rasga as crenças do povo. Entra, todos o consentem, no centro das famílias, sem haver sacudido o pó das torpezas que lhe nodoa as sandálias. Dominou imoralmente as massas, os espíritos fracos, as consciências virgens.

Esta transformação do parasita não tende por ora a desaparecer; a fogueira de J. Huss não queimou só o grande apóstolo, devorou também o vestíbulo desse edifício de miséria levantado por uma turba de parasitas, parasita da fé, da moralidade e do futuro.

Em política, galga, não sei como, as escadas do poder, tomando uma opinião ao grado das circunstâncias, deixando-a ao paladar das situações, como uma verdadeira maromba de arlequim. Entra no parlamento com a fronte levantada, votado pela fraude, e escolhido pelo escândalo.

Exíguo de luz intelectual, — toma lá o seu assento e trata de palpar para apoiar as maiorias. Não pensa mal: quem a boa árvore se encosta...

Alguns sobem assim; e todos os povos têm sentido mais ou menos o peso do domínio desses boêmios de ontem. Deixá-los subir às mesas supremas do festim público. Mas tenham cuidado na solidez das cadeiras em que se sentarem.

Na diplomacia, é mais fácil o ingresso ao parasita. Encarta-se aí em qualquer legação ou embaixada, e vai saltitar em Paris ou em Viena. Lá representam tristemente a pátria que os viu nascer, na massa coletiva da embaixada ou da legação. O que faz de melhor, esse parvenu* sem gosto, é brilhar na arte das roupas, como corifeu da moda que é. Já é muito.

Podia, se não temesse fatigar, fazer uma enumeração mais longa das famílias de parasitas que irradiam destas espécies cardeais. Seria, entretanto, uma longa história que demandaria mais largo espaço; e não caberia nestas ligeiras aquarelas.

O parasita é tão antigo, creio eu, como o mundo, ou pelo menos quase.

Em economia política é um elemento para estacionar o enriquecimento social; consumidor que não produz, e que faz exatamente a mesma figura que um zangão na república das abelhas.

Extinguir o parasita não é uma operação de dias, mas um trabalho de séculos. Os meios não os darei aqui. Reproduzo, não moralizo.
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* Fanqueiro = comerciante que vende tecidos de algodão, linho, lã etc
* Parvenu = pessoa que atingiu súbita ou recentemente riqueza e/ou posição social de proeminência, sem no entanto ter adquirido os modos convencionais adequados.
 
Fonte:
Machado de Assis. Aquarelas. Publicado originalmente em 
O Espelho, Rio de Janeiro, 9/10/1859.

António José Barradas Barroso (Poemas Escolhidos) 1

AINDA MAIS

(À minha mulher Olívia)
 
Busquei, querido amor, lá nesses céus,
A luz que me dá vida, que me guia,
Busquei a sua origem, dia a dia,
Até que a encontrei nos olhos teus.
 
Ergui, bem alto, a voz, orei a Deus
E pedi-Lhe, repleto de alegria,
Que as emoções que, junto a ti, sentia,
Fossem, para sempre, os sonhos meus.
 
E se o amor me diz que a busca é finda,
Meu coração desperta em mil natais
Cada um brilhando em cor tão linda,
 
Que os nossos segredos serão iguais:
- Tu dizes que me queres mais ainda!
- Eu juro que te quero ainda mais!
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AMORES DE VERÃO
 
Tardes de estio do meu Alentejo
Com moças belas, na rua, passando,
Vagos olhares, rubor de desejo,
E no meu coração as ia guardando.
 
E iam, e vinham, se tinham ensejo,
E eu, mudo e quedo, amava-as, olhando
O ar furtivo que me atirava um beijo
Perdido nas pedras que iam pisando.
 
E na tarde morna, cálida, amena,
Nasciam amores cheios de pena
P’los que morriam no mesmo momento,
 
Ao ver as moças passando, maldosas,
Co’o lenço escondendo as faces de rosas
E risos enchendo o meu pensamento.
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INTEMPÉRIE
 
Fui à janela fechada,
Não vi noite nem vi dia,
Não vi tarde, não vi nada,
Olhei pra fora, chovia.
 
Andava na rua, molhado,
Vendo a janela vazia,
Senti-me desamparado,
Olhei pra dentro, chovia.
 
Nem o guarda chuva aberto,
Da tormenta, protegia,
Quis ir longe, fiquei perto,
Olhei pro lado, chovia.
 
Vendo o céu tão pardacento,
Perguntei o que haveria,
Nem me respondeu o vento,
Olhei pra cima, chovia.
 
Fiquei parado, na rua,
Sem me importar se queria
Ter o sol ou ter a lua,
Olhei pra baixo, chovia.
 
Ilusões e sonhos meus
Já não me dão alegria,
Sejam nobres ou plebeus,
Por todo o lado chovia.
 
Terminou tanto aguaceiro
Que culminou, por inteiro,
No sol quente que chegou.
 
Agora, veio a acalmia,
Olhei tudo, não chovia,
E a minha alma já secou.
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NOITE DE SOLIDÃO
 
O luar já desceu, na noite escura,
mas nada me faz companhia.
Acabou-se a luz do dia,
e o silêncio é uma constante.
Só vislumbro a moldura
onde o teu retrato está colocado,
tateio a cama, a meu lado,
e nada sinto, nada,
nem o teu beijo de ternura,
nem uma carícia de amante
ou a tua palavra enamorada.
Escuto, lá fora, o vento
assobiar, como um lamento,
e a escuridão que me rodeia
prende-me nos laços
da enorme saudade
de que minha alma está cheia.
Falta-me o calor dos teus abraços
que me fazia pulsar o coração,
com profunda ansiedade,
com a meiguice e a candura
de cada beijo, em cada batida.
E a manhã me devolverá a vida
quando teus lábios, com ternura,
findarem a longa noite de solidão!...
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TE AMO ETERNAMENTE
 
 Andei perdido por vales e montes
seguindo sempre a direção dos ventos,
tentando vislumbrar os horizontes,
procurando a razão dos pensamentos.
 
O amor passou, por mim, tão de fugida,
como estrela cadente em céu escuro,
que não pude, ou não quis dar-lhe guarida,
e não lhe abri as portas do meu muro.
 
Embrenhei-me em trabalhos, sem um fim,
cansei meu corpo fraco, sem pensar
e quando, finalmente, olhei pra mim,
só pude ver deserto sem palmar.
 
Um dia, te encontrei e, com doçura,
senti meu peito arfar no mesmo instante,
como se iniciasse uma aventura
com o coração sendo dominante.
 
E então, o amor surgiu com força tal,
se evadiu da prisão, rompeu corrente,
gritou, ao mundo inteiro, num sinal:
- Amor, meu amor, te amo, eternamente!
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António José Barradas Barroso, nome literário: Tiago, nasceu em Vila Viçosa, berço natal de Florbela Espanca, em 1934. Ingressou no Instituto Militar dos Pupilos do Exército, onde permaneceu 7 anos em regime de internato, tendo transitado para a Academia Militar (antiga Escola do Exército) para frequentar o curso de Administração Militar. Hoje, Coronel do Exército, reformado.

A inclinação para a poesia foi-lhe incutida pelo seu antigo professor de português, de quem guarda saudosa recordação. A sua vida profissional, com constantes deslocações, não lhe permitiu debruçar-se sobre a poesia, com maior disponibilidade, como gostaria. Assim, só quando regressou de Moçambique, em 1974, dedicou-se de alma e coração, com mais tempo e atenção, sobre um tema de que tanto gosta, mas despreocupadamente, guardando tudo o que ia escrevendo nos mais diversos suportes, desde grandes folhas de jornais a pequenos bilhetes de autocarro.

Em 2007, começou a enviar alguns poemas para concursos e jogos florais, tendo, durante cinco anos, obtido cerca de 140 prêmios, desde vencedores até menções honrosas, em Portugal, Brasil, Itália e República Dominicana.  Possui poemas em centenas de cirandas e antologias.

Membro correspondente da Academia Cachoeirense de Letras, em Cachoeiro do Itapemirim; Academia Rio-Grandina de Letras em Rio Grande e sócio do Clube dos Poetas Livres, em Florianópolis, todos no Brasil. Membro da AVSPE – Academia Virtual Sala de Poetas e Escritores; “Confrades da Poesia” – Amora / Portugal; também associado do Clube da Simpatia, em Olhão.

Reside em Parede/Portugal.
 
Publicações:
“Memórias do tempo que passa”, “Devaneios de Outono” e “Último fôlego”.


Mia Couto (Isaura para sempre dentro de mim)

Isaura entrou pelo bar como se entrasse pela última porta e nós fôssemos os deuses que a aguardássemos do outro lado. Fora ficava esse céu todo azulado, os zunzuns da gente no bazar.

A aparição da mulher fez estancar meu coração, suspenso na rédea do espanto. Escutei íntimos desacordes, sangue para um lado, veias para outro. É que eu não via a Isaurinha há mais de vinte anos, mais de metade do tempo que eu amealhava existências. De repente, me chegaram lembranças como se em meu peito desembarcassem imagens e sons, atropelando-se em desordem.

Foi no tempo colonial. Eu e a Isaurinha éramos empregados domésticos na mesma casa. Ela empregada de dentro, eu de fora. Ambos, miúdos, em idade mais de brincar. Aos fins da tarde, quando ela desapegava, vinha me contar as novidades, segredos da vida dos brancos. Era hora de eu passear a cãozada.

Ela me acompanhava, rodávamos pelos quarteirões enquanto ela me fazia rir, com as suas revelações. Que o patrão a empurrava nos cantos sombrios e a apertava de encontro às paredes. Não havia parede em que ele, de pé, não tivesse deitado. Tudo aquilo lhe dava nojeira, reviragem nas vísceras. Queixar a quem? A Deus? Eu sonhava que me subiam coragens e enfrentava o patrão. Mas adormecia sem ousadia sequer de terminar o sonho.

E agora Isaura interrompia o meu tempo de existir, rompante adentro da cervejaria. Estava quase na mesma, o tempo não a redesenhara. Magra, como sempre fora. Olhos acesos como réstias de brasa. Em seus dedos um cigarro me sacudiu lembranças. Como se o centro de minha memória fosse um fumo. Sim, o fumo de cigarro que ela, vinte anos antes, trazia de dentro da casa dos patrões para as traseiras onde eu a esperava. Fazia o seguinte pegava a beata distraída num cinzeiro de salão e chupava umas boas passas. Enchia as bochechas de fumo vinha ter comigo ao pátio. Ganhava um ar palhacento, com dupla cara como a coruja. Chegava-se a mim e avizinhava-se, cara com cara. Depois, boca com boca, os lábios meus em concha recebiam os dela. Isaura soprava para dentro de mim esse fumo. Sentia aquecer-me meus interiores, a saliva quase fervendo. Depois, não era só a boca todo o meu corpo se ia esquentando. Era assim que fumávamos, a meio hálito, boca de um cruzamento e peito do outro.

Praticávamos o quê? Fumigação boca-a-boca? Uma coisa era de certeza meu endereço era o céu, nesses instantes. Isaura me exaltava eternidades, lábios vaporosos me roçando o coração. Tudo ali na cubata das traseiras.

Simples procedimento aquele Isaura aparava as unhas dos cigarrinhos, beatas ainda moribundas. Não parecia que Isaura deitasse valor naquele trocar de lábios. Ela gostava mesmo era de tabaco, pouco a pouco se adentrando no vício das fumagens. Eu e a descarga suja em meus pulmões eram simples acidentes sem percurso.

Até que, certa vez, o patrão nos surpreendeu naquelas disposições. Choveram insultos, imediatas pancadas. E logo eu, desculpando Isaura, assumi as inteiras culpas. Construí a versão eu a tinha assaltado, obrigado contra as suas vontades. Nesse mesmo dia, fui expulso, despedido. Nem me despedi de Isaurinha. Levei meus pertences, por baixo de uma lua tristonha. E nunca mais Isaura, nunca mais notícias dela.

Vinte anos depois, Isaura desarrumava a tarde, interrompendo o bar. Para mais, ela trazia entre os dedos um cigarro, fumegante. Ela se sentou em minha mesa e, sem me olhar, desatou as falas. Tanta lembrança boa. Mas a favorita é você, Raimundano. Lhe digo esse fumo todo que lhe deitei sabe o que eu queria, só mais nada? Era um beijo.

Estremeci. Aquilo era a justa navalha, me lacerando? Mas ela seguia, no avanço de seus ditos. Sim, que ela em tempos, me amara. Nunca mostrara aquele querer dela, por motivo de decências. É que era tão magra que era má educação se exibir. Que ela escolhia para mim suas melhores belezas, como quem tem prendas mas não sabe nem a quem dar.

- Porquê, Isaura? Porque nunca me procurou?

- Porque lhe deixei de amar. Foi aquele sua mentira para me proteger. Isso, me fez muito mal.

Desde o momento que eu a defendera, o sentimento tombara, sobra de sombra.

Ofensa de quê? Nunca saberei. Isaura, ali sentada, não me explicaria nada. Como se tivesse passado não o tempo, mas a vida inteira. Levantou-se, arrastou a cadeira como se arrumar os móveis fosse mais importante neste mundo. E se dirigiu para a saída, a angústia me resumindo como se, pela segunda vez, minha vida se ecoasse por aquela porta. Minha voz, nem a reconheci.

-Sopre-me outra vez um fumo, Isaura. Um fuminho, só.

Ela me olhou, os olhos tão longe que parecia nem ter focagem. Aspirou fundo o cigarro, refreou umas tosses e veio em minha direção. Quando ela colou seus lábios em mim, se fabulou o seguinte a mulher se converteu em fumo e se desvaneceu. Primeiro no ar e, depois, lento, na aspiração de meu peito. Nessa tarde, eu fumei Isaurinha.

Fonte:
Mia Couto. Na berma de nenhuma estrada e outros contos. Publicado em 2001.

Minha Estante de Livros (Cenas, de Cecy Barbosa Campos)


Segundo Ilma de Castro Barros e Salgado, doutora em Literatura Comparada da UERJ (contra-capa), a presente obra - Cenas - foi a estreia de Cecy Barbosa Campos no publicação de poesias. Além da acuidade linguística, marcante em obras anteriores, o leitor depara com a sensibilidade poética do autora, sinalizada por sua cosmovisâo. A semântica de Cenas se confirma nos vários recortes que o autora apresenta de sua leitura do mundo. São temas que evocam a memória coletiva, a transcendência, a natureza, a globolização. Nâo é um livro para se ler uma única vez. Sua profunda variação temática levará o leitor a selecionar aqueles poemas que serão, certamente, inúmeras vezes, relidos, pelo encantamento literário que os mesmos lhe provocarão.

Marisa Timponi e Leila Barbosa (Escritoras, Pesquisadoras da História Literária de Juiz de Fora), apresentam o livro em "As Cenas de Cecy":

Cena (do latim scena, -ae: lugar sombreado) foi o espaço selecionado, entendido e aceito pela autora para se posicionar frente às passagens da vida, pois "aceitar tudo é um exercício, entender tudo é uma tensão. O poeta apenas deseja a exaltação e a expansão, um mundo em que ele possa se expandir" (G.K. Chesterton). E a expansão se deu em trama, em aparato, por meio da linguagem.

A palavra se autossignifica na passagem para o jogo literário, já que se coloca em  espetáculo, ao entrar em cena. O poeta/ator tece, engendra, lima, torce, retorce, escolhe, risca e arrisca o texto, fertilizado pela imaginação que cria. A fecundação, etimologicamente, é derivada do termo latino fecundatio, proveniente do verbo fecundare, que significa "fertilizar". E a fertilização acontece nos poemas de Cenas entre "fogo ardente" e "broto hesitante", entre "semem" e "útero", ao proteger o líquido amniótico que jorra do talento, do mais ver para além do sentido dicionarizado dos nomes e coisas. Faz surgir a "busca inútil" da ausência ou da "não presença", das tentativas vãs, entremeadas de um "amor despudorado" que desabafa, em um "amplexo caloroso": "Porque é, em meu coração, que estás presente".

Para Roland Barthes, "a literatura não permite caminhar, mas permite respirar." (...) e "como Liberdade, a escrita não é mais que um momento. Mas esse momento é um dos mais explícitos da História, visto que a História é sempre e antes de tudo uma escolha e os limites dessa escolha". E Cecy aproveitou o momento, chegou ao limite e respirou. Respirou uma vida plena de cenas de histórias que emocionam, que encantam: foi da cena que desponta no horizonte matinal, marcada pela passagem da cena crepuscular de "amantes fugitivas", até a chegada da "Cena final", com as "molduras vazias de meu porta-retrato", escolhidas como aceitação do mundo, muito menos sofridas do que as saudades que nos chegam pela sensualidade insinuante, aquecida na vida que explode:

"O sol se achegava para tornar mais tórrida a paixão".

Há um corte na "Cena melancólica" que elege a perda como condutora da vida, com uma constelação linguística de semas da ananqué (falta): "o que resta de mim", "sonhos antigos que se tornaram passado", "a chama da vela/ que se esvai dentro de mim". É o Thanatos entremeado na existência que se anuncia na conclusão: "fragmentos de um ser que quase não é". É o nada que resulta do mal-estar da civilização...

Mas, no entremeio do trajeto, as cenas se alternam: em "Cena muda", a troca do sorriso substitui o desafeto de não ter o que dizer; na "Cena natalina", entra, no espaço da alegria, o desaponto de não se comemorar o aniversariante do Natal; na "Cena transitória", há a apologia ao tempo que passa, ao tudo que muda na transitoriedade da vida; na "Cena triste", os sonhos "harmonizam os tons na desarmonia da vida".

Como é mais importante a viagem do que a partida ou a chegada, as cenas continuam e Eros entra no palco, desenrolando os atos que se abrem e se fecham nas variações das "Palavras", "Partidas", "Indagações" e outros diálogos com o leitor que pode ler a existência e se ler nos entretextos e entrecenas da poesia das Cenas de Cecy Barbosa: uma alma lúcido-lírica-precisa que retrata o existir no espetáculo e no trânsito da vida.
Juiz de Fora, out. 2010

Abaixo, 2 poemas do livro de Cecy:

ÁLBUM

Desfolhando o velho álbum de retratos
que jazia abandonado em alguma prateleira,
relembrei pessoas que estavam esquecidas
e não reconheci imagens que eram minhas.
O tom amarelado esmaecia
sorrisos jovens que ficaram tristes;
tirava o viço de vidas tão distantes
e que um dia foram parte da minha vida.
Entre as velhas amizades retratadas
revi amigos dos quais eu lembro os nomes
e outros, dos quais mais nada resta
porque ficaram perdidos pelo tempo.
Ao contemplar aquelas fotos desbotadas
vou rejuntando, aos poucos, os pedaços
de uma história que nem sei se já vivi.
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ANGÚSTIA

Fome que devora as minhas entranhas
e anestesia os meus sentidos.
Fome que me deixa insone,
de olhos abertos, esbugalhados,
cheios de sonhos amaldiçoados.
Fome que me angustia,
que me faz carente e triste,
saudosa de antiga alegria.
Fome que se apodera
de minhas lembranças e de minhas quimeras.
Fome que me sufoca com seu abraço
de braços vazios, inconsistentes.
Fome do amor perdido
que não me abandona
mas não me alimenta.
Fome que me acompanha
e me faz morrer
a cada dia, a cada instante.
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Sobre a autora (Contra-capa)

Cecy Barbosa Campos nasceu em Juiz de Fora-MG. Possui graduação em Direito e Letras (UFJF), especializaçâo em Teoria Literária, Mestrado em Teoria Literária (UFJF) e diversos cursos de Aperfeiçoamento em Ingiês em diferentes Centros de Língua, nos Estados Unidos e na Inglaterra, formaram o perfil acadêmico desta brilhante professora-pesquisadora de Língua e Literaturas de Língua Inglesa na UFJF, onde se aposentou em 1991, e no Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora. A esses estudos, acrescente-se a pesquisa que desenvolve sobre escritores afro-descendentes.

Sua participação em diversas associações culturais, comissões julgadoras, Congressos nacionais e internacionais e encontros literários. Tem artigos de pesquisa literária pulicados em revistas especializadas e anais de congressos e trabalhos em prosa verso premiados em concursos de várias academias tais como: Academia Pontagrossense de Letras, a Academia Dorense de Letras, a Academia de Letras do Estado do Rio de Janeiro, o Ateneu Angrense de Letras e Artes e outras.

Pertence, entre outros associações culturais, à Academia Juizforana de Letras,  à Academia Granbervense de Letras, Artes e Ciências, à Academia Rio Pombense de Letras, Cíências e Artes, à Academia de letras Rio - Cidade Moravilhosa, à Academia de Letras do Brasil - Mariana e ao Conselho de Amigos do Museu Mariano Procópio.

Autora dos livros, tais como : The iceman cometh: a carnavalização na tragédia (2000); O reverso do mito e outros ensaios (2002) e Recortes de vida (2009) - e do capítulo A poética de Conceição Evaristo, que compõe o livro, organizado por Edimílson de Almeida Pereira, Um tigre na floresta de signos: estudos sobre poesia e demandas sociais no Brasil (2010).


Fonte:
Cecy Barbosa Campos. Cenas. Juiz de Fora/MG: Editar Editora Associada, 2010.
Livro enviado pela autora.

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Solange Colombara (Portfolio de Spinas) 4

 

Baú de Trovas XXXV


Mesmo parecendo tarde,
qualquer situação melhora
quando sem fazer alarde
o amigo chega na hora.
Alba Christina Campos Netto
São Paulo/SP

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Sem lamentar o passado,
nem o presente tristonho
tem um tesouro guardado
quem na vida tem um sonho!
Ana Cristina de Souza
Teresópolis/RJ,  ????  – 2020, São Paulo/SP

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Bem falsa verdade encerra
e muita desgraça traz,
chamar de santa uma guerra
que mata em nome da paz!
Antonio Zanetti
Caçapava/SP, 1917 – 2002

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A saudade é bem sagrado
que acompanha, sempre, a gente.
É farrapo do passado
no remendo do presente.,.
Antonio Zoppi
Americana/SP, 1931 – 2000

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Quando eu morrer, solidão,
quero chuva no jardim,
para sentir a ilusão
de alguém chorando por mim!
Aprygio Nogueira
Machado/MG, 1928 – 1998, Belo Horizonte/MG

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A verdade é como um canto
difícil de decorar…
A gente ensaia, e no entanto,
sempre esquece de cantar!
Araci da Silva Corrêa
Magé/RJ

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Quando te vejo, vizinha,
corpo bem feito a gingar,
eu lembro um violão que tinha
sem nunca poder tocar...
Araífe David
Taubaté/SP, 1907 – ????

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Para encurtar a distância
que nos separa na vida,
do teu perfume a fragrância
foi a minha arma escolhida!
Araceli Rodrigues Friedrich
Passo Fundo/RS, 1916 – 2016, Curitiba/PR

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Se Deus atendesse um dia
minha prece ingênua e doce,
quem fosse mãe não morria,
por mais velhinha que fosse!
Archimino Lapagesse
Florianópolis/SC, 1897 – 1966, Rio de Janeiro/RJ

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Tenho tudo e nem mereço,
eu me sinto no apogeu!
Mas todo dia agradeço
a vida que Deus me deu!
Argemira Fernandes Marcondes
Taubaté/SP

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Diz um sábio singular
este aforismo, a valer:
– Deus criou o Bem e o mal
compete à gente escolher,
Argentina de Mello e Silva
Curitiba/PR, 1904 – 1996

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Assim como o dia é extinto,
e a noite nos traz o sono,
não sou dono do que sinto,
nem do que sentes, és dono.
Carolina Ramos
Santos/SP

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Quando chega Santo Antônio
e a quermesse se inicia,
tem quadrilha, matrimônio,
comilança e pescaria.
Célia Vasconcellos Azevedo
Bragança Paulista/SP+

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O meu sonho de criança,
alegre, multicolor,
não ficou só na lembrança,
transformou-se em grande amor
Celma Leal de Azevedo
Itaocara/RJ +

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Quisera morrer de amores,
morrer amando eu quisera
entre os matizes e odores
das flores da primavera
Celso Baptista da Luz
Itaquera/SP

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Nesta noite alucinante,
quero viver só de poesia
pois a noite é minha amante,
madrugada é nostalgia.
Celso Luiz Fernandes Chaves
Cambuci/RJ

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Mãe, quando a dor te maltrata,
finges tão bem ser feliz,
que te damos, nesta data,
o "Oscar" de melhor atriz!
César Sovinski
Curitiba/PR

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A morte e as curvas da estrada
são iguais ao menos nisto;
continua a caminhada,
mas quem vai já não é visto...
Padre Celso de Carvalho
Curvelo/MG, 1913 – 2000, Diamantina/MG

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Ah! Quanta vida esquecida,
quanta ternura velada,
nesta verdade escondida
de te amar, sem ser amada...
Cely Maria Vilhena de Moura Falabella
Conquista/MG, 1930 – 2017, Belo Horizonte/MG

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É soldado e, por prudência,
nada quer que o desabone
por isso faz continência
ao cabo... do telefone...
César Torraca
Rio de Janeiro/RJ

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Solidão é vela acesa
no quarto do solitário
onde a Saudade e a Tristeza
rezam o mesmo rosário...
Cesídio Ambrogi
Natividade da Serra/SP, 1893 — 1974, Taubaté/SP

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Durante o sono do Sol,
enquanto a Lua desperta,
tomo a duna por lençol
e as estrelas por coberta...
Élbea Priscila de Sousa e Silva
Caçapava/SP

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Por minha culpa partiste;
e o sal do pranto, sem dó,
agora torna mais triste
o triste viver de um só...
José Tavares de Lima
Juiz de Fora/MG

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Busco de novo a verdade
na aspereza dos caminhos,
e só encontro a saudade,
a solidão dos sozinhos!
Luiz Carlos Abritta
Belo Horizonte/MG

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Quando as mangas arregaço
para cumprir o dever,
se bate à porta o cansaço
eu me recuso a atender!
Renata Paccola
São Paulo/SP

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Sozinha num desvario,
sem concretude meus braços
traçam sobre um leito frio,
o perfil dos teus abraços!
Rita Marciano Mourão
Ribeirão Preto/SP

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Tendo fé, não sou ruim,
na caridade me esforço,
pois quem é mau tem por fim
a fornalha do remorso!
Yedda Ramos Patrício
São Paulo/SP

Camilo Castelo Branco (De abismo em abismo)


Eu é que não podia satisfazer a minha curiosidade com a descosida revelação de Valadares.

Muitas vezes acalorei a questão do cinismo, aplicando-a a Miquelina; mas este nome enfurecia-o de tal modo, que as nossas relações estiveram a romper-se, e reataram-se com a condição de eu nunca lhe tocar ligeiramente em semelhante assunto.

Sujeitei-me, mas, na primeira ocasião prosperada pelo acaso, alcancei esclarecimentos, que elucidam a degradação da pobre mulher.

Em 1848, Miquelina vivia ainda no Porto. A sua vida já a sabem. Como veio ela tão abaixo?

Foi assim:

Alguns dias depois da fuga vergonhosa com o defunto lacaio, Miquelina foi conduzida a Lisboa. A avó, que pôde sobreviver ao golpe, quis salvar a neta da cólera do filho. Este ausentara-se para Chaves, no momento em que a filha entrara em casa. De lá, escrevendo à mãe, dizia-lhe que desse à infame algum destino, porque, enquanto a sua presença envergonhasse aquela casa, nunca ele tornaria ali.

Daquela família estava em Lisboa um magistrado, tio materno de Miquelina. Foi este o encarregado de recebê-la durante alguns meses na sua casa.

Não se passaram muitos dias, sem que Miquelina revelasse os seus instintos. Namorava escandalosamente um homem, sem nome, que frequentava as janelas de um alfaiate, que morava em frente.

O magistrado suspeitou, e proibiu-lhe o uso das janelas. O homem, que, por força, havia de ter um nome, e poderia muito bem chamar-se José Maria, não era tão escasso de meios que não comprasse um criado da casa. O criado era o intermédio da correspondência, menos da última carta, surpreendida pelo magistrado. Esta carta autorizava José Maria a empregar a força judicial para tirar de casa Miquelina. Nesse mesmo dia, a perigosa “donzela” foi mudada para casa de um general, cunhado de seu tio.

O general era solteiro, homem de cinquenta e tantos anos bem conservados, admirador das boas mulheres, e vigoroso ainda para não desmentir o culto, quando se lhe pedissem provas práticas das teorias um pouco irrisórias na sua idade.

Tinha consigo duas irmãs, mais novas, que, mutatis mutandis, professavam as ideias do irmão.

Dito isto, vê-se que a casa, onde Miquelina foi reclusa, era um viveiro de moral.

Foi bem recebida, e até muito bem aconselhada. As irmãs do general falavam muito da virtude e da honra. Quem as não conhecesse, acrescentaria duas mártires inéditas às onze mil virgens conhecidas, de que Byron duvidou, e eu não me sinto muito propenso a acreditar, nem o meu amigo Valadares.

O José Maria não sei que fim levou. Seria algum desses quatro que em 1845 se precipitaram dos “Arcos das Águas-livres!?” Se foi, não andou bem, porque fez as coisas de modo que ninguém fala dele. Os Werthers sabem escolher as ocasiões, senão... é melhor deixarem-se morrer de tédio, que é a morte que me espera a mim, e a ti, leitor, no fim deste livro, se não morreres no meio.

O general namorou Miquelina. Namorando-a, seduziu-a. Seduzindo-a, abriu-lhe a outra meia porta da corrupção.

Porque foi assim que as coisas se passaram:

Miquelina afeiçoou-se ao general, como se afeiçoara a Valadares, ao lacaio, e ao José Maria. Trazia o cunho da perdição! Era uma destas desgraçadas que a gente vê cair, cair, cair a despeito de todos os estorvos! Que Deus, ou que demônio imprime o movimento nestas máquinas, sem coração nem cabeça? Não se sabe! A verdade é que eu sinto vontade de chorar essas vítimas cegas de um destino bárbaro, e tenho fúrias de blasfemo quando me dizem que Deus se intromete nas coisas deste mundo... Vamos adiante, senão atiro a pena fora, e rasgo o papel...

Ora já vedes que o general era um devasso, e a pobre menina deve merecer-vos uma pouca de compaixão, se eu vos afianço que o amou, até ao ciúme.

Disseram-lhe um dia que uma mulher de capote e lenço entrara no quarto do general, que era ao rés da rua. Miquelina estava doente de cama. Ergueu-se com febre, vestiu-se precipitadamente, desceu as escadas cambaleando de fraqueza, escutou à porta do traidor, e ouviu risadas, e palavras obscenas.

Era noite, quando isto se passava.

As irmãs do general deram pela falta da hóspede, e desceram a procurar o irmão. Miquelina, quando as sentiu, na incerteza do que devia responder-lhes, fugiu. Fugindo, achou-se numa rua que não conhecia, atravessou umas poucas, chegou a uma praça onde encontrou umas mulheres esfarrapadas que a trataram por tu, e fugiu até deparar as escadas de uma igreja, onde um soldado lhe veio dizer palavras desconhecidas.

Fugiu ainda, mas a desgraça corria a par dela.

O frio da noite, e a febre do coração aniquilaram-na. Sentou-se num portal, e desmaiou. Uma patrulha deu-lhe com a ponta do pé, e a desgraçada não respondeu. Tomaram-na como bêbada, e continuaram o seu caminho.

Outra patrulha sacudiu-lhe a cabeça pelos cabelos. Miquelina gemeu, abriu os olhos, e pediu erguendo as mãos que a deixassem morrer. Estava perto do hospital de São José. Os soldados pediram socorro ao próximo corpo da guarda, e mandaram-na para lá.

No hospital, deram-lhe uma cama na enfermaria... não sabemos que enfermaria, mas parece que o facultativo, na visita de manhã, mandou retirar a mulher para um quarto particular, pago à sua custa.

Que foi o que ela disse ao médico? Nada. Seria nele um arrojo de caridade? Não. “Pois não tens uma palavra boa para explicar uma ação nobre?” Nobilíssimos leitores, deixai-me supor que sois melhores pessoas que o médico. O que ele queria era uma criada, com as feições de Miquelina. As despesas da cura, além de ficarem encontradas no seu ordenado, seriam pequenas. Uma febre benigna não resistiria ao tratamento de oito dias.

Mas, ao sétimo, Miquelina fugiu do hospital, favorecida pela enfermeira, em cuja casa foi residir.

Desde esse dia, chamou-se  Rosa...

 — Que bonita rapariga é aquela que está em casa da A*** na calçada do Duque?

 — É uma rapariga da província, pela pronúncia: chama-se Rosa, mas não diz de onde é, nem quem a trouxe ali.

 — Parece bem educada!

 — Parece... e não é desbocada... Não tem ainda a consciência do seu ofício... É necessário que perverta a linguagem, se quiser celebrizar-se...

 — De quem falam vocês? — disse um terceiro, que na Praça do Rocio veio associar-se ao grupo.

 — Daquela Rosa, que tu denominaste um querubim precipitado na tua poesia.

 — E é...

 — É!... pois tu sabes a vida dela?

 — Sei...

 — Contas?

 — Não...

Este terceiro era Valadares.

Teve ele coragem de vê-la face a face?

Não teve: entrou ali com uma máscara na terça feira de Entrudo.

Conheceu-o ela? Conheceu: porque no dia imediato desapareceu de Lisboa.

É por isso que eu a vi no Porto em 1848...

O general é hoje conde. O menos torpe dos florões da sua coroa é este... Foi honrado e hospitaleiro!...

Valadares embriaga-se todos os dias, e não pode assim viver muitos mais, porque já não sente no paladar o ácido do conhaque.

E Miquelina?

Há mais de seis anos que os estudantes da escola médico-cirúrgica do Porto a retalharam fibra a fibra com os seus escalpelos observadores.

Já vedes que morreu no hospital, e foi em pedaços atirada ao monturo da Santa Casa, depois de se prestar, como cadáver, às lucubrações da anatomia.

Podeis não acreditar tudo, ou parte disto... Olhai, porém, que vos não dei aqui a verdade descarada como ela é no conto melindroso, que vos contei. Escondi-vos metade.

Minha Estante de Livros (História de Canções, de Wagner Homem)

Chico Buarque

O livro conta as histórias por trás das canções de Chico Buarque. Responsável pelo site do cantor e compositor, Wagner Homem se vale do vasto conhecimento da obra de Chico para destrinchar, com minúcias, episódios relacionados a mais de uma centena de canções do artista. Em cada abertura de capítulo, uma apresentação da cena sociopolítica vigente na época, com exceção dos dois últimos um deles sobre a morte de Tom Jobim, em 1994, em Nova York. O livro é riquíssimo em personagens de todos os matizes. Está ali a nata da cultura nacional, gente como Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Edu Lobo, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Toquinho e Zuzu Angel. Estão também histórias deliciosas como a da parceria de Chico e Vinicius na letra de Gente humilde, música de Garoto. Enciumado com as parcerias de Chico e Tom Jobim (na época eram três), Vinicius pediu que Chico desse um jeito na letra. O amigo nada achou de errado numa letra irretocável e só acrescentou uma estrofe. Foi o suficiente para Vinicius alardear a Tom que agora também era parceirinho de Chico.

Tom Jobim
A história da música brasileira e da Bossa Nova passa pelo piano e o talento de Tom Jobim. Canções como Garota de Ipanema, Chega de Saudade, Retrato em Branco e Preto, Águas de Março e outras, foram compostas por ele em parceria com célebres nomes, dentre os quais Newton Mendonça, Chico Buarque e Vinicius de Moraes - poeta, amigo e 'irmão de copo'. Neste volume da coleção Histórias de Canções, pretende-se apresentar a trajetória de Tom Jobim por meio de curiosidades sobre as músicas que o tornaram famoso e admirado em todo o mundo.

Fonte:
Amazon 

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Versejando 81

 

Benedita Azevedo (Pergunte à lua...)

A literatura está repleta de histórias de casais que separam, voltam, separam... Um cônjuge mata o outro e tantas... e tantas... peripécias. Mas, nada se compara ao que aconteceu com John e Mary.
 
Mary, moça que parecia a todos um modelo de recato e meiguice foi abordada por John, numa paquera de rua. Ela fugiu e se refugiou na primeira porta aberta que encontrou. O jovem a seguiu e percebeu que ali era o seu ambiente de trabalho.

John perguntou a Mary se poderiam conversar em outro lugar. Preocupada com os olhares dos colegas de trabalho, passou seu cartão para livrar-se daquela incômoda presença.

Quase completando quarenta anos e muitos relacionamentos desfeitos, John atraía pretendentes pela beleza física. Loiro de um lindo olhar azul, cor do céu, parecia não combinar com a velha jaqueta de couro e sapatos furados de mesmo material.

Sentada à sua mesa da Casa de Empréstimos Consignados, onde trabalhava, Mary falou alto com os companheiros:

- Que cara estranho! Seguiu-me por todo o quarteirão. Tão bonito, mas tão andrajoso!

Ninguém se importou com a observação de Mary.

No dia seguinte, com o mesmo traje, lá estava John na esquina. Ela apressou o passo e entrou no trabalho. Desta vez ele desistiu e desapareceu. Mary ficou cismada por alguns dias, mas, o trabalho era intenso e acabou esquecendo.

Sua rotina de casa para o trabalho e do trabalho para casa foi quebrada quando, naquela noite, andando rápido para descontar o atraso de um cliente retardatário, viu despencar do bonde de Santa Tereza, um corpo bem à sua frente.

De coração agitado pela cena inesperada, nem percebeu a lua brilhando sobre os Arcos da Lapa. Parou para se recompor. Conhecia aquela roupa, aqueles sapatos... Não podia ser, ela estava equivocada pelo stress do dia desgastante de trabalho. Olharia ou não o rosto do infortunado homem? Um grupo de pessoas rodeou o infeliz. Mary quase sem perceber, olhou para o local de onde o homem caíra. Deparou-se com a luz fria da lua e não pode evitar uma exclamação diante daquele paradoxo. Por que uma coisa assim acontecia no coração da “Cidade Maravilhosa”, em um dos pontos mais bonitos do Centro? Naquele momento, um mendigo chegou com um cobertor e cobriu o corpo.

Mary ficou paralisada. Não conseguia sair do lugar. Com esforço deu alguns passos e ficou ali olhando o corpo coberto... Uma vontade enorme de desvendar a identidade da criatura. Seria alguém conhecido? Havia anos que trabalhava ali pela redondeza e nunca vira cena tão chocante.

Um curioso afastou a coberta e a moça pode ver o rosto de John ainda de olhos abertos, refletindo o luar dos Arcos da Lapa.

Fonte:
Recanto das Letras da autora
https://www.recantodasletras.com.br/contos/3432046

Auta de Souza (Poemas Escolhidos) – 5

NA LUZ PERENE


Não te rendas aos golpes da amargura,
Nem conserves a mágoa no teu ninho;
A dor que atinge extremos de tortura
É refúgio real no torvelinho.

Colhe as flores da estrada com brandura,
E planta novos sonhos de carinho;
Socorre a inquietação que te procura,
E eis que a paz te enobrece no caminho.

Se te escasseia o amor à própria vida,
Descerás para a sombra, instante a instante,
Ao tributo fatal da morte infrene.

Mas se buscas sorrir e dar guarida
Ao cansado viajor de passo errante,
Renascerás, feliz, na Luz Perene!…
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OFERENDA

Nina irmã, devotada mensageira
Dos celeiros de amor da eterna aurora,
Deus te abençoe a luz que resplendora
Nos caminhos da vida verdadeira.

Vai, minha irmã, por este mundo afora,
Cura a lepra do mal e da cegueira,
Que as tuas mãos de santa e de enfermeira
Mitiguem toda a angústia de quem chora.

Nesta noite de paz e de esperanças,
Guarda no teu escrínio de lembranças
Nossas preces de dúlcida saudade...
Recebe, nas celestes primaveras,
Nossas rosas votivas de outras eras,
Nossos lírios de amor da eternidade!
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ORAÇÃO DE HOJE

Hoje, Senhor, resplende novo dia,
Que deveres e júbilos condensa,
Nova esperança luminosa e imensa
Renascendo da noite espessa e fria...

Dá-me trabalho por excelso guia,
Ensina-me a servir sem recompensa
E a fazer do amargor de cada ofensa
Uma prece de amor e de alegria.

Que eu Te veja na dor com que me elevas
Por flamejante sol, rompendo as trevas,
Ante a beleza do celeste abrigo!

E que eu possa seguir na caravana
Dos que procuram na bondade humana
A glória oculta de viver contigo.
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PÁGINA DE FÉ

Alma cansada e triste, alma sincera,
Se a dor por noite em lágrimas te alcança,
Acende em prece o lume da esperança,
Onde o grilhão da mágoa te encarcera!

Ante a sombra que assalta, esfera a esfera,
Se surge a ofensa por sinistra lança,
Na tormenta do mal que investe e avança,
Perdoa, silencia, ajuda, espera!...

Esquecida na cela da amargura,
Não te revoltes contra a senda escura.
Ergue-te e serve, embora torturada...

Luta, chora, padece, mas confia,
Das trevas nasce a bênção de outro dia
Nas promessas de nova madrugada!…
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PENSA

Antes de maldizer a própria sorte,
Pensa nos tristes de alma consumida,
Que vagueiam nas lágrimas da vida,
Sem migalhas de amor que os reconforte.

Que a retaguarda escura nos exorte!
Contemplemos a noite indefinida
Dos que seguem sem pão e sem guarida,
Entre a dor e a aflição, a treva e a morte!...

Pensa e traze ao que choram no caminho
A fatia de luz do teu caminho,
Pelas mãos da bondade, terna e boa...

E encontrarás no pranto da amargura
A fonte cristalina que te apura
E a presença do céu que te abençoa.

Fonte:
Francisco Cândido Xavier. Auta de Souza. Ebook obtido na Biblioteca Espírita.

Sammis Reachers (Antônio e os malandros voadores)

Conheci Antônio enquanto ele trabalhava como cobrador na linha 24 (Palmeiras x Gragoatá), em Niterói. Ele já era um coroa, e sempre gente fina. Antônio hoje está encostado pelo INSS, e prestes a se aposentar. Mas, nos idos da década de 80, Antônio era um jovem cobrador iniciando seus trabalhos na empresa Ingá. Tirava o horário do chamado vice-pelanca (penúltimo horário da tarde), 16:45, na linha 49 circular.

Ao entrar na empresa, naquela época, Antônio se deparou com uma realidade singular: as caronas eram 'permitidas', ou melhor, toleradas: se algum fiscal visse a dupla dando carona, deixava passar batido ou no máximo chamava verbalmente a atenção dos responsáveis. Mas, se visse o cobrador ou o motorista pegando dinheiro, aí era rua na certa. O jovem Antônio, muito temeroso, evitava seja dar carona, seja principalmente, quando a carona era 'inevitável', aceitar qualquer dinheiro.

Pois bem. Uma bela tarde, já em início de noite, nosso Antônio vinha em sua terceira viagem, na altura do que hoje é o terminal rodoviário João Goulart (que na época não    existia). Tremendo verão, os reflexos do dia escaldante ainda se faziam sentir. Eis que sinalizam ao veículo e embarcam dois elementos um tanto suspeitos. Antônio estranhou: os camaradas estavam de blusas de manga longa, naquele início de noite muito quente. As roletas, claro, ficavam na parte de trás do veículo.

Um dos rapazes, sacando uma moeda e fazendo menção de dá-la para Antônio, disse:

- Segura aí essa moeda, sangue bom. Nós vamos dar um voo (passar por baixo da roleta).

Antônio recusou a moeda e disse que não poderia deixá-los passar. A fiscalização estava acirrada e, infelizmente, seria preciso que pagassem a passagem.

Um dos malandros, se irritando, sacou um grande bolo de notas de dinheiro, e disse para o cobrador:

- Dinheiro nós temos, otário. O negócio é que nós não queremos pagar passagem. Libera logo pra gente passar aí, vambora, rapál

Enquanto esse diálogo transcorria, um cidadão, sentado próximo ao cobrador, levantou-se e, já empunhando um tremendo três oitão e apontando-o para os caras, disse para Antônio;

- Não está vendo que eles querem te assaltar, rapaz? Num calor desses e esses dois de blusa comprida?

Os passageiros presentes no veículo, ao perceberem toda essa movimentação, ficaram assustados. Uma velhinha começou a gritar.

- Calma, calma todo mundo! Eu sou policial!

Os dois malandros olhavam assustados para o policial. Antônio, atordoado, não sabia o que fazer.

- Vocês vão pular ou vão morrer aqui? - Disse o policial.

E, antes que os elementos pudessem responder, ele gritou:

- Motorista, acelera! Acelera e abre a porta!!!

O motorista, que de santo não tinha nada, entendeu logo o recado. Acelerou à toda a velha carroça, e lá quase na altura do Moinho Atlântico, abriu a porta.

- Bora cambada! Ou pula ou morre! Ou pula ou morre!!!! - gritou o policial.

Sem pensar duas vezes, os dois elementos saltaram do ônibus em grande velocidade, dois malandros voadores...

Olhando para trás, tudo que Antônio pôde ver foram os dois malandros, pássaros sem asas, capotando diversas vezes no asfalto duro. Duro e ainda quente...

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes
 do dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

terça-feira, 12 de outubro de 2021

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 10: Nádia Huguenin

 

Hans Christian Andersen (O que nos conta o vento)


O vento é tão alegre como uma criança. Já o viram correr, pelos campos, movendo o trigo, como as ondas do mar? É isto a dança do vento; mas ele não só dança, também canta. Vão ouvir como ele canta.

- Zum!... Zu!... Zê, ss... Ss... Ss!... - está ele dizendo.

Se não houvesse uns senhores muito graves, que usam chapéus que rodam pelas ruas, a vida na cidade seria para mim grande aborrecimento. Todas as distrações fugiram das cidades. Há cem anos não havia nada de que eu mais gostasse do que ir soprando pelas ruas abaixo. Mas, então, as ruas eram uma exposição de quadros divertidos, mais que lugares de comércio.

Todas as casas tinham sua vitrina ou tabuleta. Havia a vitrina do alfaiate, cheia de figurinos de várias cores, querendo mostrar que o alfaiate era capaz de transformar o homem mais esfarrapado num elegante senhor.

O barbeiro tinha por cima da porta um grande pau com uma navalha de madeira pendurada; peixes, chapéus, queijos, bolas, enfim, todas as coisas que se vendiam na cidade, eram representadas nas tabuletas; e quando eu as fazia oscilar e as punha a bater umas contra as outras, produziam um barulho ensurdecedor.

Que momentos tão alegres e divertidos passei eu numa noite em que me meti pelos mostradores! Tinha jurado que me havia de divertir.

O vento calou-se, dando em seguida um grito que estremeceu a casa.

- Oh! Como me lembro bem! - continuou ele a gritar pela varanda. - Era num dia em que os sapateiros se mudavam do antigo estabelecimento para o novo, levando consigo todas as tabuletas. Naqueles tempos, que já vão bem longe, os sapateiros eram ricos e poderosos e valia a pena ver a procissão que eles formavam. Havia um palhaço que abria a marcha, uma figura grotesca com a cara negra e uma roupa feita de retalhos. Todos riam. Hoje já não se divertem desta maneira. Atrás do palhaço ia a música, seguida dos homens que levavam os estandartes, e a grande bandeira de seda do grêmio dos sapateiros, enfeitada com uma grande bota preta. Subiu a um andaime, no qual tinha que fixar uma tabuleta, o sapateiro que presidia a associação e começou a discursar; mas o palhaço, que subiu atrás dele, fazia rir às gargalhadas o público, com os seus trejeitos. Eu quis também tomar parte na brincadeira e comecei a bater com as tabuletas umas nas outras e o orador desceu dizendo:

"Não é possível fazer-me ouvir por causa do vento, mas vamos fixar a tabuleta."

Mas eu havia resolvido - continuou o vento - que a tabuleta não se fixasse. Soprei até que o avental do sapateiro lhe tapasse os olhos, fiz cair a escada e levei-lhe o chapéu e a cabeleira. Por fim cansaram-se de lutar comigo e foram-se todos para a sua nova casa para celebrarem o banquete.

O vento deu um salto e prosseguiu:

- Eu estava naquele dia disposto a fazer mal. Tenho conseguido divertir-me com os sapateiros, andava pelas ruas tentando novas proezas. Comecei a tirar os tetos das casas velhas, mas ainda sentia vontade de fazer pior. Continuei a fazer cirandar tudo com muita habilidade. Quando a gente da cidade despertou, no dia seguinte, encontrou a tabuleta do Instituto Histórico num salão de bilhares e o Instituto tinha lá, em troca, a tabuleta arrancada de um asilo para crianças... Havia criadas e mamadeiras... Um peleiro tinha pintado na tabuleta uma raposa. Mudei a tabuleta para o outro lado da rua, para a casa de um conselheiro avarento, que pretendia passar por excelente pessoa. Toda a população se riu, sobretudo quando viu a tabuleta que eu tinha posto na casa de um juiz: era um pau com uma navalha de madeira. A mulher do juiz tinha o apelido de "A Navalha", por sua má língua.

Mas a partida mais original - continuou o vento com voz baixa - foi a que preguei a uma rica mulher que inventava grandes histórias contra os seus vizinhos. Pus na casa dela um letreiro que havia num solar abandonado e que dizia: "Aqui precisa-me de estrume."

Foram dias alegres - suspirou o vento - mas que já não voltam. Depois do que eu fiz nunca mais usaram aquelas tabuletas. Por minha causa muitos se envergonharam do seu comportamento e muitos homens nem queriam ouvir falar de mim e nas minhas travessuras.

O vento acabou de falar na varanda e, dando um grito muito agudo, foi-se embora.

Therezinha Dieguez Brisolla (Livro de Trovas) 2


À droga, ao fumo, à bebida,
- é o bom senso quem avisa -
se der a um deles guarida,
torna-se vício... e escraviza!
= = = = = = = = = = =

Ao conter minha ousadia
deu-me o destino, severo,
em vez do amor que eu queria,
a saudade... que eu não quero.
= = = = = = = = = = =

Ao disfarçar a paixão,
quando na rua se olharam
bem à luz do lampião,
suas sombras... se abraçaram!
= = = = = = = = = = =

Atua língua refreia,
porque a calúnia é um defeito
de quem pela vida alheia
não tem o menor respeito!
= = = = = = = = = = =

Deus cria a lua e as estrelas
e uma pergunta o inquieta:
- Quem poderá descrevê-las?
Então, Deus... cria o poeta!
= = = = = = = = = = =

Falo à minha confidente!...
Lá no céu, onde se esconde,
minha estrela, displicente,
pisca... pisca... e não responde!
= = = = = = = = = = =

Foi o segredo a guarida
que o nosso amor protegeu...
e a inconfidência da vida
nos fez Marília e Dirceu!
= = = = = = = = = = =

Há certos dias tristonhos
em que um livro me faz bem...
e enquanto não tenho sonhos,
vivo dos sonhos de alguém.
= = = = = = = = = = =

Meu tempo é o da serenata...
do flerte... da matinê...
da valsa... terno e gravata...
do primeiro amor... você!
= = = = = = = = = = =

Não acho coisas no chão
porque não consigo vê-las.
Sou poeta, eis a razão:
- Ando à procura de estrelas!
= = = = = = = = = = =

O seu olhar tem tal brilho
que chega à sublimidade...
Toda mãe, que espera um filho,
tem um "quê" de majestade!
= = = = = = = = = = =

Passam sorrindo ao meu lado
avó e neto... amor puro!
Nela, revivo o passado...
Nele, adivinho o futuro.
= = = = = = = = = = =

Perguntei ao coração
se este amor o faz culpado.
Respondeu - e tem razão -
"Não amar é que é pecado".
= = = = = = = = = = =

Por mais que o mundo me agrida,
minha fé não arrefece...
Mesmo no inverno da vida,
Deus manda o sol que me aquece!
= = = = = = = = = = =

O homem, a cada investida,
em sua ambição funesta,
nos rouba o direito à vida
ao destruir a floresta.
= = = = = = = = = = =

Quando desfazes a trança,
jogando longe teus grampos,
tu me recordas a dança
do trigo dourando os campos!
= = = = = = = = = = =

Que eu não me esqueça, jamais,
que a moral é a diretriz
e ter ética é bem mais
do que a gente pensa e diz!
= = = = = = = = = = =

Que eu tenha, no dia a dia,
cautela na trajetória...
Meus passos, na travessia
gravam, no chão, minha história.
= = = = = = = = = = =

Que não haja cerca ou muro...
que entre as flores, no quintal,
a criança, no futuro,
celebre a paz mundial!
= = = = = = = = = = =

Se a vida me desafia
e eu luto e venço a batalha,
o destino, à revelia,
põe noutro peito... a medalha.
= = = = = = = = = = =

Sorrindo, tento esconder
toda a mágoa que me inspiras.
Finges me amar... finjo crer...
Nós somos duas mentiras!
= = = = = = = = = = =

Sua mensagem chegou...
Rasguei a carta e, serena,
lembrei que o tempo passou
e agora é tarde... Que pena!
= = = = = = = = = = =

Sufoca a dor em meu peito,
meu coração sonhador...
e ajeita o ninho desfeito,
à espera de um novo amor!
= = = = = = = = = = =

Tantas juras de mãos dadas!...
Mas, a vida em seus desvãos,
ao namoro armou ciladas
e separou nossas mãos!
= = = = = = = = = = =

Tanto amor na despedida!!!
Voltas... e eu não sinto nada...
Pior que o adeus, na partida,
foi nosso adeus, na chegada!
= = = = = = = = = = =

Uma foto... uma missiva...
que eu guardei da mocidade.
Uma flor, a sempre-viva
e a sempre viva... saudade!

Fonte:
Therezinha Dieguez Brisolla. À procura de estrelas.
Porto Alegre/RS: Odisséia, 2014.
Livro enviado pela trovadora.

Hermínio Bello de Carvalho (Lia de Itamaracá)

Essa ciranda quem me deu foi Lia
Que mora na Ilha de Itamaracá
(Teca Calazans)


Enquanto Lia não vem, é Dona Creusa que vai desfiando histórias. É a proprietária do "Sargaço" que comprou em 1973, ali no Jaguaribe. Trabalha com frutos do mar em geral: peixada, lagosta, filé de agulha, ostra, marisco, camarão. E tem sururu, pirão de guaiamum, e, é claro, cerveja bem geladinha — indispensável quando o sol castiga fone a ilha de Itamaracá. Não, não ganha muito dinheiro não.

Agora mesmo, veja só, o bar só tem vocês aqui. Vocês, eu, o Dr. Bernardo, diretor do Manicômio, e o Gilberto Marques Paulo — Secretário de Justiça e, nas horas vagas, tocador de violão e seresteiro. E mais o Juca, filho de José Lopes — ex-Prefeito da ilha. Gilberto acaba de me fazer visitar a Casa Grande do Presídio. Estranho aqueles homens todos morando em mil e setecentos hectares de terra, cada um com sua família em casas bem feitinhas, plantando as verduras que comem, andando livres pela Ilha. É um trabalho de humanização que vem aplicando às penitenciárias, tarefa na qual se engajou Célia, sua mulher. Ela cuida dos menores, antes que cheguem à delinquência. Pergunto se eles não fogem, tão fácil é o caminho da fuga. Nos dias de hoje, com moradia e comida garantida para si e a família — para que se evadir? Não me dou ainda por satisfeito, vou aqui e ali conversando com alguns presidiários. Visito a Casa da Farinha, vejo-a em pleno funcionamento. Vasculho as estradas, puxo conversa e me lembro de um tempo em que tinha. um programa de violão e poesia que era transmitido de uma rádio instalada na Frei Caneca. Vivaldi e Fernando Pessoa eram de vez em quando entrecortados por gritos pavorosos, a pancadaria comendo solta no meio da noite. Um dia contarei essa história, passada nos idos de cinquenta.

"Lia já vem". Teca Calazans costumava passar uns tempos na Ilha e ia às cirandas de Dona Duda, no Janga — subúrbio de Olinda. E me parece que foi por lá que conheceu a Lia. Ouviu-lhe as cirandas, anotou algumas, e ainda compôs outra que ficou famosa em todo o Brasil, cantada pelo Quinteto Violado: "Essa ciranda quem me deu foi Lia/ Que mora na Ilha de Itamaracá". E aí a cirandeira virou símbolo da ilha, parte integrante de seu folclore. E vem ela chegando.

Bonita, essa Lia! Enorme mulher de metro e oitenta. Os cabelos desarrumados, blusa florida e calça jeans, pés gigantescos em sandália de couro cru. Não está nada à vontade, devemos ser mais alguns daqueles forasteiros que vêm para lhe tirar fotografias, posar ao lado se possível com um sorriso que por enquanto economiza, como também raciona as palavras. Mais mimetiza do que fala.

Dona Creusa parece um pouco a Neuma da Mangueira, bonita como ela. Cabelos brancos, manda renovar a cerveja e a cachaça, os filés de agulha. Queixa-se do preço do camarão, diz que todo ano tem Festival de Cirandas, mas que a vontade dela é botar ali em freme do bar uma espécie de palco cheio de luz. Para que Lia cante e cirandeie. No espaço que tinha, ergueram um barraco inútil que só atrapalhou a vida do bar. "E vive de que a Lia?" Da profissão de merendeira escolar. empregada do Estado. "Ganho salário". Quer dizer: esse mísero salário mínimo, que é uma vigésima parte do preço de uma diária das suítes presidenciais que nós pagamos para a primeira-dama desfilar seu eterno sorriso, coisa aliás muito rara no rosto de Lia, a de Itamaracá.

As cirandas são famosas: além do canto de Lia, existem os músicos que a acompanham: um surdo, piston, tarol e ganzá. Às vezes, ao invés do piston, um saxofone. Disco já gravou sim, na Rozenblit — isso em 1977. Diz que não viu a cor do dinheiro. Vai lá dentro do bar e traz a capa: Lia bonita. sorridente, florida. Cheirosa. Lamenta que lhe roubem as músicas que faz, mas o que se há de fazer? Direito autoral, direitos conexos — são coisas de que ela não ouviu falar, sabe apenas que a música a empobrece mais ainda. Pergunto se ela não quer participar do disco do Capiba, diz que vai sim e não tenho muito por que acreditar. Promessas deve receber a toda hora, nota-se isso no olhar entristecido que quase nunca se fixa no interlocutor, vagueia para um lado para outro, como se buscasse na linha do horizonte as palavras de seu fraseado curto, quase monocórdio.

E como é que é na hora da ciranda. hein Lia? “É cachorro amarrado, pau comendo!" Ai desamarra a boca, solta-se um pouco mais, parece que vejo os seios bufarem quando fala em ciranda. E começa cantar uma que Capiba lhe fez de presente: "Minha ciranda não é minha só/ é de todos nós!/ a melodia principal quem tira/ é a primeira voz/ pra se dançar cirandada/ juntamos mão com mão/ formando uma roda / cantando uma canção". Combino quase tudo: o dinheirinho que vai ganhar. ela fala dos músicos que precisa arregimentar. Vem mais uma rodada de pinga e mais peixe-agulha. Lia vai buscar seu Bezerra, do saxofone; e Marcelo do ganzá, Genuário do tarol, do surdo: precisa deles para a gravação.

A Ilha de Itamaracá começa a se parecer um pouco com a da Jipóia ou Jibóia, como queiram: lá de Angra dos Reis. Não a de agora, que nem mais a quero conhecer. Mas a dos tempos de meu avô Gregório que não conheci, e que era tido como o melhor violeiro do Estado do Rio.

A velha Florinda, sua mulher, vinha trazendo aviso:"Lá na ilha Grande tem um violeiro que anda prosando que é melhor do que você. Se aprepare”. Ele ia temperar (afinar) a viola, ela fazer o farnel. Desciam os dois, ela pegava o remo e ele só temperando, temperando. E que só voltasse vencedor. Essa herança de violeiro passou para os filhos, pegou de raspão num neto que ainda chegou a dedilhar uns clássicos e largou tudo pela poesia, mas agora ressurgiu num bisneto que está firme em Leo Brouwer, Villa-Lobos, Torroba. Lembro meu sobrinho Saulo, fico orgulhoso de meu avô Gregório e largo meus devaneios porque é hora de voltar ao mundo.

Claro que deveria explicar o que estou fazendo aqui em Recife: um disco para Capiba, história que já comecei a contar há duas semanas passadas e correu firme pelo Recife inteiro: todo o mundo de Pasquim na mão. Cansaço, emoção: e lá vou eu parar na Unicordis, outra crise de hipertensão — eu ali domesticado na sala branca, monitorizado para um eletro que vai apontar a polirritmia dos batimentos cardíacos, o coração já em compasso de frevo dedilhado pela "Valsa verde" de Capiba, pelo choro que Jacaré fez em minha homenagem, mas também pelos aborrecimentos todos que cercam a vida de um fazedor de cultura, de um brasileiro irremediável e que anda chorando à toa pelos cantos da vida — a serenidade escoando aos poucos, a tensão desses dias ameaçadores provocando a hipertensão — e ainda mais agora essa tal de Lia de Itamaracá, ora vejam só.

Lia chega ao estúdio: seu Bezerra se perdeu no caminho, daqui a pouco chegará. Os meninos da "Casa do Guia Mirim" de Olinda estão por aqui, para deitar recitação no disco de Capiba. E uma ciranda come solta no estúdio três por quatro da Somax. Lia cirandeira de Itamaracá ,toda sorridente e festeira, primeira-dama destituída de outros privilégios que não seu próprio talento de mulher do povo, assalariada com um mínimo que não lhe roubou ainda toda a alegria.

Estranha música, essa de seu povo! As cirandas pernambucanas de Lia estão na boca de toda a gente, na alegria das pessoas se dando as mãos. cirandando em volta dela. E na verdade essa mulher de quarenta anos, meiga às vezes e justamente desconfiada quase sempre, e para muitos apenas uma dessas peças de artesanato urdidas em barro e que vão ornamentar uma estante — até que se espatifem e ganham o caminho da lixeira. Pegaram o disco de Lia e o trataram como se fosse de barro. Nem ela tem um só, até porque nem escutaria: vitrola é coisa que deve existir em sua vida de merendeira escolar. Volta e meia um turista de ar dementado virá tirar-lhe uma foto e nisso eu fico toda hora me lembrando de meu querido Camafeu de Oxossi, toda hora requisitado no extinto Mercado Modelo para exibir o sorriso, o chapéu imenso, a fama de melhor sabedor da Bahia, elogio que lhe pespegou o Jorge Amado.

Deixo Lia à porta do estúdio. Parece até que está feliz. Por pouquinho deixa de cruzar com Mestre Capiba, que vem cheio de guizos no rosto, a felicidade lhe tomando a alma.

Vai com Deus, Lia! toma conta dele direitinho.
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Hermínio Bello de Carvalho nasceu em 1935, no Rio de Janeiro (RJ). Poeta, escritor, compositor e produtor musical, tem toda sua vida dedicada à música, com parceiros como Pixinguinha, Radamés Gnattali, Paulinho da Viola, Ivone Lara, Cartola, Chico Buarque, Baden Powell, e muitos mais. Foi o criador de "Rosa de Ouro", "Elizeth Cardoso, Jacob do Bandolim, Zimbo Trio e o Época de Ouro", "Caymmi em Concerto", entre outros. Tem 13 livros publicados, como "Poemas do amor maldito", "Mudando de conversa", "Cartas cariocas para Mário de Andrade", "Contradigo" e "Sessão Passatempo".

Fonte:
Jornal “Pasquim” nº 796, Rio de Janeiro (RJ): edição de 
27/09/1984 a 03/10/1984.