segunda-feira, 1 de abril de 2019

Mário Quintana em prosa e verso 9


Mentiras

Lili vive no mundo do Faz-de-conta... Faz de conta que isto é um avião. Zzzzuuu... Depois aterrissou em piquê e virou trem. Tuc tuc tuc tuc... Entrou pelo túnel, chispando. Mas debaixo da mesa havia bandidos. Pum! Pum! Pum! O trem descarrilou. E o mocinho? Onde é que está o mocinho? Meu Deus! onde é que está o mocinho?! No auge da confusão, levaram Lili para a cama, à força. E o trem ficou tristemente derrubado no chão, fazendo de conta que era mesmo uma lata de sardinha.
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Mentira?

        A mentira é uma verdade que se esqueceu de acontecer.
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Topografia

Meu bonde passa por ali. Pela sua esquina, apenas. É uma ruazinha tão discreta que logo faz uma curva e o olhar não pode devassá-la. Não lhe sei o nome, nem nunca andei por ela. Mas faz anos que me vem  alimentando de mistério. Se eu fosse lá, encontraria alguns poetas: o Marcelo, o Wamosy, o Juca... todos mortos de há muito, todos no mesmo bar. Ah! ruazinha... ruazinha que leva à Babilônia, eu sei... au porto inventado de Stargiris... a regiões entressonhadas a medo.
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Cruel amor

Um dia, da ponta daquela mesa comum de hóspedes, dona Glorinha me interpelou:

- Seu Mario, o senhor ainda não leu o CRUEL AMOR?

Não, eu nunca tinha lido o CRUEL AMOR!... Pois tudo o que falta à minha vida, toda a imperfeição em que ainda me debato, vem de eu nunca ter lido o CRUEL AMOR... de ter achado ridículo o título… de ter achado ridícula a transcendental pergunta de dona Glorinha...
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As falsas recordações

Se a gente pudesse escolher a infância que teria vivido, com que enternecimento eu não recordaria agora aquele velho tio de perna de pau, que nunca existiu na família, e aquele arroio que nunca passou aos fundos do quintal, e onde íamos pescar e sestear nas tardes de verão, sob o zumbido inquietante dos besouros...
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Noturno da viação férrea

Ora, os fantasmas são viajantes noturnos. Se aboletam nos carros vazios e ficam (por que será que os fantasmas não fumam?) a olhar o mundo que desliza...

Mas sucede que as máquinas estavam manobrando apenas. E voltam todas para a gare deserta.        

E depois vem a luz crescente, a luz cruel, situando e ambientando as coisas.

É quando surgem, cabalísticos, os primeiros letreiros:

-        HOTEL SAVÓIA - Ao PENTE DE OURO - SAÚDE DA MULHER - os fantasmas, puídos de claridade, soltam um pífio suspiro e se desvanecem...

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