O FLUIR DO RIO SECO
Passaram-se mais dias. O rio emagrecera mais do que o avô, os terrenos encarquilharam, o milho amarelecia.
Nessa noite, a lua estava cheia. No escuro, o luar se replicava nas mil gotinhas, acendendo um fantástico presépio. Nunca eu tinha assistido a tanta luz noturna, o estrelar do céu mesmo sobre o nosso tecto. Meu pai sorriu:
- Já temos lua elétrica! E nos fez sorrir. Olhei o seu rosto cansado como se encontrasse nele razões da sua atitude, sempre ausente e preguiçosa. Ainda miúdo, meu pai tinha ido para as minas, lá no Johni. Saíra jovem, voltara envelhecido. Os que ficam órfãos veem os seus pais serem engolidos pelo chão. O fundo da terra roubara de mim o meu pai, sem o levar da vida. Em menino, eu acordava chorando no meio da noite. Minha mãe acudia, pronta:
- Sonhou com ele, meu filho?
Não. Nas minas do ouro meu velho descia tão fundo que os meus sonhos já não chegavam nem à sua lembrança. Meu sonho era outro, mais escuro. Anos depois, meu pai regressou mas permaneceu ausente, como se lhe faltasse algum inferno. E partiu de novo. E regressou. E voltou a partir.
De cada vez que voltava, vinha mais e mais doente. Fumava para que o peito não estranhasse a falta de poeira. Quando, por fim, se estabeleceu, definitivo, entre nós, meu pai só tinha um fazer: dormir. De tanto enroscar na cama ele cheirava à palha do colchão.
- Porquê tanta preguiça, marido?
- Eu não durmo por preguiça. Eu durmo de tristeza.;
Não era tristeza. Era um vazio. Os tristes têm um céu. Cinzento, mas céu. Os desesperados têm um deserto. Meu pai olhava para trás: era mais o esquecido que o vivido. O que não lembrava era porque se esquecera de viver? Ou tudo tinha ficado lá, na nina que desmoronou? Quando se cruzava comigo, de pijama, a meio do dia, meu pai se justificava:
- Sua mãe quer que eu faça dessas coisas que criam alma na pessoa. Só que ela não entende: se eu estou vivo é porque não tenho alma nenhuma.
E agora, olhando-o sob aquele estilhaçado luar, me pareceu que meu pai não era senão poeira entre poeiras de Lua. Sua alma ficara sepultada entre longínquos minérios.
Com aparato, a mãe se levantou, interrompendo os meus devaneios. Ela pendurou uma pá no ombro e anunciou, ao passar a porta:
- Se a água não vem à terra...
Nós a vimos transitando da ideia ao gesto: atirava terra para o ar, semeando a chuva de areia. Meu pai acorreu à varanda, todo consumido:
- Tenha vergonha, mulher! Não vê os vizinhos espreitando?
Mas ela prosseguiu chuveirando terra pelos ares. E parecia resultar, os grãos se prendiam às gotas, a areia se suspendia na chuva. Minha mãe ainda brincou:
- Viu, homem? Estou a semear granizo.
E foi tanta a terra lançada à água que, em redor da casa, o céu escureceu. Parecia que a Lua se avariava nas mil lampadinhas onde se acendera. Restou um breu de confundir galos. A família deu por findo esse aterrar do ar. Já bastava uma estranheza.
Na minha cabeça, o futuro se antecipava: não tardaria que, da terrinha suspensa, brotassem lateralmente umas verduras. Nasceriam enviesadas, crescendo de lado para o lado. Apanharíamos milho, mandioca e feijão como se fosse do ramo de árvore. As pessoas trabalhariam como pintores, pincelando uma tela feita de pingo de areia e do grão da chuva. Minha mãe seria a primeira a festejar:
- Agora, até me canso menos. É que já não tinha costas para cavar no chão...
Mas quem vivia, de verdade, uma nova alegria era a nossa tia. Sempre fora ela a ir ao poço buscar água. Agora, nem saía de casa. Janela aberta, ela fazia girar a lata, como se desse umas quantas braçadas. Varava o ar, em curvas cegas, e a lata logo ficava cheia. O rio era um poço escavado no céu. Um poço à sua privada disposição.
- Deus trouxe o rio à nossa porta.
Mas a tia cedo amargou a sua ilusão. Ela era a fervorosa senhora de cruz e rosário, sempre de reza na boca. Do inicial sentimento de que um milagre sucedera à porta da sua casa lhe foi despontando dúvida: o chuvilho seria, ao invés, um sinal da indisposição divina. Ou, ainda pior, o início do nosso último destino. Uma espécie, enfim, de dilúvio preguiçoso. A tia passou a clamar aos ventos:
- Vocês não entendem? O que se está passar é uma inundação sem chão, um castigo de Deus!
O chão encharcado de poeira, tudo tão sedento: aquilo era a moeda e sua outra face. Enchente e seca, escassez e excesso, tudo num mesmo regaço.
- Vejam esse céu tão cheíssimo! É castigo de Deus.
A tia fervia em histeria, braços flamejando. O avô não teve as meias medidas. E ali, em voz bem recortada, vociferou:
O que essa mulher precisa é de um homem!
Era filha dele mas isso não desvanecia o seu parecer. A tia amadurecera sem calor de homem, noivo, marido. Não se contemplam tais adiamentos, nestes nossos lugares. A mulher tem seus tempos, como um fruto. Por falta de cumprimento das estações, minha tia estava proibida de pilar e entrar na cozinha. Os alimentos não aceitam mãos de mulher nessa condição, aquecida por seus interiores martírios.
Talvez fosse essa a razão que levava o avô a despejar o seu fel sobre a mais nova de suas filhas:
- A chuva não cai sabe porquê? É para lhe mostrar o que É ficar solteira!
A mãe tentou deitar água na zanga. Sem falar, ela levantou a mão e fez girar o dedo mostrando desaprovação. O avô fez que não viu e prosseguiu:
- Quando a boca fica muito tempo sem beijar a saliva se transforma em veneno.
A tia saiu chorando. Se abrigou no alpendre, rosto anichado entre as mãos. E ali estava eu, ansiando por a consolar, mas não sabendo que palavras escolher. Ofereci só isso: o estar ali, eu e meu silêncio. Ela considerou os meus favores, seus olhos vermelhos se espetaram em mim:
- O avô tem razão!
Ainda a tentei dissuadir. Mas ela reiterava suas semelhanças com o desastre da inderramável chuva. Seu rosto era sem beijo, esse chão era sem gota. E agora, o que lhe restava senão a janela da infinita espera? O cotovelo de certas mulheres foi feito para apoiar nos parapeitos. Agora que a rua se convertera num aquário, que homem mais lhe poderia chegar? Só se fosse um com barbatana e guelra. com a ponta da capulana a tia enxugou a lágrima, a meio caminho entre pestana e o queixo.
- Venha, sobrinho, me acompanhe à igreja.
- Mas estou totalmente descalço...
- Fica na porta, à minha espera. Enquanto espera também vai rezando.
Fomos. Braço dado, eu lhe sentia os tremores. A tia sempre temera a água, desde que, certa vez, quase se afogara no rio. Pois, agora, mal dados uns passos, ela deflagrou a sombrinha e a empunhou como uma espada, abrindo caminho entre as gotas. E logo nos molhamos por todos os lados.
- É castigo, castigo de Deus! - a tia ladainhava, caminho afora.
A água perdera peso por motivo de nossos pecados, insistia. Não havia outro motivo, fossem feitiços ou maldições. Somos culpados, nós pecadores. E já ia adiantando reza, pelo caminho: nós pecadores nos confessamos... Quando chegamos, ela apontou a cruz no telhado da igreja:
- Escute bem, sobrinho. Só há um lugar de fazer milagres: é aqui!
Eu que não emprestasse ouvido aos restantes, crédulos em espíritos e mezinhas. Que isso não era de civilizado. Sobretudo, eu não desse crédito ao avô, ele era o mais dado aos ancestrais.
- A gente cimenta a casa, não pode mais ficar de alma ao relento, fazendo altar em ramos de árvore.
A tia entrou. Fiquei esperando no átrio da igreja. Eu e uma cachorra vadia partilhávamos a solidão do lugar. Me demorei nos olhos do bicho, cheios de pedra preta, tão preta que era água. A cadela parecia absorta na contemplação da rua. Estranharia, também ela, a chuva pasmada?
Entretanto, na pequenina igreja, ecoavam as rezas e eu escutava perfeitamente a voz da tia:
- Pai nosso, cristais no Céu, santo e ficado seja o vosso nome.
Depois, o tempo se entaramelou, viscoso. Seguiram-se cantos e rezas, rezas e cantos. Lembrei as palavras do avô: não são os cristãos que se fatigam, Deus é que não tem fôlego para tanta oração. A cadela vadia, na espera, se aproximou e sacudiu sobre mim a água que lhe pesava no dorso. Noutra ocasião, eu me teria zangado. Naquele momento, porém, até me soube bem aquele respingar de frescura. Matilhas de cães se saracoteassem e talvez o chão ficasse molhado, como se um outro modo de chover estivesse ocorrendo.
Meu pensamento foi enxotado da cabeça como água em pelo de cachorro: minha tia batia os pés na calçada, despertando-me a mim, assustando a cadela.
- Veja, sobrinho, o padre me deu este plástico.
- Para se cobrir?
- Não. É para embrulhar a Bíblia! Não se vá esborratar a palavra de Deus, cruz credo!
continua...
Fonte:
Mia Couto. A chuva pasmada. 2004.
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