sexta-feira, 19 de abril de 2019

Teixeira de Pascoaes (Livro D'Ouro da Poesia Portuguesa vol. 9) VI, final


A NOSSA DOR

Enquanto chora a Mãe desventurada,
Sobre o seu coração, de noite e dia,
Eu canto a minha dor; e a dor cantada
Como que intimamente se alumia...

Se me levanto cedo e a madrugada
Já vem dourando os longes de harmonia,
Sinto que estás ainda despertada
E eu ouço, em mim, cantar nova elegia.

Abre-te a dor os olhos sem piedade,
Durante as longas noites de amargura...
Mas para mim a dor é já saudade.

A dor, em mim, é canto que murmura;
A dor, em ti, é negra tempestade:
Sou a noitinha, e tu, a noite escura!

VIDA ETERNA


Nele adora somente o que não passa;
O que é imortal, perfeito, e no teu ser
É fonte de orações, de luz e graça.

Adora a sua Imagem a viver,
Numa perpetua infância florescendo,
Perpetuamente isenta de sofrer.

Dia a dia, nós vamos falecendo;
Esta vida carnal é um arremedo
Da Vida, á luz da qual eu não entendo

Nem morte ou aparência ou dor ou medo...
Teu Filho agora é luz, revelação;
E tu, ó Mãe, crepúsculo e segredo!

Adora, sim, teu próprio coração
Se desejas amar teu Filho. Reza
E não chores, que a luz duma oração

Mostra-te bem melhor sua beleza,
Seus verdes olhos de alma, a fronte e o rosto
Que as lágrimas sombrias de tristeza.

Seja alegria eterna o teu desgosto
Corpóreo, transitório! Seja aurora
De idílio o teu dramático sol posto!
A alma ajoelha e reza, mas não chora.

MEMÓRIA

Memória, Elísios Campos, Paraíso,
Espirituais Paisagens!
Vales de luz, outeiros de sorriso,
Onde vivem as místicas Imagens.

Jardim florido de Almas que o estertor
Da Morte libertou! Jardim povoado
De luminosas Sombras que em amor
E sonho iluminado,
 
Dando-se as mãos de luz e intimidade,
Vagueiam pelas verdes avenidas,
Ao luar misterioso da Saudade,
Evocando outros mundos, outras vidas...

Vejo, em grupos, os velhos conversando...
E murmuram palavras... voz de outono
Que se vai em silêncios desfolhando
Num ermo chão dourado, ao abandono.

Mais adiante, em doce companhia,
Caminha enamorada a gente nova:
O Herói caído, morto, à luz do dia,
A Noiva que baixou à fria cova!

E mais adiante ainda, em mais ruidosos
E alvoroçados grupos, as Crianças
Falam alto, têm gestos luminosos...
São bandos de esperanças,
 
Tão cedo à luz do mundo arrebatadas
E aos braços maternais!
E brincam a sorrir, inda molhadas
Das lágrimas eternas de seus Pais...

E com um ar de riso,
As beija o Sol do Além...
Nem se lembram das mães, no Paraíso;
São Almas, sim, e as Almas não têm Mãe!

Ao Sol espiritual que as faz corar
Durante os seus brinquedos,
Somente Deus as pode contemplar
Do seu trono de trevas e segredos.

Deus contempla as Crianças que roubou
Ao fundo amor materno... E bem se vê
Nos seus olhos a nuvem que os toldou...
E a si mesmo pergunta: Para quê?

E à luz do eterno dia,
Os Fantasmas divinos das Crianças
Fazem os seus bailados de alegria,
Elas que são tristíssimas Lembranças!

E a nova formosura que elas têm!
O novo e estranho encanto!
Assim tocadas já do sol do Além,
Até aos pés vestidas do meu Canto!

Memória, Jardim de Almas todo em flor
Que as canções e os perfumes enevoam,
Se para mim és dor, és luz e amor,
Para os seres amados que o povoam!

E eis tudo quanto resta à Criatura:
Saber que o seu tormento
É perfeita alegria, alta ventura,
Em outro Firmamento!

Quando os meus olhos íntimos, em sonho,
Esse mundo ideal conseguem ver,
Fico tão deslumbrado que suponho
Haver morrido já sem o saber!

E eis que sou na Paisagem da Memória!
Lembrança de mim mesmo, eu já penetro
Na cidade fantástica e ilusória...
Já sou Aparição, Visão, Espectro!

Que é da minha Presença? Não me vejo!
Ah, não me encontro em mim! Sou a Oração
Redimida, sem Deus e sem desejo;
Amor sem coração!

Sonho liberto, ascendo no Infinito.
A própria Altura é já profundidade!
Onde estás? onde estás? ó corpo aflito!
Meu ser perdeu-se em alma: ei-lo saudade!

Fonte:
Teixeira de Pascoaes. Elegias. 1912

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