PINGO VOANDO SEM PESO
De pouco valera a cerimônia dos mandadores das nuvens. Na manhã seguinte, a chuva permanecia pendurada num invisível cabide, pairando sem peso. Do espanto passou-se à desconfiança. Meu pai, por exemplo, temperava as suspeitas:
- Diga, meu sogro, acha que é obra dos nossos inimigos?
O avô sorriu. Seus olhos rodaram como que lhe engordando o rosto. E respondeu:
Inimigos? com a idade fui descobrindo que acabamos fazendo coisas bem piores que os nossos inimigos,
Entre indagações e suspeitas, os nervos floriam na pele de todos. Minha mãe era a mais inconformada.
- Marido, você que é o mais senhor, vá à fábrica e fale com eles...
- Está maluca, mulher? Sou pobre, quem vai escutar um ninguém como eu
- Pobre é estar sozinho. Você se junte com os vizinhos, fale com eles...
- Não vale a pena, a maior parte ganhou emprego nessa fábrica, não vão nem abrir a boca...
- Mas tente falar, pelo menos com alguns.
- Eu sei com quem vou falar...
- Com quem?
- Eu cá sei.
- Você vai é falar com ninguém, eu já lhe conheço muito bem. Já estou habituada: nenhuma cabeça, nenhuma sentença...
Minha tia, benzendo-se, aproveitou a pausa e atalhou:
- O que podemos é falar com o senhor Padre.
- Esse também não é o caminho -, disse o avô. - Somos pobres, não temos anjos nem santos.
- Mas temos Deus que é de todos...
Meu velho tesourou a conversa, retirando-se para o pátio. Apoiou-se no muro do poço e ficou espevitando o isqueiro. Sentei-me junto dele, quieto. Até que ele espetou o braço bem no fundo do poço e acendeu a chama. O escuro ganhou paredes redondas, povoado pela labareda bêbada.
- Não tarda que acabe a água - disse o meu velho.
Depois, lançou os olhos na savana, coberta de gretas e varizes. Ainda me veio à cabeça que ele lançasse o isqueiro incandescente sobre o capinzal. Do modo que tudo secara, seríamos devorados por um incêndio. Lavados pelo fogo, agora que a água parecia nos manchar.
E talvez, então, a chuva se resolvesse a tombar e a despencar daquela meia dúzia de palmos de altura onde se suspendera. A voz de meu pai me trouxe ao mundo:
- Vai ser assim que o avô vai morrer.
- Assim, como?
- Seu avô vai secar.
O nosso mais-velho estava minguando, empedernido, desde que ficara viúvo. Emagrecera tanto que, quando saíamos para o campo, o amarrávamos à perna da cadeira, e à varanda. com medo dos ventos da tarde. Era assim que o deixávamos, sentado, olhando o rio. Apenas a cadeira sagrada da avó Ntoweni lhe fazia companhia. Na família reinava a crença de que Ntoweni ainda ali se sentava, a escutar os sonhos do seu não-falecido esposo. Os dois eram como a aranha e o orvalho, um fazendo teia no outro.
Quando regressávamos, no final do dia, o avô ainda ali estava. Seus olhos já tinham consumido toda aquela paisagem. E havia um ressentimento quando, fingindo-se ligeiro, nos atirava:
- Antes ao Sol que mal acompanhado!
Certa vez, quando regressávamos, ele me chamou e me segredou ao ouvido:
- Ntoweni engravidou!
- Ntoweni?
O velho apontou o pé direito, todo inchado.
- Essa é Ntoweni, minha falecida...
Para enxotar a solidão, o avô dera nome aos pés. Cada um batizado por engenho de seus delírios, em jogo de marionetes. Mordido pela curiosidade, aticei-o:
- Essa é a avó. E a outra como se chama?
Um risco malandro lhe arredondava o sorriso. Não podia confessar. Morreria com aquele nome, só para ele.
- Mentira - desdizia em seguida. - Minha saudade existe toda só para Ntoweni. Venha cá, meu neto: você nunca chegou de conhecer essa sua avó legítima?
- Nunca, avô. Desencontramo-nos. E como era ela?
- Ntoweni era tão bonita que nem precisava ser jovem...
Todos me falavam da sua beleza. Mas ela não gostava de ser bela. A avó sempre respondia: se eu sou bela então maldita seja a beleza! Era assim que ela falava. A beleza, dizia, era uma gaiola que o avô inventara para ela ser pássaro. Um desses pássaros que canta mesmo em cativeiro. E o engano dessas aves é acreditar que o céu fica do lado de dentro da gaiola.
continua...
Fonte:
Mia Couto. A chuva pasmada. 2004.
Nenhum comentário:
Postar um comentário