quinta-feira, 11 de abril de 2019

Mia Couto (A Chuva Pasmada) Pingo Voando Sem Peso


PINGO VOANDO SEM PESO

      De pouco valera a cerimônia dos mandadores das nuvens. Na manhã seguinte, a chuva permanecia pendurada num invisível cabide, pairando sem peso. Do espanto passou-se à desconfiança. Meu pai, por exemplo, temperava as suspeitas:

      - Diga, meu sogro, acha que é obra dos nossos inimigos?

      O avô sorriu. Seus olhos rodaram como que lhe engordando o rosto. E respondeu:

      Inimigos? com a idade fui descobrindo que acabamos fazendo coisas bem piores que os nossos inimigos,

      Entre indagações e suspeitas, os nervos floriam na pele de todos. Minha mãe era a mais inconformada.

      - Marido, você que é o mais senhor, vá à fábrica e fale com eles...

      - Está maluca, mulher? Sou pobre, quem vai escutar um ninguém como eu

      - Pobre é estar sozinho. Você se junte com os vizinhos, fale com eles...

      - Não vale a pena, a maior parte ganhou emprego nessa fábrica, não vão nem abrir a boca...

      - Mas tente falar, pelo menos com alguns.

      - Eu sei com quem vou falar...

      - Com quem?

      - Eu cá sei.

      - Você vai é falar com ninguém, eu já lhe conheço muito bem. Já estou habituada: nenhuma cabeça, nenhuma sentença...

      Minha tia, benzendo-se, aproveitou a pausa e atalhou:

      - O que podemos é falar com o senhor Padre.

      - Esse também não é o caminho -, disse o avô. - Somos pobres, não temos anjos nem santos.

      - Mas temos Deus que é de todos...

      Meu velho tesourou a conversa, retirando-se para o pátio. Apoiou-se no muro do poço e ficou espevitando o isqueiro. Sentei-me junto dele, quieto. Até que ele espetou o braço bem no fundo do poço e acendeu a chama. O escuro ganhou paredes redondas, povoado pela labareda bêbada.

      - Não tarda que acabe a água - disse o meu velho.

      Depois, lançou os olhos na savana, coberta de gretas e varizes. Ainda me veio à cabeça que ele lançasse o isqueiro incandescente sobre o capinzal. Do modo que tudo secara, seríamos devorados por um incêndio. Lavados pelo fogo, agora que a água parecia nos manchar.

      E talvez, então, a chuva se resolvesse a tombar e a despencar daquela meia dúzia de palmos de altura onde se suspendera. A voz de meu pai me trouxe ao mundo:

      - Vai ser assim que o avô vai morrer.

      - Assim, como?

      - Seu avô vai secar.

      O nosso mais-velho estava minguando, empedernido, desde que ficara viúvo. Emagrecera tanto que, quando saíamos para o campo, o amarrávamos à perna da cadeira, e à varanda. com medo dos ventos da tarde. Era assim que o deixávamos, sentado, olhando o rio. Apenas a cadeira sagrada da avó Ntoweni lhe fazia companhia. Na família reinava a crença de que Ntoweni ainda ali se sentava, a escutar os sonhos do seu não-falecido esposo. Os dois eram como a aranha e o orvalho, um fazendo teia no outro.

      Quando regressávamos, no final do dia, o avô ainda ali estava. Seus olhos já tinham consumido toda aquela paisagem. E havia um ressentimento quando, fingindo-se ligeiro, nos atirava:

      - Antes ao Sol que mal acompanhado!

      Certa vez, quando regressávamos, ele me chamou e me segredou ao ouvido:

      - Ntoweni engravidou!

      - Ntoweni?

      O velho apontou o pé direito, todo inchado.

      - Essa é Ntoweni, minha falecida...

      Para enxotar a solidão, o avô dera nome aos pés. Cada um batizado por engenho de seus delírios, em jogo de marionetes. Mordido pela curiosidade, aticei-o:

      - Essa é a avó. E a outra como se chama?

      Um risco malandro lhe arredondava o sorriso. Não podia confessar. Morreria com aquele nome, só para ele.

      - Mentira - desdizia em seguida. - Minha saudade existe toda só para Ntoweni. Venha cá, meu neto: você nunca chegou de conhecer essa sua avó legítima?

      - Nunca, avô. Desencontramo-nos. E como era ela?

      - Ntoweni era tão bonita que nem precisava ser jovem...

      Todos me falavam da sua beleza. Mas ela não gostava de ser bela. A avó sempre respondia: se eu sou bela então maldita seja a beleza! Era assim que ela falava. A beleza, dizia, era uma gaiola que o avô inventara para ela ser pássaro. Um desses pássaros que canta mesmo em cativeiro. E o engano dessas aves é acreditar que o céu fica do lado de dentro da gaiola.


continua...

Fonte:
Mia Couto. A chuva pasmada. 2004.

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