A chuva caia fina e persistente, era uma tarde de sábado em plena primavera; o clima era agradável; e pela vidraça da janela avistava-se o campo verdejante. O Jardim que ficava na frente e em uma das laterais da casa, estava lindamente florido, multicolorido e esbanjando um aroma gostoso, que estimulava aspirá-lo profundamente, num suspiro suave, prolongado e repetido. Naquele momento, não se avistava os colibris, presença continuada nos dias claros e ensolarados, pairando sobre as rosas, dálias, crisântemos, girassóis, margaridas e tulipas, nem as borboletas, sempre numerosas, uma das criaturas voadoras mais belas, que vinham colorir ainda mais a paisagem; mesmo assim o panorama era espetacular; as folhagens encharcadas pela chuva branda, levemente soprada pelo vento, faziam jorrar as águas acumuladas, como se fossem lágrimas de felicidade. No interior da residência, o casal, ainda moço, que havia contraído núpcias um pouco além da adolescência, conversava e assistia alegremente seus quatro filhos e filhas, três lindas meninas e o primogênito, que brincavam; dedicando, no entanto, atenção especial para a caçulinha, que bailava enquanto seus irmãos entoavam cantigas infantis, o que fazia desde os seus primeiríssimos passos. Tudo parecia perfeito naquele lar, que fora constituído sob as inspirações do amor. Durante os mais diversos assuntos que o casal tratava, especulava-se sobre o futuro das crianças. – Dizia a D. Marta: - Vou cuidar para que minhas filhas sejam bastante prendadas; elas vão saber pintar, bordar, marcar, costurar e cozinhar... Enquanto o Senhor Herculano profetizava... -nosso filho, Hermínio vai pra cidade estudar, vai ser veterinário, para cuidar do gado e continuar os serviços da propriedade.
Assim começou esta história, contada pelo Senhor Arivaldo e D. Rutinha, casal que morava numa propriedade vizinha, amicíssimos da família e que nesse dia ao passar pelas proximidades da residência dos sitiantes, resolveu dar uma chegada, para se abrigar das chuvas, que nessa hora era mais intensa.
O Senhor Herculano, homem de respeito e querido na região, a despeito de ser o mais novo proprietário, entre os outros, era reconhecido como trabalhador, honesto, cumpridor de seus deveres e muito prestativo; gostava de reunir com os amigos para prosear, falar das suas experiências na lavoura, com o gado e falar do sonho que alimentava de ver o filho, formado, prestando assistência aos criadores da região e dedicando-se a terra.
Enquanto isso, o menino, que estava para completar onze anos de idade, acordava todos os dias, bem cedinho, e caminhava até a escola rural que ficava aproximadamente uns três quilômetros de distância de onde morava; na volta dos estudos, ainda ajudava o pai a complementar a ração dos animais e recolhe-los ao curral. Como todo menino, gostava de montaria e nos fins de semana juntar-se a garotada para jogar futebol.
O tempo passava, e com muito trabalho, dedicação e perseverança, os planos do Senhor Herculano pareciam ser mais ambiciosos; e toda família se reunia nas atividades diárias de plantação, colheita, tratamento dos animais. D. Marta ensinava às filhas, as prendas domésticas; Rosália, a filha mais velha já costurava e bordava com muita habilidade, além de usar muito bem a arte de pintar; Isolda, sua outra filha, também muito dedicada, já executava lindos pontos de marca e preparava temperos excepcionais; com exceção da mais jovem, a Ana, que bailava o tempo todo, desde muito pequena, bastava ouvir uma música, o cantarolar da mãe, dos irmãos, ou dela mesma, entoando sons para movimentar os braços, os passos e executar os rodopios; até mesmo quando escutava a passarinhada gorjeando e no silêncio de suas caminhadas a caminho da escola, ou outro qualquer, por onde passava. Apesar da influência da mãe e das irmãs, não conseguia aprender, nem mesmo, prender um botão ou costurar uma bainha. Isso incomodava demais os seus pais, que preocupados, não entendiam a fascinação pela dança e conter o desejo incontrolável de bailar da bela filha, que no passar dos dias, crescia mais formosa, mais encantadora, cuja beleza chamava a atenção de todos que a avistava.
No teatrinho improvisado da escola, lá estava a Ana sendo aplaudida pela plateia entusiasmada; da mesma forma, nas festinhas de aniversários, quando era convidada para exercer a sua arte. Os seus passos pareciam leves como a pluma, seu equilíbrio era perfeito, seus movimentos tinham graça e precisão; as poses e passos eram primorosamente combinados; e a admiração maior, de todos que a conhecia, era saber que ela nunca esteve numa escola de Balé e, no entanto executava com perfeição o cambre, batterie, battement, glissê, deboulés, fouetté e tantos outros passos do balé clássico.
Toda essa sua paixão pela arte de dançar e a beleza com que fazia, foi se tornando cada vez mais conhecida, e essa informação ia chegando aos teatros, às companhias e as escolas de danças.
A curiosidade a respeito, e o desejo de conhecer tão magnífica dançarina, foram crescendo, despertando o interesse dos coreógrafos, de importantes e consagrados diretores de teatros da época. Ao mesmo tempo, que crescia a fama, também crescia a inveja, o despeito, a ciumeira de outras jovens e a intolerância de algumas dançarinas que não conseguiam por mais que esforçasse, se apresentar com o mesmo encanto e perfeição; e chacoteavam dizendo: Como pode uma bailarina da roça, que nunca frequentou uma academia de dança, ter a petulância, a audácia de se denominar bailarina.
Ana, a majestosa dançarina, não se importava com esses comentários desairosos. O seu sonho de dançar era cada vez mais fluente; o importante era bailar, flutuar pelos palcos, passear entre os cenários, flores, luzes e encantar as plateias. O seu gosto de menina, foi se transformando em aspiração; enquanto as apresentações imaginadas não aconteciam, continuava bailando pela casa, pelo jardim, fazendo com as borboletas, que sobrevoavam as plantas, coreografias ritmadas por numerosos pássaros, que pareciam conhecer os seus anseios, daí formando uma orquestra canora de sonoridade esplendorosa, verdadeiramente indescritível. Nesses momentos, a natureza postava-se para apreciar o espetáculo; às arvores, os animais ficavam completamente silentes e os ventos brandeavam; as águas de um pequeno córrego que ficava nos arredores, magicamente se continham.
O mistério de Ana, assim passou a ser murmurado o fato de tão encantadora jovem, que nasceu e residia em área rural, afastada da cidade, e que tinha gestos suaves, singelos, gentis, além de inexplicavelmente dominar a arte de dançar de maneira perfeita e de exuberante beleza.
Um belo dia, ensolarado, ainda pela manhã, Ana seguida por uma nuvem de pássaros que sobrevoavam em sua volta, bailava por um dos caminhos, da propriedade onde morava, o que não era novidade, pois muitas vezes assim procedeu, adentrou a uma pequena floresta onde costumeiramente dançava contemplando a natureza.
Como demorava muito para retornar a casa, nunca havia se afastado por tanto tempo, a sua mãe, já aflita, pediu ao filho que estava chegando para que fosse procurar a irmã, e este ao ouvir o relato do que estava ocorrendo, imediatamente retomou a montaria e saiu a sua busca; porém foi inútil, não a encontrou em nenhuma parte, assobiou, gritou e não recebeu resposta.
Como o sol já se escondia no horizonte, e o filho também não retornava, a D. Marta, desesperada, acompanhada de suas outras filhas, saiu pela redondeza pedindo ajuda para que os procurassem e os encontrassem, pois temia que algo muito grave pudesse ter acontecido.
O Seu Herculano, que tinha ido à cidade próxima, tratar de interesses da família, chegando a casa, já anoitecendo, e não encontrando ninguém, ficou com o pressentimento de que algo muito estranho estava acontecendo; o jantar não estava pronto, o fogão apagado, os bordados que suas filhas estavam fazendo encontravam-se desarrumados na mesa da sala, o que não era comum; acendeu o lampião, pois a casa estava totalmente às escuras e diante da demora da mulher e dos filhos, também retomou a montaria, que ainda não havia retirado os arreios, e levando em uma das mãos um lampião aceso, a noite já estava bem escura, saiu a procura dos seus, quando em uma das propriedades vizinhas, uma senhora que permaneceu em casa, relatou o que estava ocorrendo e que todos saíram a procura da jovem desaparecida.
Abatido pela preocupante notícia, Seu Herculano partiu rapidamente para se juntar aos demais, e depois de muito caminhar, encontrou a D. Marta, as duas filhas mais velhas, todos os seus vizinhos, empregados das propriedades próximas, que com fachos de luz, lampiões vasculhavam todos os lugares sem encontrar a ditosa moça. Cansados, pelas horas de incessante procura, ninguém admitia desistir de dar continuidade as buscas, estavam determinados, mesmo sabendo que teriam de enfrentar a escuridão e outros riscos por ela proporcionados.
Ainda sem saber explicar o que aconteceu, pois de nada recordava, Hermínio, que foi encontrado caído, sem sentidos, ao lado de sua montaria, que permanecia ali, parada,como se estivesse protegendo a sua integridade, era um dos mais abatidos, pois passou quase todo o dia, sem água e se alimentar, a procura da talentosa irmã. Com as forças abaladas, também insistia para que as buscas não fossem interrompidas.
Varou-se a noite, o dia já estava clareando, os primeiros raios de sol chegavam, ainda que timidamente, e não se tinha o menor vestígio da bailarina.
Cada espaço, cada parte da propriedade foi minuciosamente averiguado, sem sucesso. O que teria ocorrido? Como alguém poderia desaparecer assim, tão estranhamente, sem vestígios, sem uma razão aparente? Não havia estranhos, que se tinha conhecimento, o lugar era pacato, todos se conheciam e eram amigos e jamais ouve um caso de desaparecimento naquele local, que se tivesse notícia.
O ocorrido passou a ser de conhecimento de toda a região, auxílios foram solicitados, mais pessoas se integraram aos grupos de buscas que foram formados.
Continuava o mistério!... Nenhuma informação que pudesse ajudar, e cada hora que passava, maior era o desespero dos familiares. Onde a Ana poderia estar? Perdida... Não seria o caso, pois conhecia bem todo o local!... E se tivesse ferida, não pudesse caminhar, ou se algo pior aconteceu? Aumentava o drama! O medo de não encontrá-la salva, com vida afetava o coração de todos, principalmente dos seus pais.
D. Marta, que muito havia chorado, sob os cuidados de algumas amigas, ainda em lágrimas, dizia: Meu Deus, onde está a minha filhinha, tão bonita, tão feliz?
Depois de longa busca por toda a região, sem nenhum sinal da filha tão querida, Seu Herculano resolveu derrubar toda a mata que tinha na propriedade; acreditava ser aquela a última medida a ser tomada para encontrar a jovem Ana.
Tomou todas as providências, contratou pessoal, fez mutirões e a floresta, antes tão preservada, foi definitivamente cortada, não restou uma árvore de pé.
Nem deste jeito foi encontrada a bailarina ou qualquer vestígio seu!
No local da bela floresta, ficou um descampado, que por longo tempo não brotava um mato qualquer.
Da Ana, só restava a saudade, a lembrança da linda jovem, alegre, sorridente e que vivia dançando.
Seu Herculano pensava em vender a propriedade e ir para bem longe dali, pois, para cada direção que olhava, vinha na memória, a imagem da Ana, dançando, sorridente e feliz... Com o que discordava D. Marta, mesmo tendo passado tanto tempo, continuava com a esperança, que sua filha, a caçulinha Ana, iria voltar.
Anos depois, no descampado, onde existia vistosa floresta, brotou uma única árvore, que foi crescendo, tomando forma, ficando a cada dia mais bonita... Ali, estava a bailarina, de braços suspensos num passo mavioso do balé clássico.
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