sábado, 30 de dezembro de 2023

Filemon Martins (Aquarela de Trovas) 27

 



Mensagem na Garrafa – 67 –

Içami Tiba
São Paulo/SP, 1941 – 2015

Se você abre uma porta, você pode ou não entrar em uma nova sala. Você pode não entrar e ficar observando a vida. Mas se você vence a dúvida, o temor, e entra, dá um grande passo: nesta sala vive-se! Mas, também, tem um preço... São inúmeras outras portas que você descobre. Às vezes curte-se mil e uma. O grande segredo é saber quando e qual porta deve ser aberta. A vida não é rigorosa, ela propicia erros e acertos. Os erros podem ser transformados em acertos quando com eles se aprende. Não existe a segurança do acerto eterno.

A vida é generosa, a cada sala que se vive, descobre-se tantas outras portas. E a vida enriquece quem se arrisca a abrir novas portas. Ela privilegia quem descobre seus segredos e generosamente oferece afortunadas portas. Mas a vida também pode ser dura e severa. Se você não ultrapassar a porta, terá sempre a mesma porta pela frente. É a repetição perante a criação, é a monotonia monocromática perante a multiplicidade das cores, é a estagnação da vida... Para a vida, as portas não são obstáculos, mas diferentes passagens!

A. A. de Assis (Por quem os sinos dobram?)

 Nenhum homem é uma ilha (no man is an island); todo homem é um pedaço de um continente, uma parte de um todo. Se um pequeno fragmento de terra é levado pelo mar, o continente fica menor. Assim também a morte de qualquer ser humano me diminui, leva um pouquinho de mim, porque sou parte da humanidade. Por isso, quando alguém morre, não pergunte por quem os sinos dobram (for whom the bells toll); eles dobram por mim, dobram por você, por todos nós. 


Esses versos célebres do poeta inglês John Donne (1572-1631 ) soam sempre muito fortes – e aqui em Maringá parece que mais fortes ainda –, especialmente quando nos despedimos de um pioneiro ou pioneira. Faz poucos dias foram lembrados, por exemplo, numa roda de velhos amigos, durante o velório de uma pessoa queridíssima – Dona Zaia (a poeta Maria Bastos de Carvalho), esposa do saudoso contabilista, jornalista e também poeta Benedito Moreira de Carvalho. Aliás, numa coincidência comovente: ela foi para o céu exatamente no mesmo dia (21 de abril) e na mesma hora em que Benedito partira 23 anos antes.   

Mas os sinos não dobraram somente por Dona Zaia; dobraram por todos nós, visto que com ela foi um pouquinho de cada um dos que, como ela e Benedito, ajudamos a formar esta cidade.

No princípio eram poucas famílias, depois aos poucos foram chegando outras, cada qual ajudando cada qual a dar os primeiros passos. A população cresceu muito nesse meio tempo, no entanto ainda somos bem íntimos. Claro que não conseguimos mais saber os nomes de todos/todas, no entanto de alguma forma nos conhecemos. Com frequência nos encontramos em algum lugar: na escola dos filhos, na igreja, no supermercado, no shopping, na farmácia, na fila do banco, na padaria, no estádio, na pista de caminhada, no clube.

“Não sei quem você é, mas sei que é daqui, é um dos nossos”. “Ah, sim, estivemos juntos numa festa de casamento”. “Vi sua foto no jornal”. “Você me atendeu na sua loja”. “Tive um problema no trânsito e você me ajudou”. “Conheço você pelo facebook”. “Vejo você passar quase todo dia em frente à minha casa”. “Você pode não se lembrar, mas conversamos há poucos dias na sala de espera do médico”. “Viajamos juntos uma vez”. “Você não me conhece, mas conheço seu pai há muitos anos: fomos colegas de trabalho numa imobiliária”.      

Por ser Maringá uma comunidade nova, e porque a gente vem caminhando juntos desde o comecinho, os laços se fizeram mais fortes, de modo que nos tornamos quase irmãos/irmãs.

Mas aí, num dia qualquer, a gente ouve ou lê a notícia de que fulano/fulana faleceu. Dá aquele choque. Que triste. Era uma ótima pessoa. Vai fazer muita falta. Então a gente muda a agenda e dá uma passada no velório para fazer uma oração e apresentar solidariedade aos familiares. Lá encontramos outros amigos e amigas que havia tempo a gente não via. Choramos juntos. Um pedacinho de cada um de nós está indo embora.

Nesses momentos, como Rubem Braga, “lembramos somente as coisas douradas e dizemos apenas ‘adeus’, a pequena palavra que se alonga como um canto de cigarra perdido numa tarde de domingo”.  

Ou talvez nos limitemos a murmurar o que recitou Machado para Carolina: “Trago-te flores – restos arrancados da terra que nos viu passar unidos”.

Ou simplesmente fechamos por um instante os olhos e ouvimos Santo Agostinho a nos dizer: “Você que aí ficou, siga em frente; a vida continua, linda como sempre foi”.

(Crônica publicada no Jornal do Povo em 01.junho.2023)

Hinos de Cidades Brasileiras (Fortaleza/CE)


Letra: Gustavo Barroso

Junto à sombra dos muros do forte
A pequena semente nasceu.
Em redor, para a glória do Norte,
A cidade sorrindo cresceu.
No esplendor da manhã cristalina,
Tens as bênçãos dos céus que são teus
E das ondas que o sol ilumina
As jangadas te dizem adeus.

Refrão
Fortaleza! Fortaleza!
Irmã do Sol e do mar,
Fortaleza! Fortaleza!
Sempre havemos de te amar

O emplumado e virente coqueiro
Da alva luz do luar colhe a flor
A Iracema lembrando o guerreiro,
De sua alma de virgem senhor.
Canta o mar nas areias ardentes
Dos teus bravos eternas canções:
Jangadeiros, caboclos valentes,
Dos escravos partindo os grilhões.

Refrão
Fortaleza! Fortaleza!
Irmã do Sol e do mar,
Fortaleza! Fortaleza!
Sempre havemos de te amar

Ao calor do teu sol ofuscante,
Os meninos se tornam viris,
A velhice se mostra pujante,
As mulheres formosas, gentis.
Nesta terra de luz e de vida
De estiagem por vezes hostil,
Pela Mãe de Jesus protegida,
Fortaleza és a Flor do Brasil.

Refrão
Fortaleza! Fortaleza!
Irmã do Sol e do mar,
Fortaleza! Fortaleza!
Sempre havemos de te amar

Machado de Assis (João Fernandes)

Há muitos anos, o sino de S. Francisco de Paula bateu duas horas. Desde pouco mais de meia noite deixou este rapaz, João Fernandes, o botequim da Rua do Hospício, onde lhe deram chá com torradas, e um charuto por cinco tostões. João Fernandes desceu pela Rua do Ouvidor, na esquina da dos Ourives viu uma patrulha. Na da Quitanda deu com dois caixeiros que conversavam antes de ir cada um para o seu armazém. Não os conhecia, mas presumiu que fossem tais, e acertou; eram ambos moços, quase imberbes. Falavam de amores.

— A Rosinha não tem razão, dizia um; eu conheço muito bem o Miranda...

— Estás enganado; o Miranda é uma besta.

 João Fernandes foi até à Rua Primeiro de Março; desandou, os dois caixeiros despediam-se; um seguiu para a Rua de S. Bento, outro para a de S. José.

— Vão dormir! suspirou ele.

Iam rareando os encontros. A patrulha caminhava até o largo de S. Francisco de Paula. No largo passaram dois vultos, ao longe. Três tilburis, parados junto à Escola Politécnica, aguardavam fregueses. João Fernandes, que vinha poupando o charuto, não pôde mais; não tendo fósforos, endireitou para um dos tilburis.

— Vamos, patrão, disse o cocheiro; para onde é?

— Não é serviço, não; você tem fósforos?

O cocheiro esfriou e respondeu calado, metendo a mão no bolso para tinir a caixa de fósforos; mas tão vagarosamente o fez que João Fernandes a tempo se lembrou de lhe cercear o favor, bastava permitir que acendesse o charuto na lanterna. Assim fez, e despediu-se agradecendo. Um fósforo sempre vale alguma coisa, disse ele sentenciosamente. O cocheiro resmungou um dito feio, tornou a embrulhar-se em si mesmo, e estirou-se na almofada. Era uma fria noite de junho. Tinha chovido de dia, mas agora não havia a menor nuvem no céu. Todas as estrelas rutilavam. Ventava um pouco — frio, mas brando.

Que não haja inverno para namorados, é natural; mas ainda assim era preciso que João Fernandes fosse namorado, e não o era. Não são amores que o levam rua abaixo, rua acima, a ouvir o sino de S. Francisco de Paula, a encontrar patrulhas, a acender o charuto na lanterna dos carros. Também não é poesia. Na cabeça deste pobre diabo de vinte e seis anos não arde imaginação alguma, que forceje por falar e verso ou prosa. Filosofia, menos. Certo, a roupa que o veste é descuidada, como os cabelos e a barba; mas não é por filosofia que os traz assim. Convém firmar bem um ponto; a nota de cinco tostões que ele deu pelo chá e pelo charuto foi a última que trazia. Não possuía agora nada mais, salvo uns dois vinténs, perdidos no bolso do colete. Vede a triste carteira velha que ele tirou agora, à luz do lampião, para ver se acha algum papel, naturalmente, ou outra coisa; está cheia de nada. Um lápis sem ponta, uma carta, um anúncio do Jornal do Comércio, em que se diz precisar alguém de um homem para cobrança. O anúncio era da véspera. Quando João Fernandes foi ter com o anunciante (era mais de meio-dia) achou o lugar ocupado.

Sim, não tem emprego. Para entender o resto, não vais crer que perdeu a chave da casa. Não a perdeu, não a possui. A chave está com o proprietário do cômodo que ele ocupou durante alguns meses, não tendo pago mais de dois, pelo que foi obrigado a despejá-lo antes de ontem. A noite passada achou meio de dormir em casa de um conhecido, a pretexto de ser tarde e estar com sono. Qualquer coisa servia, disse ele, uma esteira, uma rede, um canto, sem lençol, mas teve boa: cama e almoço. Esta noite não achou nada. A boa fada das camas fortuitas e dos amigos encontradiços andaria tresnoitada e dormia também. Quando lhe acontecia alguma destas (não era a primeira), João Fernandes só tinha dois ou três mil-réis, ia a alguma hospedaria e alugava um quarto pela noite; desta vez havia de contentar-se com a rua. Não era a primeira noite que passava ao relento; trazia o corpo e a alma curtidos de vigílias forçadas. As estrelas, ainda mais lindas que indiferentes, já o conheciam de longa data. A cidade estava deserta; o silêncio agravava a solidão.

— Três horas! murmurou João Fernandes no Rossio, voltando dos lados da Rua dos Inválidos. Agora amanhece tarde como o diabo.

Abotoou o paletó, e toca a imaginar. Era preciso empregar-se, e bem, para se não expor a não ter onde encostar a cabeça. Em que lugar dormiria no dia seguinte? Teve ideias petroleiras. Do petróleo ao incêndio é um passo. Oh! se houvesse um incêndio naquele momento! Ele correria ao lugar, e a gente, o alvoroço, a polícia e os bombeiros, todo o espetáculo faria correr o tempo depressa. Sim, podia muito bem arder uma casa velha, sem morrer ninguém, poucos trastes, e no seguro. Não era só distração, era também repouso. Haveria um pretexto para sentar-se em alguma soleira de porta. Agora, se o fizesse, as patrulhas poderiam desconfiar, ou recolhê-lo como vagabundo. A razão que o levava a andar sempre, sempre, era fazer crer, se alguém o visse, que ia para casa. Às vezes, não podia continuar, e parava a uma esquina, a uma parede; ouvindo passos, patrulha ou não, recomeçava a marcha. Passou um carro por ele, aberto, dois rapazes e duas mulheres dentro, cantando uma reminiscência de Offenbach. João Fernandes suspirou; uns tinham carro, outros nem cama... A sociedade é madrasta, rugiu ele.

A vista dos teatros azedou-lhe mais o espírito. Passara por eles, horas antes, vira-os cheios e iluminados, gente que se divertia, mulheres no saguão, sedas, flores, luvas, homens com relógio no colete e charuto na boca. E toda essa gente dormia agora, sonhando com a peça ou com os seus amores. João Fernandes pensou em fazer-se ator; não teria talento, nem era preciso muito para dizer o que estivesse no papel. Uma vez que o papel fosse bom, engraçado, ele faria rir. Ninguém faz rir com papéis tristes. A vida de artista era independente; bastava agradar ao público. E recordava as peças vistas, os atores conhecidos, as grandes barrigadas de riso que tivera. Também podia escrever uma comédia. Chegou a imaginar um enredo, sem advertir que eram reminiscências de várias outras composições.

Os varredores das ruas começaram a dificultar o trânsito com a poeira. João Fernandes entrou a desvairar ainda mais os passos. Foi assim que chegou à praia da Glória, onde gastou alguns minutos vendo e ouvindo o mar que batia na praia com força. Seguiu abaixo; ouviu o ganir de um cão, ao longe. Na rua alguns dormiam, outros fugiam, outros latiam, quando ele passava. Invejou os cães que dormiam; foi ao ponto de invejar os burros dos tilburis parados, que provavelmente dormiam também. No centro da cidade a solidão era ainda a mesma. Um ou outro vulto começava a aparecer, mas raro. Os ratos ainda atropelavam o noctâmbulo, correndo de um lado para outro da rua, dando ideia de uma vasta população subterrânea de roedores, que substituíam os homens para não parar o trabalho universal. João Fernandes perguntava a si mesmo por que não imitaria os ratos; tinha febre, era um princípio de delírio.

— Uma, duas, três, quatro, contou ele, parado no Largo da Carioca. Eram as badaladas do sino de S. Francisco. Pareceu-lhe ter contado mal; pelo tempo deviam ser cinco horas. Mas era assim mesmo, disse afinal; as horas noturnas e solitárias são muito mais compridas que as outras. Um charuto, naquela ocasião, seria um grande benefício; um simples cigarro podia enganar a boca, os dois vinténs restantes bastavam-lhe para comprar um ordinário; mas onde?

A noite foi inclinando o rosário das horas para a manhã, sua companheira. João Fernandes ouviu-as de um relógio, quando passava pela Rua dos Ourives; eram cinco; depois outro relógio deu as mesmas cinco; adiante, outro; mais longe, outro. — Uma, duas, três, quatro, cinco, dizia ainda outro relógio.

João Fernandes correu ao botequim onde tomara chá. Alcançou um café e a promessa de um almoço, que pagaria à tarde ou no dia seguinte. Conseguiu um cigarro. O entregador do Jornal do Comércio trouxe a folha; ele foi o primeiro a abri-la e lê-la. Chegavam empregados dos arsenais, viajantes da estrada de ferro, simples vizinhos que acordavam cedo, e porventura algum vadio sem casa. O rumor trazia a João Fernandes a sensação da vida; gentes, falas, carroças, aí recomeçava a cidade e a faina. O dia vinha andando, rápido, cada vez mais rápido, até que tudo ficou claro; o botequim apagou o gás. João Fernandes acabou de ler o Jornal à luz do dia. Espreguiçou-se, sacudiu a morrinha, despediu-se:

— Até logo!

Enfiou pela rua abaixo, com os olhos no futuro cor de rosa: a certeza do almoço. Não se lembrara de procurar algum anúncio no Jornal; viu, porém, a notícia de que o ministério ia ser interpelado nesse dia. Uma interpelação ao ministério! Almoçaria às dez horas; às onze estaria na galeria da câmara. Aí tinha com que suprir o jantar.

Fonte> Publicado originalmente em A Estação, de 15/01/1894. Disponível em Domínio Público 

Benjunior (Benevides Garcia) Poemas Escolhidos 4



AUTOPLAGIA*

No meio da noite acordo
Com uma voz a sussurrar:
- Acorda porque é hora
Levanta e vai escrever...
De quem é essa voz
Que me ordena, 
Mas calma e serena
No meio da noite, sem ser um açoite?...
A quem devo o que escrevo...
Meus versos são realmente meus?
Ou já foram teus?
Tudo isso, se for, eu não nego.
Há outra vida dentro de mim?
Ou serei eu a minha sorte
A viver com minha própria morte?
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(* Autoplagia - Possivelmente um neologismo. Capacidade que o indivíduo tem de copiar a si próprio.)
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ENSAIO PARA UM PEQUENO INVENTÁRIO

Tudo o que ultimamente tenho amado
Foram apenas papéis velhos guardados
Na gaveta do criado-mudo, 
ao lado da minha cama... 

Às vezes – chuva miúda de verão
Que vem e que passa
Deixando pelos caminhos todos
Alegria para as pequenas flores
E também para as ervas daninhas
Que vicejam aqui e ali
Em todo lugar... 
 
Outras vezes me vejo maravilhado
Com toda a beleza que há
No entardecer... 
 
Depois...
Saio por aí

Vou me encontrar
Para não me perder...
E apesar, de tudo isso
Disse alguém 
Que o amor também envelhece
Com o tempo muda de cor
Não tem o mesmo ardor
Nem os prazeres de outrora...
Escrever para quê?
[Se um dia vamos morrer...]
 
Escrever para viver
Para nunca morrer
Escrever... 
Queixas
Lamentos
Sucessos
Fracassos
Alegrias
As dores
Os amores...
Escrever para quem?…
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ENTARDECER

Ir...
Partir para o outro lado...
Há tempos que me entardeço...

A cada dia minhas tardes são mais lindas!
Até penso, às vezes, 
Fugir por entre as cores da paisagem...

Entardeço...
Vou vivendo...
A vida me levando,
Escapando,
Escorrendo pelas frestas do tempo...

Entardeço...
Nem sei até quando:
Um dia, mudo de endereço…
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MEU REFÚGIO

Como se saída de um sonho, 
eu te encontrei 
a passear pelos campos floridos 
da minha infância... 
Vinhas feliz e só, 
e na tua pequenez 
mostravas a beleza 
de um mundo de paz... 
Eu te amei no teu olhar 
e nos teus passos... 
Na singeleza dos teus dias, 
construí a minha solidão 
e a minha guarida…
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NOTURNO

Não caminhes
Pela rua
Na noite escura
Há sonhos desfeitos
Pelos becos escondidos
E as lágrimas da paixão
Tua alma entristecem…

Não caminhes
Pela rua
Na noite escura
O silêncio 
Atrai fantasmas de vento
Que dançam
Entre folhas adormecidas…

Não caminhes
Pela rua
Na noite escura
Aguarda mansamente
A lua
E o brilho das estrelas 
Te dará sonhos para sonhar…
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PEQUENO ENSAIO PARA UM POEMA DE NATAL

...preciso urgentemente
escrever um poema de Natal...
Que tenha berço,
Que tenha brilho,
Que tenha estrela...
Não posso esquecer da alegria que há na festa
Reunião-de-amigos-parentes-família,
Num encontro com todos
Encontro comigo...
Um poema-menino que mostra
que o Natal não é só para fazer de conta
que a humanidade é feliz...
Um poema de presentes
Mas que, simplesmente,
esteja presente
no coração das pessoas
a Luz que veio
naquela silenciosa noite de amor...
Um poema que fala
da beleza de céu 
no chão de uma estrebaria...
Enfim, um poema de paz!
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Fonte: Facebook do poeta. https://www.facebook.com/Benjunior5

Monsenhor Orivaldo Robles (Uma para cada dois)


Fato bastante curioso, entre os muitos da minha longa atividade pastoral, foi a celebração das bodas de ouro (50 anos) de união de um casal amigo. Alguns dirão: “Grande coisa; qualquer padre faz isso”. Calma; não terminei. Dez anos depois, os filhos pediram a missa em ação de graças, desta vez, pelos 60 anos de matrimônio dos pais. Ainda não contei tudo. Outros dez anos passados e me pediram a celebração dos 70 anos da mesma união. Desse tipo foi o único caso que me aconteceu. E não haverá outro.

Quem esteve naquele 70° aniversário de casamento não esquecerá o que presenciou. A esposa sofria do mal de Alzheimer. Com mais de 90 anos de idade, o marido a tratava com uma ternura comovente. Ele quis ler em público uma oração que tinha preparado para a ocasião.

Agradeceu a Deus pelos filhos numerosos, todos vivos, honrados e motivo de orgulho para os pais. Depois, rendeu graças pela companheira de tantos anos. A ela creditou os méritos pela linda família e por tudo que conseguiu como profissional e como cidadão: “Graças vos dou, Senhor, pela mulher extraordinária que me destes por esposa. Sem ela não sei o que teria sido de mim e de minha querida família”.

O fato me veio à memória quando li, nesta semana, que nossa cidade tem uma separação para cada dois casamentos. A matéria falava de casamento civil, não do religioso. Ainda assim, a proporção é assustadora. Assisti a casamentos – diácono ou padre assistem; quem celebra são os noivos – que duram mais de 40 anos e os esposos continuam amando-se intensamente. Falo de amor, não de paixão sexual. Também assisti a casamentos que não duraram três meses.

Depois de 50 anos de matrimônio, uma vovó dizia: “Estamos juntos não porque é fácil, mas porque Deus nos deu a graça de sabermos nos amar”. O segredo está no binômio Deus e amor. Funciona melhor que todas as lições de psicologia, antropologia ou sociologia.

Já foi dito que muitos filhos hoje exigem, como seu direito inalienável, que os pais lhes deem felicidade. Seja qual for sua condição, os pais são obrigados a torná-los felizes. Eles não têm que fazer nada: aos pais é que competem, por ofício, todos os encargos. O dramático é que, em sua maioria, os pais aceitam esse figurino calcado no consumismo, no hedonismo, no materialismo e no subjetivismo. Muitos suportam até agressões verbais dentro de casa, sofrem privações pessoais para que aos filhos não faltem mimos que julgam seu dever oferecer-lhes. Quantos pais e mães vivem autêntico drama de consciência por não conseguir dar aos filhos o que eles exigem.

Assim fica difícil. Filhos que, dentro de casa, desde bebezinhos, jamais ouviram um “não” crescem convencidos de que o mundo existe para satisfazer aos seus caprichos. Quando se casam, esperam que a nova vida lhes assegure os mesmos privilégios de que, como pequenos ditadores, desfrutavam junto de pais fracos. Que não terão que encontrar dificuldade ou sofrimento de espécie nenhuma. Imaginam que na condição de casados prosseguirão com as veleidades costumeiras. Quando não, com verdadeiras extravagâncias. Como no seu tempo de solteiros (as).

Aí, meu amigo, quando descobrem que não têm capacidade para sua nova situação, só resta pular fora do barco. As dolorosas consequências sobram para os outros.

Como, aliás, sempre aconteceu.

Fonte> https://angelorigon.com.br/2014/05/03/uma-para-cada-dois/. 03.maio.2014.

Curso Online de Formação de Escritores (Início: 12 de março de 2024)

Aulas semanais ao vivo - curso inédito e exclusivo para todo o Brasil

O Curso Online de Formação de Escritores é um conjunto de oficinas que abordam aspectos estéticos, teóricos e comerciais para quem é ou deseja se tornar escritor, com ênfase em Escrita Criativa e Criação Literária. Com aulas semanais, o curso promove o contato com escritores profissionais reconhecidos, tornando-se uma experiência completa e transformadora para quem gosta de escrever, deseja publicar um livro ou trabalhar com a escrita. 

Desde 2015 ocorrendo de forma ininterrupta e com mais de 530 alunos formados, o curso é realizado em formato online, utilizando a transmissão de aulas semanais ao vivo (síncronas) feitas exclusivamente para os alunos matriculados nesta modalidade, além da disponibilização de vasto material multimídia e textos lidos e comentados por escritores profissionais. As turmas têm em média 25 alunos, um número que permite a participação efetiva e o diálogo com o professor. E caso você perca alguma aula ao vivo, pode assistir à gravação posteriormente.

Publicação de livro individual ao final do curso 

Além das aulas, ao longo do curso cada participante participará de coletânea paga pela própria editora e produzirá um livro individual, do gênero que escolher, e este livro, ao final do curso, poderá ser publicado pela Editora Metamorfose. Já foram mais de 250 livros publicados nestes anos de curso. Ou seja, é sua grande chance de publicar um livro individual com uma formação adequada para isso.

Curso feito por escritores e aulas ministradas por escritores 

O curso foi desenvolvido e é dirigido pelo Prof. Dr. Marcelo Spalding, escritor finalista do Prêmio Jabuti, editor, jornalista e professor com doutorado em Literatura pela UFRGS e pós-doutorado em Escrita Criativa pela PUCRS, que há mais de 15 anos ministra oficinas literárias presenciais e online. Ao final, é emitido certificado de Curso Livre com 200 horas-aula.

Além do próprio Spalding, o corpo docente do curso conta com autores reconhecidos e premiados nacionalmente, profissionais do mercado editorial e jovens talentos formados pela principal faculdade de Escrita Criativa do país, a PUCRS.

Horário: QUATRO turmas online com inscrições abertas para você escolher:

• TERÇAS À TARDE: terças-feiras das 14h às 16h

• TERÇAS À NOITE: terças-feiras das 19h às 21h

• QUINTAS À NOITE: quintas-feiras das 19h às 21h

• SÁBADOS: um sábado por mês, das 9h às 16h

Duração: 15 meses

Início das aulas: 12 de março de 2024 

Preço fixo da mensalidade, não aumenta ao longo do tempo 

Investimento: matrícula de R$ 300,00 + 15 x R$ 250,00

Pagamento feito mês a mês, você não precisa pagar o curso todo agora nem usar o limite do seu cartão, além de poder interromper o curso antes do fim sem pagamento de multa 

Mais informações 

Fonte: Enviado por Marcelo Spalding.

sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Edy Soares (Oceano de Trovas) – 2 -

 

Mensagem na Garrafa – 66 -

Augusto Frederico Schmidt
Rio de Janeiro/RJ, 1906 – 1965

A AUSENTE

Os que se vão, vão depressa,
Ontem, ainda, sorria na espreguiçadeira.
Ontem dizia adeus, ainda, da janela.
Ontem vestia, ainda, o vestido tão leve cor-de-rosa.

Os que se vão, vão depressa.
Seus olhos grandes e pretos há pouco brilhavam.
Sua voz doce e firme faz pouco ainda falava,
Suas mãos morenas tinham gestos de bênçãos.
No entanto hoje, na festa, ela não estava.
Nem um vestígio dela, sequer,
Decerto sua lembrança nem chegou, como os convidados —
Alguns, quase todos, indiferentes e desconhecidos.

Os que se vão, vão depressa.
Mais depressa que os pássaros que passam no céu,
Mais depressa que o próprio tempo,
Mais depressa que a bondade dos homens,
Mais depressa que os trens correndo nas noites escuras,
Mais depressa que a estrela fugitiva
Que mal faz um traço no céu.
Os que se vão, vão depressa.
Só no coração do poeta, que é diferente dos outros corações,
Só no coração sempre ferido do poeta
É que não vão depressa os que se vão.

Ontem ainda sorria na espreguiçadeira,
E o seu coração era grande e infeliz.
Hoje, na festa ela não estava, nem a sua lembrança.
Vão depressa, tão depressa os que se vão…

Humberto de Campos (Os gêmeos)

O piloto Alfredo Fagundes de Moura estava casado há pouco mais de seis meses quando, por determinação da companhia de navegação em que era empregado, teve de embarcar subitamente no "Capanema", antigo cargueiro alemão, para uma demorada viagem ao Mediterrâneo. A travessia, com os submarinos teutônicos a costurarem, como agulhas monstruosas e invisíveis, o manto verde do oceano, era, naquele tempo, arriscadíssima: o que, porém, mais afligia o jovem marujo, não eram os perigos, os riscos, a visão sinistra da morte nas águas, mas a saudade da sua encantadora Palmirinha, tão simples, tão doce, tão amada, e, o que era pior, tão sozinha no mundo, onde não tinha como amparo senão a coluna de ouro do seu amor.

A ordem de partida fora, porém, terminativa: e, uma tarde, lá se foi o "Capanema", barra afora, apartando, como um pastor de ovelhas irrequietas, o infinito rebanho das ondas. Dias depois estavam na Madeira. E os portos foram-se sucedendo: Lisboa, Gibraltar, Cadix, Marselha, Gênova... além de outros, pequenos, monótonos, secundários, a que eram forçados a arribar por imposição arbitrária das flotilhas inglesas de vigilância. E nisso gastou ele dezoito meses de trabalho e de saudade, ao fim dos quais ancorou, de novo, com a alma nos olhos, nas proximidades da ilha fiscal.

A alegria do casal não podia ser maior. Beijos, abraços, lágrimas de contentamento, foram os confeitos de coração na doce festa daquele encontro.

- Estás linda, meu amor!

- E tu, forte, corado, bonito!

E novos beijos estalaram.

Um mês depois, porém, começou a entrar na cabeça do Fagundes, batido pelo martelo de um pensamento mau, o prego de uma dúvida horrível: é que a sua Palmirinha havia dado ao mundo, oito dias depois da sua chegada, dois pequenitos miudinhos, mas perfeitíssimos, que a ciência conseguira salvar.

Aos olhos do piloto, habituado a ver longe, aquilo parecia incompreensível. Se ele estivera em viagem ano e meio e chegara apenas há quinze dias, como admitir o nascimento daqueles pirralhinhos, tão bem conformados, e que tinham vindo de tempo? O melhor, em tal emergência, era consultar um médico, um entendido, e foi o que ele fez, indo bater à porta do Dr. Abelardo Meira, que morava no mesmo quarteirão.

- O meu caso senhor doutor, é este.

E contou o fato, palavra por palavra, sem omitir a menor particularidade. Ao fim de tudo, o médico fitou-o, indagando:

- Quantos meses o senhor passou fora?

- Dezoito, senhor doutor.

- E quantos filhos sua senhora teve, agora?

- Dois, gêmeos.

O especialista endireitou o "pincenez", pigarreou, tossiu, remexeu-se na cadeira, e inquiriu, sentindo-se vitorioso:

- Diga-me cá: com quantos meses nasce uma criança?

- Nove.

- Então, está aí! - exclamou o médico.

E batendo-lhe na perna:

- Está claro, homem de Deus! Duas crianças, dezoito meses, isto é, nove para cada uma. De que é que se admira?

O Fagundes sorriu, desafogado. E levando a mão à cabeça, arrancou, satisfeito, num gesto brusco, o doloroso prego daquela dúvida…

Fonte: Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925. Disponível em Domínio Público.

Vidal Idony Stockler (Sons de Meu Sertão) 1


A cabocla sertaneja,
olhos verdes encantados,
face rubra de cereja
a colher flores nos prados.
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Alegre dia feliz,
bela voz do passarinho,
até parece que diz:
Meu cantar é só carinho.
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Araponga no sertão
lança seu grito de amor
com vibrante entonação
acordando o lenhador.
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A rola junto à cascata
arrulha linda canção,
livre no seio da mata,
na mata lá do sertão.
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As folhas rolam no chão,
a vida rola também;
Juriti dobra a canção
com a saudade de alguém.
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Canta a linda corruíra
a sua suave canção,
lá na árvore de embira
das matas do meu sertão.
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Cataratas e brancura
das águas em explosão
e no lago a saracura
são belezas do sertão.
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De pluma parda e amarela
canta aqui e também ali;
a beldade na janela
sorri ao canto... Bem-te-vi!
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E nas lendas brasileiras
aparece o boitatá,
fogo-fátuo, nas clareiras,
pois, noutro lugar não há.
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João-de-barro elegante,
o engenheiro passarinho,
constrói casa aconchegante
pra curtir o seu carinho.
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Lá na serra bem plantada
casinhola de bambu.
Longe, mia onça pintada,
perto, o cantar do nhambu.
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Luar e noite estrelada
lá no cume da colina,
a choupana abandonada,
choram as águas na mina.
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Luz de lamparina e vela
e também de lampião
produz réstia na janela
no ranchinho do sertão.
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Na plenitude da paz
em manhã ensolarada
a beleza que nos traz
o cantar da passarada.
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Nasce a aurora, novo dia,
corre a moça na sacada
vem ouvir a cotovia
na festa da passarada.
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No meu sítio há sanhaço
e canário cantador
e haja chuva ou mormaço
colibri visita a flor.
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No presídio da gaiola
desolado o passarinho;
o violeiro sem viola,
pássaro é, fora do ninho.
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No sertão, lindo luar,
panorama de canções
que não para de brilhar
e tocar os corações.
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O nordeste brasileiro
querência do Lampião,
Virgulino, o cangaceiro
mais temido do sertão.
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O pomar em florescência,
pássaros em revoada
mostrando linda existência
da vida toda encantada.
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O sabiá muito contente
solta a canção na floresta;
a palmeira sorridente
balança galhos em festa.
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Pássaros! Lindos gorjeios
em manhãs com arrebol,
belezas, suaves enleios
sob as luzes do rei sol!
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Pombinha branca da paz
revoa na luz do dia,
leva mensagem ou traz
arrulhando melodia.
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Rolam goteiras das telhas,
rebentam ondas no mar;
nas flores dançam abelhas,
gaivotas planam no ar.
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Sorri o sabiá na mata
e entoa bela canção,
os respingos da cascata
aplaudem com emoção.
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Sossegado, bem tranquilo
ouço o pássaro cantar
e vou curtindo a meu estilo
as belezas do lugar.
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Fonte:
Vidal Idony Stockler. Trovas. Curitiba: Juruá, 2001.

Contos das Mil e Uma Noites (Judar, o pescador, e o saco encantado)

Conta-se, ó afortunado rei, que vivia certa vez um mercador chamado Omar. Tinha ele três filhos: Salim I, Salim II e Judar, o mais jovem. Havia-os criado até a maturidade; porém sempre preferiu Judar, o que levava seus dois irmãos invejá-lo e odiá-lo. Quando Omar, que era muito velho, notou esse ódio, receou que Judar fosse molestado por seus irmãos após a sua morte e, na presença do cádi, partilhou seus bens em quatro partes iguais: uma para cada filho e uma para a mulher. 

Após a morte do pai, os três irmãos arruinaram-se em processos que Salim e Salim moveram contra Judar. Depois, Salim e Salim maltrataram, burlaram e roubaram a mãe. E ela se refugiou junto a Judar, o qual, embora empobrecido, a acolheu com todo carinho. Os dois Salim caíram rapidamente na miséria, pois não conheciam profissão alguma e eram preguiçosos e mal vistos.

Procuraram a mãe, chorando. Uma mãe é sempre compassiva. Passou a servir-lhes as sobras da casa de Judar, dizendo-lhes, todavia: “Comei rapidamente e saí. Se vosso irmão vos surpreender aqui, poderá virar-se contra mim.” 

Um dia, contudo, enquanto comiam, Judar chegou. Mas em vez de zangar-se, sorriu para seus irmãos, abraçou-os e convidou-os a morar com ele. Sua mãe gritou: “Meu filho, possa Alá abençoar-te e aumentar tua prosperidade: és o mais generoso de todos nós.” 

Judar ia cada manhã lançar sua rede ao mar, e viviam, ele, a mãe e os irmãos, do produto de sua pesca. Certa vez, jogou a rede três dias seguidos sem nada apanhar. No quarto dia, foi a uma praia mais distante no lago Karun e enquanto se preparava para lançar a rede às águas, viu um mouro deslocando-se em sua direção, montado numa mula. 

O mouro apeou, cumprimentou Judar e disse-lhe: “Ó Judar, filho de Omar, preciso de teus préstimos. Se me obedeceres, recolherás grandes vantagens. Serás meu amigo e o encarregado de meus negócios.” O jovem prometeu obedecer. 

Disse o mouro: “Recita a Fatiha* para dar à tua promessa um caráter sagrado.” Judar recitou a Fatiha. Disse então o mouro: “Amarra meus braços atrás das minhas costas com estas cordas, joga-me no mar e espera. Se as minhas mãos saírem da água em primeiro lugar, lança tua rede e traze-me às costas. Pois não sei nadar. Mas se forem meus pés que emergirem primeiro, considera-me morto. Leva então esta mula e este saco ao mercado e procura por Chamaia, o judeu. Pagar-te-á cem dinares pela mula. Teu único dever será guardar o segredo.” 

Judar seguiu as instruções do mouro, e ao ver os pés emergirem primeiro, montou a mula e foi ao mercado onde localizou o judeu. O judeu pagou-lhe os cem dinares prometidos e e recomendou-lhe o segredo por sua vez. Judar levou muitas provisões para casa, onde encontrou os irmãos famintos. 

No dia seguinte, voltou à mesma praia e foi abordado por outro mouro igual ao primeiro; e tudo se passou exatamente como no dia anterior. No terceiro dia, outro mouro apareceu, e Judar amarrou-o e jogou-o às águas da mesma forma. Mas, desta vez, foram as mãos e a cabeça do mouro que emergiram. Judar lançou sua rede e salvou o homem. Quando ele chegou à costa, Judar reparou que ele segurava um peixe vermelho em cada mão.

“Por Alá,” disse a Judar, “salvaste-me a vida.” 

Retrucou Judar: “Por recompensa, conta-me a história de teus dois irmãos afogados, destes dois peixes e do judeu Chamaia.” 

- Como adivinhaste, os dois mouros que se afogaram eram meus irmãos, chamados Abdel-Salam e Abdel-Ahad. Meu nome é Abdel-Samad. O que tomaste por judeu é também meu irmão, um verdadeiro muçulmano. Nosso pai, Abdel-Uadud, era um mágico poderoso. Ensinou-nos a magia, a feitiçaria, a arte de descobrir e levantar os tesouros mais bem escondidos. Tornou-nos capazes de mandar nos Jins, nos Marids e nos Afarit. “Todavia, para levar-nos a competir entre nós e nos aprimorar na luta com o mundo, deixou escondido o maior de todos os tesouros, o Chamardal, que contém três objetos milagrosos: primeiro, um anel tão extraordinário que seu possuidor torna-se dono do mundo, capaz de derrotar reis e sultões; segundo, um globo que permite a seu possuidor visitar todas as regiões da terra sem sair de casa, pois, ao virar o globo, cada região visada se desliga e vem até o dono do globo; terceiro, um unguento que, passado nas pálpebras, permite ver os tesouros escondidos em qualquer montanha ou planície. 

“Ganhará os três objetos milagrosos de Chamardal aquele de nós que apanhar estes dois peixes vermelhos e conseguir a cooperação de Judar, filho de Omar, que só pode ser encontrado nas margens do lago Karun. Meus dois irmãos morreram na tentativa de apanhar estes dois peixes. Eu os consegui e te encontrei. Queres vir comigo ao Marrocos, perto das cidades de Fez e Meknes, e ajudar-me a localizar e levar o tesouro? Dar-te-ei tudo que me pedires e serás meu irmão para sempre. E poderás voltar quando quiseres para teu país e tua casa.” 

- Ó meu senhor, respondeu Judar, tenho minha mãe e dois irmãos a sustentar. Quem os alimentará se viajar contigo? 

- Toma estes mil dinares e entrega-os a tua mãe, e promete-lhe que estarás de volta dentro de quatro meses. 

Judar foi entregar os mil dinares à mãe e obter sua bênção. Quando voltou, o mouro colocou-o atrás de si nas costas da mula e voaram. No caminho, Judar sentiu fome e disse ao mouro: “Senhor, acho que esqueceste de trazer provisões para a viagem.” 

- Não preciso trazer provisões. Tenho este saco encantado. Dele posso tirar todos os pratos que desejar. Estás com fome? Judar reconheceu que estava. Num instante, o mouro tirou do saco peixes, aves, carnes, frutas, doces, todos preparados com requinte e servidos em pratos de ouro. 

– Come, meu amigo, disse o mouro. 

- Meu senhor, com certeza colocaste no saco antes da viagem vários cozinheiros e muitos mantimentos. 

- O saco é encantado, só isso! respondeu o mouro com um sorriso. É servido por um Afrit que nos traria num piscar de olhos até mil pratos árabes, mil pratos egípcios, mil pratos indianos, mil pratos chineses. 

No decorrer da viagem, o mouro perguntou a Judar: “Sabes a que distância já estamos do Cairo?” 

- Por Alá. não! 

- Nestas duas horas, disse o mouro, já percorremos um mês de viagem. Pois esta mula é uma jiniêh e viaja um ano num dia. 

Quando chegaram a Fez, foram à casa do mouro. Descarregaram a mula. O mouro pronunciou umas palavras mágicas, e ela sumiu no ventre da terra. Semanas depois, disse Abdel-Samad: “Chegou o dia em que vamos recuperar o tesouro de Chamardal. Para tanto devemos superar diversas provas, cada uma mais difícil que a outra. Sentes-te preparado? 

- Sim, respondeu Judar. 

Foram então ao lugar indicado no meio do deserto onde, sob o efeito de palavras mágicas, portas misteriosas se abriram, dando acesso a galerias, jardins, casas, palácios. Numa das casas, encontraram a mãe de Judar. Era a primeira prova. Judar, seguindo as instruções de Abdel-Samad, ordenou à mãe: “Despe-te.” 

- Meu filho, gritou a mulher, eu sou tua mãe.

- Despe-te, repetiu Judar. Senão, corto-te a cabeça. 

Na realidade, não era sua mãe e sim uma mera aparição. Mas se ele tivesse fraquejado e tido pena dela, teria sido imediatamente abatido por gênios malvados. Após dias passados assim em meio a aparições mágicas, provas imprevistas e outras manifestações de terror, Abdel-Samad salvou o tesouro de Chamardal. Agradeceu a Judar pela indispensável cooperação e convidou-o a pedir o que quisesse. Judar pediu o saco encantado. O mouro entregou-o sem hesitar e acrescentou: “Devo-te mais que este saco. Leva também este outro saco, cheio de ouro e joias, para que nunca mais conheças a preocupação em tua vida.” 

Judar agradeceu e, montado na mula mágica, voltou para o Cairo e foi diretamente à sua casa. E qual foi a sua pena quando viu a mãe vestida de farrapos e sentada na soleira da porta a pedir esmolas. Ela contou-lhe que seus irmãos a haviam maltratado e arrancado dela todo o dinheiro que lhe dera. Vendo a casa vazia, Judar encheu-a imediatamente de mantimentos, graças ao saco encantado. 

Quando Salim e Salim souberam da volta do irmão e de suas riquezas, procuraram-no mais uma vez, e ele recebeu-os mais uma vez festivamente. E viveram juntos, comendo o que lhes apetecesse. Mas a natureza incuravelmente malvada daqueles dois irmãos prevaleceu de novo. Observando e aproveitando a indiscrição da mãe, souberam do saco encantado e roubaram-no. Depois, tramaram com o capitão de um navio, e este enviou seus marinheiros para raptar Judar e jogá-lo no porão, acorrentado. Mas Deus teve pena dele. Um mercador de Jedá passou por acaso no porão, viu Judar, gostou dele e tomou-o a seu serviço numa peregrinação a Meca. Lá, outro acaso feliz o pôs no caminho de Abdel-Samad, que estava cumprindo o dever da peregrinação. Reconheceu-o e mostrou-lhe a bondade de um pai. Presenteou-o com quinhentos dinares e ofereceu-lhe o anel mágico que fazia parte do tesouro de Chamardal. Judar voltou para casa mais uma vez rico e honrado, e acolheu novamente seus irmãos e perdoou-lhes todas as ignomínias. E, aproveitando o anel mágico, mandou o Afrit edificar um palácio mais suntuoso que o palácio real. 

Com o tempo, o rei, Chams Ad-Daula, ouviu falar de Judar e do esplendor de seu palácio. Um dia, foi visitá-lo. Por sua vez, Judar ouviu falar da filha do rei, uma adolescente mais bela que a plena lra, e pediu-a em casamento. O rei concordou. Os dois jovens foram unidos pelos laços do matrimônio e por uma ardente paixão recíproca, que aumentou ainda mais a amizade entre Judar e Chams Ad-Daula. Judar foi nomeado vizir. E quando o rei morreu, foi ele mesmo proclamado rei, sendo sempre tolerante e generoso para com seus irmãos. 

Mas estes nunca conseguiram superar sua inveja e sua perversidade. Um deles, aproveitando a oportunidade de um banquete real do qual participava, colocou veneno no prato do rei seu irmão e o matou.

O povo chorou o rei bondoso Judar, e os sábios disseram que ele foi vítima tanto de seus irmãos malvados quanto de sua própria generosidade, excessiva e indiscriminada. Pois o provérbio diz: “Faça o bem, mas saiba a quem.” 

Num sentido aproximado, Kisra, o grande rei da Pérsia, escrevera ao filho: “Meu filho, cuidado com a compaixão: ela enfraquece o governo; e cuidado com a falta de compaixão: ela provoca a rebelião.
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* Fatiha = A Sura Al-Fatiha "A Abertura", é o primeiro capítulo do livro sagrado dos muçulmanos, o Alcorão. Seus sete versos são uma oração por orientação divina e um louvor ao senhorio e à misericórdia de Deus.


Fonte: As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX. Disponível em Domínio Público.