domingo, 21 de abril de 2019

Mia Couto (A Chuva Pasmada) A Derradeira Gravidez da Tristeza


A DERRADEIRA GRAVIDEZ DA TRISTEZA

      Saí correndo, em desespero. Me precipitei para a fábrica. Nem meio caminho percorri. Um camponês me alertou:

      - Procura a sua mãe? Pois. foi seu pai que lhe levou para o rio, foi matá-la lá.

      A ideia de encontrar minha mãe golpeada me roubava as forças. Eu já não corria, apenas cambaleava ao sabor da inclinação da encosta. Tudo em redor rodopiava, mas à minha cabeça chegava, com clareza, a consumação do presságio. Então, era isso: o renascer da lenda. A primeira Ntoweni sacrificara a sua vida para libertar a água e salvar os seus. Esse destino revivia agora em minha mãe. Nada sucede de primeira vez, tudo é reedição de algo já sucedido. Quando pisei a margem, meu corpo pingava como se eu tivesse atravessado um oceano. Exausto, tombei. Escutei, então, uma voz de mulher. Era minha mãe que chamava. Estava ferida, incapaz de se levantar.

      - Ele não me fez mal, filho. Seu pai não me magoou.

      O que tinha sucedido? Os dois se despencaram dos rochedos. Ambos ficaram feridos nessa queda.

      - Lutavam?

      Ela respondeu, sorrindo:

      - Fazíamos exatamente o contrário.

      - O contrário?

      - Nós estávamos namoricando. Escorregamos, sem querer, nesses penhascos.

      Acontecera assim: no início ele queria matá-la, fazê-la pagar pela traição. Minha mãe enfrentou aquela carga com serenidade. E lhe disse com o mesmo sossego com que me dizia agora:

      - Esse homem nunca chegou de me tocar.

      Meu pai não acreditou. Disse que conhecia bem aquele ranhoso desse negro, esse que tanto se armava em pronúncia de branco que já os lábios se afilavam.

      - Não foi com esse negro que eu negociei meu corpo.

      - Não foi?

      - Foi com o patrão principal, foi com o branco.

      - Afinal?

      Meu pai parecia ter perdido a razão de sua raiva. Minha mãe disse que ele suspirou, como se fosse em alívio. Depois, levantou o rosto e “inquiriu:

      - E, então, você foi com esse branco?

      - Não, não fui.

      - E por que não foi, mulher?

      O tom dele parecia, no momento, de desilusão. Parecia quase repreendê-la por não ter ascendido. A mãe não quis alongar conversa. E cortou, célere:

      - Não fui nem vou com nenhum outro homem, preto ou branco.

      Olhei o rosto dela, parecia uma bandeira de orgulho. Uma serenidade interior lhe iluminava o semblante.

      - Verdade, mãe? Esse branco não abusou da senhora?

      - Desde o primeiro dia, ele me desejou, sim. Mas o homem não era capaz. Disse-me que eu cheirava à minha raça.

      O branco ordenou que ela se devia perfumar. E lhe quisera oferecer, mesmo, um frasco de perfume. Mas ela recusara. Tinha em casa um frasco de cheiro que sobrara de sua festa de noivado. E foi esse vidro que ela quebrara de encontro à parede do quarto.

      - Mas, mãe, por que não disse logo ao pai, por que não contou desde o princípio que, afinal, nunca esse outro lhe tocou?

      - Para ele sofrer de ciúme! A vocês, homens, faz bem uma dor dessas. Vocês são fracos por falta de saber sofrer.

      Também eu sorri. Suspirei. No fundo, eu me libertava da obrigação de ser cúmplice de algo que, antes, me surgia como uma traição.

      - Eu pensava que a mãe estava repetindo a lenda de Ntoweni.

      - Contaram-lhe essa história?

      - Sim, foi o avô.

      - Disseram-lhe que o imperador possuiu a nossa primeira avó?

      - Sim, disseram.

      - Pois essa é a versão que os homens contam. Nós, mulheres, temos uma outra versão.

      - Outra versão?

      - Dou-lhe um conselho, filho. Nunca diga que uma mulher foi sua. Essas são coisas para nós. mulheres, dizermos. Só nós sabemos de quem somos. E nunca somos de ninguém.

      Ela ficou olhando-me com ar indefinível. Seu rosto me cumprimentava, ela tomava o gosto de ser mãe e me ver ali filhando, pronto a tomar conta dela. Voz amaciada, retomou a palavra:

      - A primeira vez que eu o vi, meu filho, você ainda não tinha nascido. Eu o vi numa gota de chuva.

      Sim, ela me vira numa gota que escorria pelo vidro, como se tivesse intenção de fazer parte da casa. Minha mãe colheu essa gota na ponta do dedo e, depois, a semeou entre as pestanas. Nessa altura ela prometera:

      - Na próxima tristeza hei de chorar-te a ti, meu filho...

      Eu não lhe saí do ventre. Mas da tristeza. Era por isso que aquela chuva, aquela chuva que não tombava, estava falando fundo em sua alma.

      - E diz o quê, mãe?

      - São segredos entre mulher e água.

      E ali ficamos falando, como nunca havíamos conversado.

      O que me dizia, em confissão: nunca ela me dedicara nem mimos nem doçuras. Procurava agora uma desculpa? Que se tinha contido nos afetos para se defender de sofrer. Tivera filhos, todos tinham partido. Eu nascera fora do tempo, já ela se cansara de ser mulher.

      - É o que lhe dizia, você me nasceu da tristeza. Da tristeza de ter perdido os outros, seus irmãos.

      - Mãe. agora já chega de falar em coisa triste. A senhora está ferida, venha que eu a ajudo a regressar.

      Levantou-se apoiada em mim, olhou o leito seco e sorriu.

      - Essa vida é cheia de graça, meu filho.

      Era ali naquela curva do leito que naufragavam as peças da roupa que ela deixava escapar na corrente. Agora, tantos anos passados, ela mesma tinha sido despejada naquele remanso como se fosse um pano largado das mãos de uma lavadeira.

      - Sabe por que eu soltava as roupas, meu filho?

      - Como posso saber?

      - Para descobrir com quem seu pai me traía.

      Era um velho procedimento para se revelar traição. A lavadeira devia soltar os panos na corrente. A roupa que não fluísse, flutuando na ondeação, essa roupa pertencia ao culpado ou à culpada.

      E houve roupa que não seguiu na corrente?

      Houve sim, meu filho. Essa roupa não se afundou na água. Se afundou em mim.

continua...

Fonte:
Mia Couto. A chuva pasmada. 2004.

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