Absorto nas notas que tentava desenhar na pauta, o esquálido maestro não percebeu a chegada do passarinho.
Tratava-se de um modesto pardal suburbano, cujo discreto farfalhar de asas não atrapalharia a silenciosa confecção da harmonia, não fosse o mesmo pousar exatamente na tecla de um dó sustenido.
Ambos assustaram-se; o músico e a frágil criaturinha voadora. O pássaro, com o som do piano; o pianista, com o pio simultâneo do animalejo.
Os olhos do homem imediatamente dirigiram-se ao teclado, no exato instante em que outra nota se soltava; era mais um bemol; agora em si. Provavelmente esse indiscreto instrumentista eventual se interesse mais pelas teclas pretas - pensou. E elas eram - repetidas vezes - sutilmente comprimidas. A cada milimétrico salto, um novo som - sempre sustenido. E o animalzinho repetia, no mesmo tom, a nota executada. O pardal parecia fazer o contracanto de si mesmo, Era uma sequência melódica aparentemente aleatória que caminhava no ar e ecoava pela sala. Monossílabos sonoros duplicando-se em notas e pios similares... polifonizando-se metafisicamente.
O músico estava embevecido, enquanto o pardal, saltitante, alternava - agora - as teclas brancas e pretas, mesclando graves com agudos, parecendo divertir-se.
Frenético como ele, o musicista começou a escrever o que ouvia; nem teve tempo para armar a clave de sol: semi fusas, semibreves, mínimas, semínimas, colcheias, tudo se misturava num êxtase só.
Ambos pareciam conhecer-se há muito tempo. Muitos pássaros haviam pousado na varanda, e alguns até adentraram à sombria sala onde as sinfonias preenchiam vazios não apenas geográficos, mas principalmente sentimentais. Certa vez, um beija-flor ficou levitando bailados diante de um arranjo de flores de plástico, porém foram apenas alguns segundos perfeitamente justificáveis, entretanto a nova cena era inusitada e sublimemente inexplicáveis, como não havia percebido aquele pardal? ...claro que não se tratava de um curió ou um canário belga... seria exigir muito de um bichinho sem casta que, a exemplo de alguns artistas, sobressaem por um talentoso autodidatismo, que nem sempre carece de arte final.
Mas a cena era real: havia um pardal tricotando sons nas teclas de um piano!
Que oportunidade!... era como se a ideia que não vinha cedesse lugar ao transcendental e mergulhasse aquele maestro e o passarinho num universo onde as estrelas fossem notas soltas sonorizando sensibilidades e iluminando os ermos de cada olhar de uma plateia embevecida.
Assim como veio, o animalzinho alçou voo, deixando como legado um último pio e o derradeiro som desenhado numa pauta manchada pela melhor das gotas de lágrima.
No dia seguinte, uma tênue brisa afagou cada uma das folhas do livro de música e as conduziu mansamente à janela entreaberta. Uma a uma, elas valsavam numa surreal coreografia de frente e verso, exibindo páginas em cujas trêmulas linhas as notas musicais bailarinavam surrealismos, parecendo sutis dançarinas sobre a leveza de um palco dourado pelas luzes do sol.
Então, elevaram-se com a mesma serenidade com que se soltaram, atingindo - placidamente - a amplitude azulada do céu.
Naquele mágico cômodo da casa. o inefável: numa ternura indizível e indelével, o rosto do lírico e esquálido maestro debruçara-se sobre o piano, enquanto os inertes dedos da sua mão direita pareciam posar para um flash imaginário, eternizando a formação de um derradeiro e único acorde cujo som voou...como um passarinho..
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(Conto agraciado com o 1. lugar no Concurso de Contos promovido peia União Brasileira de Escritores - RJ - 2013)
Fonte:
Luiz Gilberto de Barros (Luiz Poeta). Canção de Ninar Estátuas. Ilhéus: Mondrongo, 2014. [livro gentilmente cedido pelo autor]
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