sábado, 27 de abril de 2019

Chico Miguel (Sonetos Escolhidos) 6

Chico Miguel (Francisco Miguel de Moura)
AMOR É VIDA
Soneto de amor à moda de Camões

Quem disse que o amor não manda, tente
Ficar assim, na vida, absoluto!
Amor manda no triste e no contente,
O amor e a vida não suportam luto.

Amor é flor, depois se torna em fruto,
Um fruto que ao cair deixa semente,
Semente onde o amor é mais enxuto,
Dela nascendo o amor mais inocente.

E sei que amor maltrata, mas não mata,
Dentro de si milagres fazem curas
E em suas transformações tudo retrata.

Sei que um sorriso esconde as coisas duras,
Mas sua língua em verdades se dilata
Pra sepultar num beijo as amarguras.

AS MIL ESSÊNCIAS DO AMOR

Quantas essências há pra se aspirar
Depois da noite. Sinta sutilmente,
Pela glória e a graça de ser gente,
As belezas que o vento traz do mar.

Ponha o nariz adiante da janela,
Sinta a menina a rua atravessando,
Sinta mais, sinta a vida começando
Cheia de flores pelos passos dela.

São as aves cantando em cada vão,
São as flores cheirosas, são as palmas,
Fortalecendo as fibras onde estão

A saltarem pra vida como estrelas.
Veja as essências todas, tagarelas,
Como a enfeitarem nossas próprias almas.

DENTRO DE MIM

Duas forças me fazem torvelinho:
A máscula firmeza do homem franco,
E uma espécie de força quase em branco,
Quando a mulher se põe no meu caminho.

Sei que sinto mais força e alegria,
Junto à mulher que está longe da pista
E se acerta um olhar para conquista,
Não avança, nem esconde ou desafia.

Porém,  dentro de mim, a ansiedade
Me agarra e se prolonga... Eternidade
Trazendo mil soluços tão profundos

Que nem chorar consigo... E, inconsciente,
Então pergunto a Deus se estou doente,
Ou se alço voos para estranhos mundos.

ÊXTASE E SUOR

Sou perfume de mim e odor do mundo
para que a terra me cuspa.
O sopro que me der
me enterrará fundo,
frio de fazer corpo e alma se unirem.
E, ao infinito e à luz,
que meu suor
jamais sirva de foice ou gume.

A dor com que me cortam
com  explosão
seja lembrada em mansa contramão.

Ao meu último perfume, o mundo furta
a cor e o cheiro:
- Mau bocado ao cão que ama.
   
O frio há de sarar-me
com seu branco lençol sem dobras,
de areia, nos olhos amorosos.

Deito-me agora, em êxtase de fé,
No cuspido chão que longe erra,
levando o vento limpo à pele
e ao imo
em que me arrimo,
sem perder a mão.

INCIDENTE NUMA LOJA

Nunca vi uma compra de mais sorte:
Era manhã, entramos num armazém,
Onde aos panos tesouras cortam forte,
No momento era aquele vai-e-vem.

A companheira, ao lado, alteia o tom:
“Olhe a moça, é café para os fregueses!”
E avisa que eu me sirva: “É muito bom!”
Mas enfrentei ausências: – dois reveses:

Nem do café sorvi nem vi a moça,
Quando a busquei já ia longe, oculta,
Num balanço de corpo que me adoça.

Mas, tão logo, ela volta, o olhar brejeiro,
Disse um doce sorriso, e mais adulta:
“Oh, me desculpe! Enfim, senti teu cheiro!”

LENDA, OU FADA?

Ave ou nave?  voava musical,
vestido em linho a desenhar-se toda,
delgado corpo bailando ao vento,
dentes brancos, lábios em carmim...
que frio, que medo em mim!

Oh signo sensual! exclamo,
por ti pecarei, só por querer-te,
e tentarei tantas vezes... tonto!

E que jamais meus olhos negros
venham  pousar sobre os teus, sim
ou não, nem  cruzar teus caminhos,
nunca de perto ou de longe.

Se teus punhais vi-o(s) tão lentos
ferirem-me os olhos e a razão,
e logo me fizeram de inútil
oh, não! nunca jamais, não!

Quero um sonho para sempre.

E então, por que ondas me vens
o'  ânsia de noite inapagada?
agora? por onde? por nada?

A que levou meus olhos,      
a que me encheu os olhos
até secarem para sempre?
ai de ti, mundo claro-escuro!

Lenda ou fada! de novo estou,
agora e para sempre impuro!

OPOSTAS APOSTAS

A aranha tece e retece,
e não para nem cansa,
emaranha-se na teia
e dança. E desce, desce...

O espelho mostra o irreal,
direito x esquerda,
e quem sabe não aposta
em tantos mais erros?

O homem, como se não visse,
desconhece a face de ontem,
desde que emoção alguma,
o mundo em redor lhe pinte.

A mulher aparece e logo vê
tudo em redor. E desaparece
para voltar, se sente amor,
e mais refletir e parecer.

Em suma, todos nós viventes,
gente, animal ou coisa,
apostamos no impossível.   

O QUE EXISTIU

Se o que existiu resiste
À queda do fio de cabelo,
À pele que sentiu o cheiro,
Viu o amanhecer pelo sereno,
Ouviu seu "bem" dizer com alma:
- “Dou-te o meu DNA”!
Existir é só querer.

O risco no papel resiste,
Depois que o fogo o devorou,
O verso que o poeta fez,
A linha do tempo que não para,
O risco invisível no céu, sem cor,
Como um relâmpago sutil,
Quando Deus mandar a eternidade:
Tudo existirá, tudo precisa
Existir como a dor
Que a não-dor separa.

E há o “nós” como ser sem “eu”,
E há o feito e o desfeito
E ainda o defeito e o “por fazer”
Que só Deus, sábio, sabe
Como acontecer.

SENTIMENTO PRESO

Um sentir puro e preso - tortura
Marcada nos primeiros dias
De alguém que apenas nascia
Entre trancos e barrancos, o futuro
De olhos fixos nos braços,
Pedindo calor de peito e mãos,
Desgarrado dos primeiros tatos
Olhos feridos no segundo teto,
Em novas mãos e outros braços...

Calar pra sempre, quem condenaria?

Mas se um ferrão plantou-se noite e dia,
No fundo de dois corações?

E o que dizer, então? Num poema
Que ninguém vai ler nem ver?
Numa palavra só, balbuciada
Em vão, que ninguém quer saber?

Há culpa sem perdão? Não há.
Mas dúvida e covardia, sim.
E a indecisão imprecisa, fria
Da paixão a rolar e morder-se,
A-mor-da(n)çando sem guia?

Um sentir puro e preso tortura
Dois entes: o ser e a criatura.

UM DIA QUALQUER

Até a minha dor é branca
e me nega.

Preciso de um susto longo,
Para me levantar da cama.

Quero palavras de fogo,
Ouvir se alguém ainda me ch(ama).

Preguiça não é. É provação!
Sempre acordei às quatro da manhã.

E hoje estou besta, entre cobertores
Brancos, ontem tão escuros...
       Onde as outras cores?

O calendário é branco, o céu, a lua,
Até o sol me parece que flutua
               Como neve.

Preciso de um elo que não seja branco.
             E que venha breve.

Fonte:
Chico Miguel

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