sexta-feira, 26 de abril de 2019

Malba Tahan (Maktub!)


(Lenda árabe)
   
Afirmam os historiadores que o túmulo de Sidi-Yakub, existente em Tlemcen, data do século XI. Não nos move o desejo de contestar a opinião dos eruditos sobre um monumento quase em ruínas, perdido ou esquecido, talvez, no deserto. A única coisa realmente interessante que se encontra nessa cuba - outrora tão venerada pelos crentes - é uma inscrição ali deixada por um escravo. Resume-se essa legenda numa palavra - Maktub - gravada sobre a pedra que cobre as cinzas de Sidi-Yakub.

E sabeis, ó cristão! O que quer dizer Maktub? Essa palavra encerra a filosofia de um povo, o destino de uma civilização. Maktub é um vocábulo árabe que significa apenas - Estava escrito, ou melhor: Tinha que acontecer. Maktub é, assim, a expressão da Fatalidade (1).

Tal palavra, na laje tumular de Tlemcen, recorda um episódio ocorrido com dois namorados que o Destino caprichoso uniu para depois separar cruelmente.

Conta-nos uma lenda que na cidade de Orã, ao norte da Argélia, vivia certa moça, de origem francesa, chamada Heliete. Era filha de um negociante cristão, de Marselha, que se estabelecera, levado pelas necessidades de sua profissão, sob o céu da África.

Certa vez, durante uma feira, conheceu Heliete o jovem Iezid El-Massi, de origem nobre, descendente de uma das mais ricas famílias de Tlemcen. Viva simpatia, que deveria crescer de dia para dia, uniu desde logo, os dois namorados.

Heliete, levada por seu temperamento excessivamente romântico, apaixonou-se pelo árabe, e este - arrebatado como os homens de sua raça - sentiu que a sua vida não mais teria sentido se lhe viesse a faltar o amor de cristã.

A pitoresca cidade de Orã, por esse tempo sob o poder de Bey Mustaphá Ben Yussef, foi testemunha silenciosa daquele amor. As tamareiras, sob o sol causticante, abriam suas palmas e estendiam no chão, da praia até a montanha, um largo tapete de sombras, sobre o qual os dois jovens caminhavam felizes, longas horas esquecidas, em doces colóquios.

Grande abismo de incompatibilidade separa, entretanto, uma cristã de um adepto da religião de Maomé.

Os país de Heliete, informados das inclinações amorosas da jovem, opuseram-se tenazmente àquele casamento que se lhes afigurava desonroso. E o primeiro brigue que levantou ferro de Orã transportou para Marselha a apaixonada menina.

O Infortúnio, na vida das criaturas, escreve, às vezes, várias páginas num período durante o qual a Felicidade mal teria tempo para esboçar a curva da letra "alef". A infeliz Heliete, ferida tão rudemente em seu delicado coração, não soube resistir; e adoeceu gravemente, em consequência daquele golpe, iniciado pela separação e concluído pela desesperança.
      
Sentindo avizinhar-se dela a sombra da morte, mandou chamar, em segredo, um imã (2), que vivia no porto, entre aventureiros e embarcadiços.

- Quero morrer - confessou ela, entre soluços, ao velho maometano - na religião de Allah, que é a crença de meu noivo. A vida nos separou: quem sabe se a morte não virá pôr termo a essa separação. E morrendo fiel à religião que os árabes professam terei o consolo supremo de encontrar no céu muçulmano aquele que tanto amei na terra!

- Se o teu desejo é sincero, menina - respondeu o imã - não porei dúvida em servir de testemunha à tua conversão. Basta, para isso, que pronuncies três vezes a nossa profissão de fé!

Heliete, sem hesitar, assim falou:

- Declaro que só há um Deus, que é Allah, e que Maomé é o profeta de Allah!

E três vezes repetiu, solene, as suas palavras que constituem o dogma fundamental da religião dos árabes.

O imã tirou, então, as sandálias, abriu um exemplar do Alcorão, e voltando-se para Meca, a Cidade Santa, leu em voz alta o primeiro capítulo do Livro de Allah (3):

    - Bismillahi ahmair rahin! Em nome de Deus, Clemente e Misericordioso! Louvado seja o Onipotente, criador de todos os mundos! A misericórdia é em Deus o atributo supremo! Nós Te adoramos, Senhor! E imploramos a Tua divina assistência! Conduze-nos pelo caminho certo! Pelo caminho daqueles que são esclarecidos e abençoados em Ti.

E quando Azrail, o anjo da Morte, veio buscar Heliete, encontrou-a convertida à religião do Islã. E a alma da boa e desditosa menina foi levada para o seio de Allah, Clemente e Misericordioso.
   
No mesmo dia em que Heliete expirava em Marselha, o cheique Iezid El-Hassin agonizava no fundo de sua tenda, no oásis de Euddad, perto de Tlemcen

Junto ao leito do desventurado moço achavam-se apenas duas pessoas: um escravo, que a dedicação extrema impedira de abandonar o cheique, e um frade que ali fora ter, anuindo a um chamado. O sacerdote era um desses missionários que percorrem durante longos anos, os desertos africanos em trabalho de catequese. A declaração do jovem muçulmano deixou-o, de certo modo, surpreendido. Confessou o cheique que nutria o vivo desejo de morrer na paz da Igreja, pois só assim poderia encontrar-se entre os bem-aventurados, com sua noiva, que era cristã.

A salvação daquela alma iluminada pela Fé no derradeiro momento, comoveu o bom sacerdote. Fora Deus, na sua infinita misericórdia, que o conduzira àquela tenda. Cumpria-lhe, pois, salvar dos tormentos do Inferno, o jovem arrependido.

E o padre, depois de ouvir a confissão do cheique, e tendo-se certificado da sinceridade de sua resolução deu-lhe a absolvição plenária batizando-o segundo manda a Santa Igreja Católica - e fê-lo, ainda, receber na hóstia, em comunhão, o corpo divino de Jesus, Nosso Senhor!
   
Assim, o rico cheique Yezid El-Hassin, príncipe de Tlemcen que em vida rezara nas mesquitas e erguera preces a Allah, Onipotente, cerrou os olhos para os desenganos do mundo como um bom cristão.

Maktub! Estava escrito! A fatalidade é cega e inexorável.

Estava escrito que para os dois namorados de Orã nunca mais teria termo a cruel separação, e que nem mesmo com a morte veriam realizado o seu sonho de amor.

E isso aconteceu. Ela morreu muçulmana, ele morreu cristão.

Maktub!

E o padre, depois de ouvir a confissão do cheique, e tendo-se certificado da sinceridade de sua resolução deu-lhe a absolvição plenária batizando-o segundo manda a Santa Igreja Católica
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NOTAS:
1- Maktub - Particípio do verbo "catab", escrever.
2 - Imã - O Islã não admite sacerdotes. O imã desempenha apenas as funções de oficiante nas orações diárias nas mesquitas. O titulo de Imã é dado a certos doutores
e aos quatro fundadores do Islamismo.
3 - Livro de Allah - Alcorão.


Fonte:
Malba Tahan. Os Segredos da Alma Feminina nas Lendas do Oriente.

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