sábado, 13 de abril de 2019

Vinicius de Moraes (A mulher e a sombra)


Tentei, um dia, descrever o mistério da aurora marítima.

      Às cinco da manhã a angústia se veste de branco
      E fica como louca, sentada espiando o mar...

Eu a vira, essa aurora. Não havia cor nem som no mundo. Essa aurora, era a pura ausência. A ânsia de prendê-la, de compreendê-la, desde então me perseguiu. Era o que mais me faltava à Poesia:

      E um grande túmulo veio
      Se desvendando no mar...

Mas sempre em vão. Quem era ela de tão perfeita, de tão natural e de tão íntima que se me dava inteira e não me via; que me amava, ignorando-me a existência?

      És tu, aurora?
      Vejo-te nua
      Teus olhos cegos
      Se abrem, que frio!
      Brilham na treva
      Teus seios tímidos...

O desespero inútil das soluções... Nunca a verdade extrema da falta absoluta de tudo, daquele vácuo de Poesia:

      Desfazendo-se em lágrimas azuis
      Em mistério nascia a madrugada...

Lembrava uma mulher me olhando do fundo da treva:

      Alguém que me espia do fundo da noite
      Com olhos imóveis brilhando na noite
      Me quer.

E fora essa a única verdade conseguida. A aurora é uma mulher que surge da noite, de qualquer noite - essa treva que adormece os homens e os faz tristes. Só a sua claridade é amiga e reveladora. Ao poeta mais pobre não seria dado desvendá-la em sua humildade extrema. O poeta Carlos, maior, mais simples, a revelaria em sua pulcritude, a aurora que unifica a expressão dos seres, dá a tudo o mesmo silêncio e faz bela a miséria da vida:

      Aurora,
      entretanto eu te diviso, ainda tímida,
      inexperiente das luzes que vais acender
      e dos bens que repartirás com todos os homens.

      Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações,
      Adivinho-te que sobes, vapor róseo, expulsando a treva noturna.
      O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos,
      teus dedos frios, que ainda não se modelaram
      mas que avançam na escuridão como um sinal verde e peremptório.
      Minha fadiga encontrará em ti o seu termo,
      minha carne estremece na certeza de tua vinda.
      O suor é um óleo suave, as mãos dos sobreviventes se enlaçam,
      os corpos hirtos adquirem uma fluidez,
      uma inocência, um perdão simples e macio...
      Havemos de amanhecer. O mundo
      se tinge com as tintas da antemanhã
      e o sangue que escorre é doce, de tão necessário
      para colorir tuas pálidas faces, aurora.

A aurora dos que sofrem, a única aurora. Aquela mesma que eu vira um dia, mas cujo segredo não soubera revelar. Uma mulher que surge da sombra...

Bem haja aquele que envolveu sua poesia da luz piedosa e tímida da aurora!

Fonte:
Vinícius de Moraes. Para uma menina com uma flor. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1966.

Mia Couto (A Chuva Pasmada) O Adiado Príncipe - Visões de Peixes Solares


O ADIADO PRÍNCIPE

      Eu já tinha amontoado suficientes pedrinhas aos pés do avô. Ele baixava-se e colocava, uma por uma, a pedra no elástico da fisga. De seguida, disparava o projétil de encontro aos céus. O que fazia? Abria buracos na paisagem, rasgava nesgas de céu naquela cortina de água.

      Me apetecia juntar-me a ele, eu mais a minha fisga. E juntos flecharmos os céus, fazendo pontaria para acertar no nada. Mas não podia. Tinham-me dado tarefas, e eu já içava um escadote sobre o ombro, quando o avô me fez parar:

      - Sua tia prefere os padres porque eles desculpam o crime dela.

      - Crime?

      - Nunca lhe disseram? Sua tia matou um homem!

      Pousei as escadas para melhor escutar. O velho não esperava por outra coisa: foi soltando as falas. Tinha sido num baile, um forasteiro tinha chegado ao nosso lugar e se decidira a pernoitar. Havia, nessa noite, festa no clube. A tia era mais jovem, mais fogosa, mas já sofria da doença de esperar homem. A enfermidade lhe deu coragem e, para espanto de todos, ela cruzou a multidão e convidou o moço para rodar. O forasteiro, primeiro, se envergonhou: já se vira mulher tomar as dianteiras? Na nossa aldeia, mulher que toma a iniciativa não o faz por coragem, mas por desespero. Ou pior, por razão de feitiço. Todavia, o fulano lá se ergueu e, meio contrafeito, foi rodopiando com ela pelo átrio. Então, sucedeu: o braço da tia foi cingindo o pobre desconhecido em aperto de jiboia esfaimada. O moço começou por ficar sem fôlego, depois foi perdendo as cores e, quando se deu conta, a nossa tia já lhe tinha perfurado as costelas. O estranho caiu fulminado, por cima do último suspiro.

      - Não é verdade, avô!

      - O que é que disseste?

      Não repeti. A fantasia do mais velho era sempre tal que ele mesmo de suas falas se estranhava. Desta vez, porém, havia uma convicção que me fazia duvidar.

      - Nada, avô. Não disse nada.

      Me afastei, fui mudar as palhas do teto. com a acumulação da água, o colmo começava a apodrecer. Empoleirado na escada, meus olhos lutavam para se manterem abertos. A voz da tia quase me fez cair do escadote. Lá estava ela, em baixo, com o seu sorriso que nunca desbotava.

      - Afinal, nem tudo é tragédia.

      - O que se passa, tia?

      - Hoje, de manhã cedo, vi um cavalheiro chegando.

      - E quem era?

      - Um desconhecido. Vinha pela estrada, todo vestido de preto. Foi essa chuva que o trouxe, abençoada chuva.

      Perscrutei o horizonte, mão em pala sobre a testa. Como podia ela ter visto um vulto, se tudo desfocava para além do nariz? Miragem teria sido. Ou talvez o chuvilho já tivesse aguado a sua cabeça.

      - Desça, sobrinho, que eu quero desafiá-lo para uma surpresa.

      - Surpresa?!

      A tia ligou o rádio, fazendo soar uma música roufenha, quase asmática.

      - Venha dançar-me. sobrinho!

      O mel na voz me fez arrepiar. As recentes revelações do avô ainda em mim ecoavam. À minha frente, não se desvanecia o dançarino estrafegado pelo sequioso abraço. Mas já os meus passos tonteavam, ao compasso do rádio de pilhas.

      - É verdade, tia, que houve um homem que morreu num baile?

      - Num baile?

      - Foi há muito tempo, tia.

      - Ah, tenho a vaga ideia, sim. Mas como é que sabe?

      - Foi o avô que me contou.

      - Se foi o avô, é porque é mentira.

      E ela me apertou mais. Senti o seu corpo se esmagar de encontro ao meu.

VISÕES DE PEIXES SOLARES

      O avô falou como sempre: aos gritos. A voz, rouca, inundou os cantos da casa:

      - Eu vi, eu vi

      Era o falar altissonante de quem não ouve e receia não ser escutado. Que tinha visto um peixe subindo nos céus, imitando o voo de um pássaro. Os da casa riram-se:

      o avô e seus delírios. Mas eu gostei de acreditar e, no meu pensamento, já cardumes atravessavam as nuvens, rebrilhando entre a sarapintada claridade. E cheguei mesmo a escutar o bater de barbatanas, o ar assobiando entre as coloridas escamas dos peixes.

      Mas o contentamento era de sol de pouca dura. Ou como dizia o avô: de boca dura. Breve, esmoreceu o sorriso. Havia uma tensão que crescia, uma invisível mão que sufocava o nosso lugar. Como a serpente que asfixiou o dançarino.

      De todos, era a mãe quem mais se agitava. E atingia o meu pai, improperiando-o como se nele estivesse a culpa. Minha tia procurava sossegar as ansiedades da irmã. Ela que deixasse o marido, não lhe cobrasse nada.

      - Você não desperdice o seu homem, mana. Há outras que nunca tiveram marido.

      Mas era inútil. Em minha mãe fermentava uma insistência como se, naquela cobrança, fizesse contas das arrelias de uma vida inteira.

      - E então, homem? Não vai falar? Não vai lá à fábrica?

      - Nem pensar.

      - E por que não quer ir?

      - Não é que eu não quero, não tenho é vontade.

      Meu velho se encostou bem arrumado no cadeirão a mostrar que falara tudo. Ele não desperdiçava palavra, nem esbanjava gesto. O que ele fez foi acender o isqueiro. Era o que fazia quando não sabia o que fazer. Há muito que não fumava, sobrara-lhe aquele gesto sem sentido. Minha mãe ainda insistiu, o queixo erguido sobre todos nós:

      - Ninguém vai?

      Silêncio. Minha mãe se retirou com passo decidido como se fosse passar um pano pelo céu.

continua...

Fonte:
Mia Couto. A chuva pasmada. 2004.

sexta-feira, 12 de abril de 2019

Luiz Poeta (Pios de Bemóis e Sustenidos)


Absorto nas notas que tentava desenhar na pauta, o esquálido maestro não percebeu a chegada do passarinho. 

Tratava-se de um modesto pardal suburbano, cujo discreto farfalhar de asas não atrapalharia a silenciosa confecção da harmonia, não fosse o mesmo pousar exatamente na tecla de um dó sustenido.

Ambos assustaram-se; o músico e a frágil criaturinha voadora. O pássaro, com o som do piano; o pianista, com o pio simultâneo do animalejo.

Os olhos do homem imediatamente dirigiram-se ao teclado, no exato instante em que outra nota se soltava; era mais um bemol; agora em si. Provavelmente esse indiscreto instrumentista eventual se interesse mais pelas teclas pretas - pensou. E elas eram - repetidas vezes - sutilmente comprimidas. A cada milimétrico salto, um novo som - sempre sustenido. E o animalzinho repetia, no mesmo tom, a nota executada. O pardal parecia fazer o contracanto de si mesmo, Era uma sequência melódica aparentemente aleatória que caminhava no ar e ecoava pela sala. Monossílabos sonoros duplicando-se em notas e pios similares... polifonizando-se metafisicamente.

O músico estava embevecido, enquanto o pardal, saltitante, alternava - agora - as teclas brancas e pretas, mesclando graves com agudos, parecendo divertir-se.

Frenético como ele, o musicista começou a escrever o que ouvia; nem teve tempo para armar a clave de sol: semi fusas, semibreves, mínimas, semínimas, colcheias, tudo se misturava num êxtase só. 

Ambos pareciam conhecer-se há muito tempo. Muitos pássaros haviam pousado na varanda, e alguns até adentraram à sombria sala onde as sinfonias preenchiam vazios não apenas geográficos, mas principalmente sentimentais. Certa vez, um beija-flor ficou levitando bailados diante de um arranjo de flores de plástico, porém foram apenas alguns segundos perfeitamente justificáveis, entretanto a nova cena era inusitada e sublimemente inexplicáveis, como não havia percebido aquele pardal? ...claro que não se tratava de um curió ou um canário belga... seria exigir muito de um bichinho sem casta que, a exemplo de alguns artistas, sobressaem por um talentoso autodidatismo, que nem sempre carece de arte final.

Mas a cena era real: havia um pardal tricotando sons nas teclas de um piano!

Que oportunidade!... era como se a ideia que não vinha cedesse lugar ao transcendental e mergulhasse aquele maestro e o passarinho num universo onde as estrelas fossem notas soltas sonorizando sensibilidades e iluminando os ermos de cada olhar de uma plateia embevecida.

Assim como veio, o animalzinho alçou voo, deixando como legado um último pio e o derradeiro som desenhado numa pauta manchada pela melhor das gotas de lágrima.

No dia seguinte, uma tênue brisa afagou cada uma das folhas do livro de música e as conduziu mansamente à janela entreaberta. Uma a uma, elas valsavam numa surreal coreografia de frente e verso, exibindo páginas em cujas trêmulas linhas as notas musicais bailarinavam surrealismos, parecendo sutis dançarinas sobre a leveza de um palco dourado pelas luzes do sol.

Então, elevaram-se com a mesma serenidade com que se soltaram, atingindo - placidamente - a amplitude azulada do céu.

Naquele mágico cômodo da casa. o inefável: numa ternura indizível e indelével, o rosto do lírico e esquálido maestro debruçara-se sobre o piano, enquanto os inertes dedos da sua mão direita pareciam posar para um flash imaginário, eternizando a formação de um derradeiro e único acorde cujo som voou...como um passarinho..
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(Conto agraciado com o 1. lugar no Concurso de Contos promovido peia União Brasileira de Escritores - RJ - 2013)

Fonte:
Luiz Gilberto de Barros (Luiz Poeta). Canção de Ninar Estátuas. Ilhéus: Mondrongo, 2014. [livro gentilmente cedido pelo autor]

Mia Couto (A Chuva Pasmada) O Fluir do Rio Seco


O FLUIR DO RIO SECO

      Passaram-se mais dias. O rio emagrecera mais do que o avô, os terrenos encarquilharam, o milho amarelecia.

      Nessa noite, a lua estava cheia. No escuro, o luar se replicava nas mil gotinhas, acendendo um fantástico presépio. Nunca eu tinha assistido a tanta luz noturna, o estrelar do céu mesmo sobre o nosso tecto. Meu pai sorriu:

      - Já temos lua elétrica! E nos fez sorrir. Olhei o seu rosto cansado como se encontrasse nele razões da sua atitude, sempre ausente e preguiçosa. Ainda miúdo, meu pai tinha ido para as minas, lá no Johni. Saíra jovem, voltara envelhecido. Os que ficam órfãos veem os seus pais serem engolidos pelo chão. O fundo da terra roubara de mim o meu pai, sem o levar da vida. Em menino, eu acordava chorando no meio da noite. Minha mãe acudia, pronta:

      - Sonhou com ele, meu filho?

      Não. Nas minas do ouro meu velho descia tão fundo que os meus sonhos já não chegavam nem à sua lembrança. Meu sonho era outro, mais escuro. Anos depois, meu pai regressou mas permaneceu ausente, como se lhe faltasse algum inferno. E partiu de novo. E regressou. E voltou a partir.

      De cada vez que voltava, vinha mais e mais doente. Fumava para que o peito não estranhasse a falta de poeira. Quando, por fim, se estabeleceu, definitivo, entre nós, meu pai só tinha um fazer: dormir. De tanto enroscar na cama ele cheirava à palha do colchão.

      - Porquê tanta preguiça, marido?

      - Eu não durmo por preguiça. Eu durmo de tristeza.;

      Não era tristeza. Era um vazio. Os tristes têm um céu. Cinzento, mas céu. Os desesperados têm um deserto. Meu pai olhava para trás: era mais o esquecido que o vivido. O que não lembrava era porque se esquecera de viver? Ou tudo tinha ficado lá, na nina que desmoronou? Quando se cruzava comigo, de pijama, a meio do dia, meu pai se justificava:

      - Sua mãe quer que eu faça dessas coisas que criam alma na pessoa. Só que ela não entende: se eu estou vivo é porque não tenho alma nenhuma.

      E agora, olhando-o sob aquele estilhaçado luar, me pareceu que meu pai não era senão poeira entre poeiras de Lua. Sua alma ficara sepultada entre longínquos minérios.

      Com aparato, a mãe se levantou, interrompendo os meus devaneios. Ela pendurou uma pá no ombro e anunciou, ao passar a porta:

      - Se a água não vem à terra...

      Nós a vimos transitando da ideia ao gesto: atirava terra para o ar, semeando a chuva de areia. Meu pai acorreu à varanda, todo consumido:

      - Tenha vergonha, mulher! Não vê os vizinhos espreitando?

      Mas ela prosseguiu chuveirando terra pelos ares. E parecia resultar, os grãos se prendiam às gotas, a areia se suspendia na chuva. Minha mãe ainda brincou:

      - Viu, homem? Estou a semear granizo.

      E foi tanta a terra lançada à água que, em redor da casa, o céu escureceu. Parecia que a Lua se avariava nas mil lampadinhas onde se acendera. Restou um breu de confundir galos. A família deu por findo esse aterrar do ar. Já bastava uma estranheza.

      Na minha cabeça, o futuro se antecipava: não tardaria que, da terrinha suspensa, brotassem lateralmente umas verduras. Nasceriam enviesadas, crescendo de lado para o lado. Apanharíamos milho, mandioca e feijão como se fosse do ramo de árvore. As pessoas trabalhariam como pintores, pincelando uma tela feita de pingo de areia e do grão da chuva. Minha mãe seria a primeira a festejar:

      - Agora, até me canso menos. É que já não tinha costas para cavar no chão...

      Mas quem vivia, de verdade, uma nova alegria era a nossa tia. Sempre fora ela a ir ao poço buscar água. Agora, nem saía de casa. Janela aberta, ela fazia girar a lata, como se desse umas quantas braçadas. Varava o ar, em curvas cegas, e a lata logo ficava cheia. O rio era um poço escavado no céu. Um poço à sua privada disposição.

      - Deus trouxe o rio à nossa porta.

      Mas a tia cedo amargou a sua ilusão. Ela era a fervorosa senhora de cruz e rosário, sempre de reza na boca. Do inicial sentimento de que um milagre sucedera à porta da sua casa lhe foi despontando dúvida: o chuvilho seria, ao invés, um sinal da indisposição divina. Ou, ainda pior, o início do nosso último destino. Uma espécie, enfim, de dilúvio preguiçoso. A tia passou a clamar aos ventos:

      - Vocês não entendem? O que se está passar é uma inundação sem chão, um castigo de Deus!

      O chão encharcado de poeira, tudo tão sedento: aquilo era a moeda e sua outra face. Enchente e seca, escassez e excesso, tudo num mesmo regaço.

      - Vejam esse céu tão cheíssimo! É castigo de Deus.

      A tia fervia em histeria, braços flamejando. O avô não teve as meias medidas. E ali, em voz bem recortada, vociferou:

      O que essa mulher precisa é de um homem!

      Era filha dele mas isso não desvanecia o seu parecer. A tia amadurecera sem calor de homem, noivo, marido. Não se contemplam tais adiamentos, nestes nossos lugares. A mulher tem seus tempos, como um fruto. Por falta de cumprimento das estações, minha tia estava proibida de pilar e entrar na cozinha. Os alimentos não aceitam mãos de mulher nessa condição, aquecida por seus interiores martírios.

      Talvez fosse essa a razão que levava o avô a despejar o seu fel sobre a mais nova de suas filhas:

      - A chuva não cai sabe porquê? É para lhe mostrar o que É ficar solteira!

      A mãe tentou deitar água na zanga. Sem falar, ela levantou a mão e fez girar o dedo mostrando desaprovação. O avô fez que não viu e prosseguiu:

      - Quando a boca fica muito tempo sem beijar a saliva se transforma em veneno.

      A tia saiu chorando. Se abrigou no alpendre, rosto anichado entre as mãos. E ali estava eu, ansiando por a consolar, mas não sabendo que palavras escolher. Ofereci só isso: o estar ali, eu e meu silêncio. Ela considerou os meus favores, seus olhos vermelhos se espetaram em mim:

      - O avô tem razão!

      Ainda a tentei dissuadir. Mas ela reiterava suas semelhanças com o desastre da inderramável chuva. Seu rosto era sem beijo, esse chão era sem gota. E agora, o que lhe restava senão a janela da infinita espera? O cotovelo de certas mulheres foi feito para apoiar nos parapeitos. Agora que a rua se convertera num aquário, que homem mais lhe poderia chegar? Só se fosse um com barbatana e guelra. com a ponta da capulana a tia enxugou a lágrima, a meio caminho entre pestana e o queixo.

      - Venha, sobrinho, me acompanhe à igreja.

      - Mas estou totalmente descalço...

      - Fica na porta, à minha espera. Enquanto espera também vai rezando.

      Fomos. Braço dado, eu lhe sentia os tremores. A tia sempre temera a água, desde que, certa vez, quase se afogara no rio. Pois, agora, mal dados uns passos, ela deflagrou a sombrinha e a empunhou como uma espada, abrindo caminho entre as gotas. E logo nos molhamos por todos os lados.

      - É castigo, castigo de Deus! - a tia ladainhava, caminho afora.

      A água perdera peso por motivo de nossos pecados, insistia. Não havia outro motivo, fossem feitiços ou maldições. Somos culpados, nós pecadores. E já ia adiantando reza, pelo caminho: nós pecadores nos confessamos... Quando chegamos, ela apontou a cruz no telhado da igreja:

      - Escute bem, sobrinho. Só há um lugar de fazer milagres: é aqui!

      Eu que não emprestasse ouvido aos restantes, crédulos em espíritos e mezinhas. Que isso não era de civilizado. Sobretudo, eu não desse crédito ao avô, ele era o mais dado aos ancestrais.

      - A gente cimenta a casa, não pode mais ficar de alma ao relento, fazendo altar em ramos de árvore.

      A tia entrou. Fiquei esperando no átrio da igreja. Eu e uma cachorra vadia partilhávamos a solidão do lugar. Me demorei nos olhos do bicho, cheios de pedra preta, tão preta que era água. A cadela parecia absorta na contemplação da rua. Estranharia, também ela, a chuva pasmada?

      Entretanto, na pequenina igreja, ecoavam as rezas e eu escutava perfeitamente a voz da tia:

      - Pai nosso, cristais no Céu, santo e ficado seja o vosso nome.

      Depois, o tempo se entaramelou, viscoso. Seguiram-se cantos e rezas, rezas e cantos. Lembrei as palavras do avô: não são os cristãos que se fatigam, Deus é que não tem fôlego para tanta oração. A cadela vadia, na espera, se aproximou e sacudiu sobre mim a água que lhe pesava no dorso. Noutra ocasião, eu me teria zangado. Naquele momento, porém, até me soube bem aquele respingar de frescura. Matilhas de cães se saracoteassem e talvez o chão ficasse molhado, como se um outro modo de chover estivesse ocorrendo.

      Meu pensamento foi enxotado da cabeça como água em pelo de cachorro: minha tia batia os pés na calçada, despertando-me a mim, assustando a cadela.

      - Veja, sobrinho, o padre me deu este plástico.

      - Para se cobrir?

      - Não. É para embrulhar a Bíblia! Não se vá esborratar a palavra de Deus, cruz credo!

continua...

Fonte:
Mia Couto. A chuva pasmada. 2004.

quinta-feira, 11 de abril de 2019

Concurso de Trovas – Tema Despedida/UBT/Santos (COMUNICADO)


Prezados irmãos(ãs) classificados:

Por motivos alheios à nossa vontade, ligados, principalmente, a sérios problemas de saúde, a entrega da premiação do Concurso em foco, encerrado em fins de 2018, não chegou a acontecer, sendo adiada até fevereiro/19, na esperança de que uma Sessão Solene ainda viesse ser levada a efeito.

Infelizmente, isto não foi possível, ante a continuidade dos referidos problemas.

As Medalhas e Diplomas, devidamente envelopados estão, há algum tempo, prontos para serem remetidos via postal. 

Entretanto, experiências anteriores bastante desagradáveis, como extravios e Troféus devolvidos quebrados bem mais tarde,  apontam para uma solução mais segura que é a entrega em mãos, de boa parte desses envelopes, durante os Jogos Florais de Nova Friburgo, onde, 13 nomes de premiados em Santos lá o foram, também. A sugestão, que nos pareceu satisfatória em termos de segurança, partiu da nossa irmã na trova, Madalena Ferreira, e estamos tendentes aceitá-la, embora abusando da paciência dos caríssimos premiados, que terão cerca de mais um mês de espera.

Alguns envelopes poderão ser entregues em mãos, com a colaboração dos trovadores que comparecerem a Nova Friburgo e que tiverem facilidade para tanto.

Esperando contar com sensibilidade e compreensão de todos, aqui deixamos nosso fraterno e carinhoso abraço.
 
                                                                        Carolina Ramos / UBT/Santos

Monteiro Lobato (Qualidade e quantidade)


Meteu-se um mono a falar numa roda de sábios e tais asneiras disse que foi corrido a pontapés.

– Quê? Exclamou ele. Enxotam-me daqui? Negam-me talento? Pois hei de provar que sou um grande figurão e vocês não passam duns idiotas.

Enterrou o chapéu na cabeça e dirigiu-se à praça pública onde se apinhava copiosa multidão de beócios. Lá trepou em cima duma pipa e pôs-se a declamar.

Disse asneiras como nunca, tolices de duas arrobas, besteiras de dar com um pau. Mas como gesticulava e berrava furiosamente, o povo em delírio o aplaudiu com palmas e vivas – e acabou carregando-o em triunfo.

– Viram? – resmungou ele ao passar ao pé dos sábios. Reconheceram a minha força? Respondam-me agora: que vale a opinião de vocês diante desta vitória popular?

Um dos sábios retrucou serenamente:

- A opinião da qualidade despreza a opinião da quantidade.

Fonte:
Monteiro Lobato. Fábulas.

Mia Couto (A Chuva Pasmada) Pingo Voando Sem Peso


PINGO VOANDO SEM PESO

      De pouco valera a cerimônia dos mandadores das nuvens. Na manhã seguinte, a chuva permanecia pendurada num invisível cabide, pairando sem peso. Do espanto passou-se à desconfiança. Meu pai, por exemplo, temperava as suspeitas:

      - Diga, meu sogro, acha que é obra dos nossos inimigos?

      O avô sorriu. Seus olhos rodaram como que lhe engordando o rosto. E respondeu:

      Inimigos? com a idade fui descobrindo que acabamos fazendo coisas bem piores que os nossos inimigos,

      Entre indagações e suspeitas, os nervos floriam na pele de todos. Minha mãe era a mais inconformada.

      - Marido, você que é o mais senhor, vá à fábrica e fale com eles...

      - Está maluca, mulher? Sou pobre, quem vai escutar um ninguém como eu

      - Pobre é estar sozinho. Você se junte com os vizinhos, fale com eles...

      - Não vale a pena, a maior parte ganhou emprego nessa fábrica, não vão nem abrir a boca...

      - Mas tente falar, pelo menos com alguns.

      - Eu sei com quem vou falar...

      - Com quem?

      - Eu cá sei.

      - Você vai é falar com ninguém, eu já lhe conheço muito bem. Já estou habituada: nenhuma cabeça, nenhuma sentença...

      Minha tia, benzendo-se, aproveitou a pausa e atalhou:

      - O que podemos é falar com o senhor Padre.

      - Esse também não é o caminho -, disse o avô. - Somos pobres, não temos anjos nem santos.

      - Mas temos Deus que é de todos...

      Meu velho tesourou a conversa, retirando-se para o pátio. Apoiou-se no muro do poço e ficou espevitando o isqueiro. Sentei-me junto dele, quieto. Até que ele espetou o braço bem no fundo do poço e acendeu a chama. O escuro ganhou paredes redondas, povoado pela labareda bêbada.

      - Não tarda que acabe a água - disse o meu velho.

      Depois, lançou os olhos na savana, coberta de gretas e varizes. Ainda me veio à cabeça que ele lançasse o isqueiro incandescente sobre o capinzal. Do modo que tudo secara, seríamos devorados por um incêndio. Lavados pelo fogo, agora que a água parecia nos manchar.

      E talvez, então, a chuva se resolvesse a tombar e a despencar daquela meia dúzia de palmos de altura onde se suspendera. A voz de meu pai me trouxe ao mundo:

      - Vai ser assim que o avô vai morrer.

      - Assim, como?

      - Seu avô vai secar.

      O nosso mais-velho estava minguando, empedernido, desde que ficara viúvo. Emagrecera tanto que, quando saíamos para o campo, o amarrávamos à perna da cadeira, e à varanda. com medo dos ventos da tarde. Era assim que o deixávamos, sentado, olhando o rio. Apenas a cadeira sagrada da avó Ntoweni lhe fazia companhia. Na família reinava a crença de que Ntoweni ainda ali se sentava, a escutar os sonhos do seu não-falecido esposo. Os dois eram como a aranha e o orvalho, um fazendo teia no outro.

      Quando regressávamos, no final do dia, o avô ainda ali estava. Seus olhos já tinham consumido toda aquela paisagem. E havia um ressentimento quando, fingindo-se ligeiro, nos atirava:

      - Antes ao Sol que mal acompanhado!

      Certa vez, quando regressávamos, ele me chamou e me segredou ao ouvido:

      - Ntoweni engravidou!

      - Ntoweni?

      O velho apontou o pé direito, todo inchado.

      - Essa é Ntoweni, minha falecida...

      Para enxotar a solidão, o avô dera nome aos pés. Cada um batizado por engenho de seus delírios, em jogo de marionetes. Mordido pela curiosidade, aticei-o:

      - Essa é a avó. E a outra como se chama?

      Um risco malandro lhe arredondava o sorriso. Não podia confessar. Morreria com aquele nome, só para ele.

      - Mentira - desdizia em seguida. - Minha saudade existe toda só para Ntoweni. Venha cá, meu neto: você nunca chegou de conhecer essa sua avó legítima?

      - Nunca, avô. Desencontramo-nos. E como era ela?

      - Ntoweni era tão bonita que nem precisava ser jovem...

      Todos me falavam da sua beleza. Mas ela não gostava de ser bela. A avó sempre respondia: se eu sou bela então maldita seja a beleza! Era assim que ela falava. A beleza, dizia, era uma gaiola que o avô inventara para ela ser pássaro. Um desses pássaros que canta mesmo em cativeiro. E o engano dessas aves é acreditar que o céu fica do lado de dentro da gaiola.


continua...

Fonte:
Mia Couto. A chuva pasmada. 2004.

quarta-feira, 10 de abril de 2019

A. A. De Assis (Trovas Brincantes) III, final


31
Com as gêmeas Gema e Clara
casou seus filhos... e o povo
diz agora quando o encara:
- Lá vai o sogro do ovo!

32
Pergunta a noiva ao rapaz,
temendo futura bronca:
- "Na cama o que é que tu faz:
tu ronca or not tu ronca?..."

33
Vira-bosta não trabalha;
põe ovos em ninho alheio...
Por isso é que se atrapalha,
e vira um troço tão feio!

34
Mico é o cara ir ao boteco
levando a esposa consigo
e ouvir já de longe o eco:
- De castigo!... De castigo!...

35
Rato-rato, rói o rato
um roto resto de pão...
Rente, rouco, rosna um gato,
come o rato e rouba o pão!

36
Um mais um, seja onde for,
são dois... mas, por sua vez,
um mais uma, havendo ardor,
ao nono mês serão três!

37
- Aceitas dar-me os deleites
da próxima contradança?...
- Aceito, desde que aceites
não me apertar contra a pança!

38
Se o cansaço o desconforta,
recolha-se ao quarto, tranque-o,
e ponha o aviso na porta:
Do not disturb... thank you.

39
Do Natal ao Ano Novo
a folga é pouca... O ideal
é deixar de folga o povo
do Ano Novo até o Natal!

40
Debulhando, debulhando,
se enchia o pilão de milho...
Depois, coisando, coisando,
se enchia a casa de filho!

41
Vô é um potro de brinquedo
que o filho soube amansar,
para que o neto, sem medo,
pudesse agora montar...

42
O lobo e o cordeiro, airosos,
vão comer juntos... Depois,
os homens, nem mais gulosos,
vão comer juntos os dois!...

43
Que bela ficas, mocinha,
se pões, por esmero e gosto,
ideias na cabecinha,
mais que pinturas no rosto!

44
Estranho cartaz colado
num carro que eu vi na esquina:
" Vendo a dinheiro ou fiado...
ou troco por gasolina!"

45
"Que delícia isso no espeto!",
diz faminto o gulosão,
quando ao pódio, no coreto,
sobe o touro campeão...

46
Fez-se o casório... no entanto,
o noivo não tinha o dom...
Por vingança, a noiva, em pranto,
foi reclamar no Procon!

47
Tanto encharcou-se em bebida,
que o boêmio, "alto" e em bom som,
ao despedir-se da vida,
pediu a conta ao garçom!...

48
Ao notar a Lua "cheia",
surpreso o Sol resmungou:
- Se um mês atrás eras "meia",
quem foi que te engravidou?...

49
O comilão, na cozinha,
cai de boca na penosa...
- Quem manda ela ser galinha,
e além de tudo gostosa!...

50
Trata o vovô com respeito,
ou logo o castigo vem:
- dele herdarás só o direito
de ficar velho também...

Fonte:
José Fabiano & A. A. De Assis. Trovas brincantes. 2007.

Monteiro Lobato (Os Dois Viajantes na Macacolândia)


Dois viajantes, transviados no sertão, depois de muito andar alcançam o reino dos macacos.

Ai deles! Guardas surgem na fronteira, guardas ferozes que os prendem, que os amarram e os levam à presença de S. Majestade Simão III.

El-rei examina-os detidamente, com macacal curiosidade, e em seguida os interroga:

— Que tal acham isto por aqui?

Um dos viajantes, diplomata de profissão, responde sem vacilar:

— Acho que este reino é a oitava maravilha do mundo. Sou viajadíssimo, já andei por Seca e Meca, mas, palavra de honra! Nunca vi gente mais formosa, corte mais brilhante, nem rei de mais nobre porte do que Vossa Majestade.

Simão lambeu-se todo de contentamento e disse para os guardas:

— Soltem-no e deem-lhe um palácio para morar e a mais gentil donzela para esposa. E lavrem incontinenti o decreto de sua nomeação para cavaleiro da mui augusta Ordem da Banana de Ouro.

Assim se fez e, enquanto o faziam, El-rei Simão, risonho ainda, dirigiu a palavra ao segundo viajante:

— E você? Que acha do meu reino?

Este segundo viajante era um homem neurastênico, azedo, amigo da verdade a todo o transe.

Tão amigo da verdade que replicou sem demora:

— O que acho? É boa! Acho o que é!…

— E que é que é? — interpelou Simão, fechando o sobrecenho.

— Não é nada. Uma macacalha… Macaco praqui, macaco prali, macaco no trono, macaco no pau…

— Pau nele — berra furioso o rei, gesticulando como um possesso. Pau de rachar nesse miserável caluniador…

E o viajante neurastênico, arrastado dali por cem munhecas, entrou numa roda de lenha que o deixou moído por uma semana.

Moral: Quem for amigo da verdade, use couraça ao lombo.

Fonte:
Monteiro Lobato. Fábulas.

Mia Couto (A Chuva Pasmada) Um Gotejar Sem Chuva - Fumos e Névoas


UM GOTEJAR SEM CHUVA

Esse dia, meu pai apareceu em casa todo molhado. Estaria chovendo? Não, que o nosso telhado de zinco nos teria avisado. A chuva, mesmo miudinha, soaria como agulhinhas esburacando o silêncio.

      - Caiu no rio, marido?

      - Não, molhei-me foi por causa dessa chuva.

      - Chuva?

      Espreitamos na janela: era uma chuvinha suspensa, flutuando entre céu e terra. Leve, pasmada, aérea. Meus pais chamaram àquilo um “chuvilho”. E riram-se, divertidos com a palavra. Até que o braço do avô se ergueu:

      - Não riam alto, que a chuva está é dormindo...

      Durante todo dia, o chuvilho se manteve como um cacimbo sonolento e espesso. As gotas não se despencavam, não soprava nem a mais pequena brisa. A vizinhança trocou visitas, os homens fecharam conversa nos pátios, as mulheres se enclausuraram. Ninguém se recordava de um tal acontecimento. Poderíamos estar sofrendo maldição.

      Que houvesse um desfecho para aquela chuva: isso esperávamos com ansiedade. Nesse aguardo, eu me distraía olhando os milhares de arco-íris que luzinhavam a toda a volta. Nunca nenhum céu se tinha multiplicado em tantas cores. Dizia minha mãe, a chuva é uma mulher. Uma dessas viúvas de vaidade envergonhada: tem um vestido de sete cores mas só o veste nos dias em que sai com o Sol.

      A indecisão da chuva não era motivo para alegria. Ainda assim eu inventei uma graça: meus pais sempre me tinham chamado de pasmado. Diziam que eu era lento no fazer, demorado no pensar. Eu não tinha vocação para fazer coisa alguma. Talvez não tivesse mesmo vocação para ser. Pois ali estava a chuva, essa clamada e reclamada por todos e, afinal, tão pasmadinha como eu. Por fim, eu tinha uma irmã, tão desajeitada que nem tombar sabia.

FUMOS E NÉVOAS

      E passou-se um dia sem que a chuva descesse. Nos juntamos na varanda interrogando os céus. Sob o alpendre fazia muito silêncio. Meu avô, no assento de balanço, chefiava a vigília. Ao lado, a cadeira sagrada de sua falecida esposa, nossa avó Ntoweni. Desde que ela morrera, o assento nunca mais fora ocupado por ninguém.

      E agora ali estávamos nós, calados, incapazes de raciocínio e com medo de entender. Por fim, meu avô ousou falar.

      - Essa chuva traz água rio bico.

      Foi de repente, meu pai se ergueu e anunciou o pensamento: havia que bater naquela água, forçá-la a tombar. Deu uns passos por diante e, num gesto largo, comandou:

      - Tudo a remexer!

      Saímos todos com pás, vassouras e panos. Todos menos o avô que mal se erguia sozinho. E varremos o ar, socando as gotas como se agredíssemos fantasmas. Mas a chuva não tombava, as gotas viravolteavam no ar e depois, como aves tontas, voltavam a subir.

      Ao fim de um tempo, meu pai se afastou de nós para não vermos uma sombra pousar em seu rosto.

      - De onde vem isto? - perguntou ele em voz quase viva, não querendo ficar calado, mas evitando ser ouvido.

      - Deve ser feitiço - sugeriu o avô.

      - Não - disse a mãe. - São fumos que vêm da nova fábrica.

      - Fumos? Pode ser. sim, isto só aconteceu depois dessa maldita fumaça...

      - São esses fumos que estão a atrapalhar a chuva. A água fica pesada, já não aguenta ser nuvem...

      Estremecemos, aflitos: a chuva tinha perdido o caminho. Acontecia à água o que sucede aos bêbados: esquecia-se do seu destino. Um bêbado pode ser amparado. Mas quem poderia ensinar a chuva a retomar os seus milenares carreirinhos?

      No poente, vimos o avô, o meu pai e os meus tios se encaminharem para o pátio do régulo. Assunto de chuvas é da competência dos deuses. É por isso que existem os samvura, os donos da chuva. São eles que falam com os espíritos para que estes libertem as águas que moram nos céus.

      Os homens grandes se juntaram durante toda a noite, um mau presságio lhes dava encosto. O que sucedia era um jamais acontecido. Ninguém poderia ter ousado demoniar a chuva. Na nossa terra, toda água é benta.

continua...

Fonte:
Mia Couto. A chuva pasmada. 2004.

terça-feira, 9 de abril de 2019

Caldeirão Poético 21


Desilusão

Qualquer dia, qualquer hora,
Ponho minha viola no saco,
Pego um par de chinelos e sapatos,
Arrumo a mochila e vou embora.

Não quero ficar pra assistir o final,
Esforçar pro filme não acabar mal,
Se não posso mudar o roteiro
Tenho direito de querer estar fora.

Minha bagagem é mesmo pequena.
Sou coadjuvante em qualquer cena,
E no fim, do longa, sempre alguém chora.

Nunca fui muito bom de comédia,
Virou drama e eu perdi as rédeas.
Substitua-me que eu quero ir embora.



Menino Pobre

O que vê o menino pobre
ao contemplar seu brinquedo,
– um carrinho, antes nobre -
de algum dia de folguedo?

É carrinho de criança,
agora sujo, sem roda,
que deixou toda esperança
de, sorrindo, andar na moda.

Olhando para o carrinho,
o bom menino nem chora.
É feliz pelo carinho
da pobre mãe que o adora.

Humilde é sua casinha,
o ambiente é familiar.
Sempre a alegria avizinha
do calor de um doce lar.

Em sua infância nem vê
que há tantos sonhos quebrados!
Dizem jornais que se lê:
Quantos sorrisos roubados!

Por esta infância tão dura,
que será do sue porvir?
Hoje, com sua alma pura,
a pobreza o vê sorrir.

Como será deu futuro,
neste país de apreensão?
Vê-se aqui tanto perjuro,
tanta injúria e corrupção.

Sem tanta oportunidade
de algum emprego decente,
esvai-se a felicidade
numa terra inconsequente.

A Pátria é cheia de dor,
e dor sem nenhum mistério…
Neste mundo há enganador
até lá no Ministério.

Mas n’alma desta criança,
mesmo que a pobreza a sagre,
há chance, muita esperança,
ainda que por milagre.


Paladino do Amor
(Tributo a Martins Fontes)

Gota a gota, sorveste as volúpias da Vida,
na embriaguez total de quem sonhos procura.
E em base de ideal, foste a ânsia incontida,
que arrasta e que arrebata aos vórtices da altura!

Paladino do amor! Foste, em missão cumprida,
a bondade que alenta! A esperança que cura!
Tié-fogo santista, a Glória é refletida
no perfil que deixaste esboçado em ternura.

Em teus rumos de luz, venceste, Martins Fontes,
com fúria de vulcão, as mais torpes campanhas!
E no céu da Poesia, além dos horizontes,

és astro a fulgurar, com brilho eterno e nobre!
Bem acima da inveja e suas artimanhas,
és Sol que não se apaga! A terra não te encobre!


Trilhos da Salvação

Os trilhos entram no túnel
como quem entra no quarto-escuro
no muro
impuro
das lamentações.

Os trilhos saem do túnel
como quem sai da fumaça
que abraça
não passa
embaça.

Agora é o sol raiando
o verde araucária
as pedras bem desenhadas
os parreirais azuis do vale
que saltam
que passam
que ficam.

Agora é a carga pesada
o sorriso aberto
o suor pingando
o maquinista feliz
que olha
que atende
que vai.

Agora é o progresso
que vos seguro
nos trilhos bem duros
de pensamentos modernos
mas ternos
eternos
visionários.

São trilhos de salvação
esses trilhos que teimam
e resistem cem anos
ao tempo e a tudo
levando as flores do progresso
aos jardins do mundo
sem nome
sem fome
com paz!


Rosto de Mulher

Por onde andei eu procurei teu rosto
na multidão passando na avenida.
Alguns olhos me falam de desgosto,
outros acenam numa despedida.

Não encontrei, embora bem disposto
aquela voz de amor, enternecida,
que me manteve vivo no meu posto
minorando as agruras desta vida.

A esperança renasce a cada aurora,
e enquanto a vida se fizer presente,
a procura também se faz mister…

Meu coração, cativo, ainda chora
querendo amenizar a dor pungente,
– a ausência deste rosto de mulher!


A Vida

Quando as minhas pernas fraquejarem,
me ampara, me ajuda, me auxilia,
segura a minha mão, me ensina a guia,
se os meus olhos, cansados, se embaçarem.

Se todos os meus nervos mutilarem,
desculpa os meus stress, minha arrelia,
compreende-me, me afaga, dia a dia,
quando os meus instintos se acabarem.

Espero que ainda guarde na lembrança,
aquilo que eu lhe fiz, tão pequenino
e o quanto eu compreendi a meninice,

e se hoje sou um velho, uma criança,
dispensas as traquinices de um menino
com todos os contratempos da velhice!