ANISTIA
Tantos lustros depois de tantos feios
eventos, volto a perlustrar as francas
paisagens a que afiz os meus passeios
num tempo sem arbítrios e sem trancas,
mas de várzeas macias que nem ancas
e outeiros caroáveis que nem seios
e oásis penteando areias brancas
e olhos d'água a servir cântaros cheios.
Limpos de culpa, os céus não choram mais
e é música de arcanjos que se faz
a cada novo som de pé na estrada:
revivo itinerários da lembrança
— como aos braços da mãe torna a criança
e o homem torna aos da mulher amada.
ANUNCIAÇÃO
De pássaros cadentes como estrelas
a amplidão de repente se povoa
e cada qual é uma notícia boa
da madrugada que vem vindo pelas
quebradas cordilheiras de uma espera
tanto procrastinada quão doída
entre pedaços de espelhos da vida
onde já a hora clara reverbera;
e são asas mais asas convidando
a crer nelas e a ir com elas quando
ruflam assim tão rente ao nosso rosto,
e ponto algum é perto ou longe, e há só
por horizonte uma nuvem de pó
que o sol espana ao retomar seu posto.
ENQUANTO O ESTRÔNCIO CAI
Estranho é estarmos todos sossegados
— o mineral, a planta, o bicho, o homem:
brincam boatos no ar, mas logo somem
sem mutação nos fatos — só nos fados.
Diz que no empíreo os numes aterrados,
sem atinar qual providência tomem,
em sobre-humana angústia se consomem
rolando o azar em seu copo de dados.
Enquanto isso, espantosos cogumelos
giganteiam nas nuvens e tão belos
que homem nem deus nenhum pensa impedi-los;
só na chuva é que vêm frias do alto
as cinzas do hidrogênio e do cobalto
sobre nós tão alheios e tranquilos.
ESPERA
De infinitas esperas confinadas
em angras de iminência, torço os fios
e vou tecendo para o meu navio
bujarronas de auroras almejadas,
contando o tempo de vê-las içadas
aos mastaréus de proa mais esguios,
ao vento panejando o desafio
de quem soubera tudo por um nada
trocar, quando de nada fora a vez
e de palavra ancorada na voz,
para não ir com afoitezas vãs
— por mais brilhantes, mais fáceis talvez —
turvando as águas em coalhos de nós
contra a navegação dos amanhãs.
INVENTÁRIO
Esta epiderme há muitos muitos anos
me cobre: guarda algumas cicatrizes,
outras não lembra mais, e até mistura
uns carinhos da infância a outros de agora.
As unhas não direi que são as mesmas
com que o seio nutriz terei vincado:
são mais duras, mais feias e mais sujas
— pois nem sempre de amor e entrega foi
o chão em que plantei, colhi nem sempre.
Se os dentes não gastei, gastei meus olhos
entrevendo paisagens, vendo coisas,
cegando-me ante sésamos de sombra.
A alma apanhou demais e vai pejada,
mas vão leves as mãos cheias de nada.
SONETO FABRIL
Parques, sim, mas parques industriais:
neles é que passeia o nosso amor
em bairros pouco residenciais
onde ronrona a máquina a vapor.
Das chaminés das fábricas saem mais
nuvens (claras, escuras) de vapor
e de fumaça, com a cor das quais
o azul do céu muda-se noutra cor.
Pairando entre esse céu assim mudado
e a terra onde prossegue a mesma a vida
com seu esquema aceito mas errado
retém-se o nosso olhar em bagatelas
— que de pequenas coisas é tecida
a glória de viver e achá-las belas.
SONETO DE PEQUIM
Cidade com milênios de abandono
fixa o presente acima do passado,
o olhar oblíquo vagamente inchado
de quem teve mau sonho em vez de sono.
Houve reis, mandarins... Agora o dono
de tudo é todo o povo despertado
que o seu trabalho enfim tem compensado
como quem troca o inverno pelo outono.
Os velhos bairros curvam-se em contraste
junto aos quarteirões novos que o guindaste
vai empinando além do antigo muro.
Não há pressa de máquina ou de gente:
quem mais corre é talvez o mais paciente
a contar com o presente do futuro.
UTOPIA
Abro meus olhos vagamente e vaga
mais do que meu olhar meu pensamento
num mapa que se acende e que se apaga
nas dobras dos palimpsestos do vento
parado ou disparado desdobrando
em cavaletes de ar à minha frente
paisagens de não sei onde nem quando
entre a ilha que sou e o continente
de uma fraternidade que procuro
e que sinto esboçar-se em minha espera
de alguma espécie nova de futuro
com os homens irmãos e companheiros
além do pão repartindo a quimera
que os últimos põem junto dos primeiros.
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