domingo, 21 de abril de 2019

Luiz Poeta (Projétil Pedagógico)


O professor está assumindo sua primeira turma numa escola municipal. São alunos repetentes, de uma sexta série complicada, oriunda de áreas de risco. Ele é novo naquela unidade, mas já dá aula há bastante tempo e acredita que não terá nenhuma dificuldade em ministrar o seu trabalho e passar suas experiências para o seu corpo discente; procura ser simpático, brinca com sua clientela didático-pedagógica, elogia a beleza das meninas e a simpatia dos garotos. A algazarra é inevitável. Eles se divertem e até exageram nos gestos e movimentos buliçosos. O professor pede silêncio. Repete a solicitação com a energia da autoridade. Eles se aquietam gradativamente.

Alguns o olham desconfiados, outros parecem ignorá-lo, mas os sorrisos que recebe do restante da turma sinalizam para uma relação empática com o grupo. O mestre precisa conquistá-los. A primeira aula é decisiva. Inicia seu discurso e fala do mundo, da dificuldade de sobrevivência no planeta, da necessidade que as pessoas têm de se sentirem protegidas e da importância da união entre elas. - Eu sou como vocês - diz ele - posso rir, chorar, ficar feliz ou me entristecer com determinado fato... nossos uniformes não são necessariamente nossas identidades, porque temos capacidade de amar e de ser amados uns pelos outros...

Os alunos, a princípio arredios, parecem magnetizados. Sorriem, divertem-se, dão opiniões, sentem-se livres, à vontade para falarem de suas vidas, dos seus sentimentos, dos seus desejos. Contam histórias, mostram-se personagens importantes de cada uma delas, fazem um teatro espontâneo de suas próprias alegrias. O professor sente-se efetivamente um deles, é o mais feliz de todos eles, entende suas alegrias, senta-se alegremente no meio deles.

Num determinado momento, no clima da evidente euforia coletiva gerada pela aceitação mútua, ele vira-se para a turma e diz: - Eu adoro balas. Alguém aí tem uma para me dar?

Um aluno sentado numa das últimas carteiras, chama o professor, observado atentamente pelos colegas.

- O senhor gosta de balas?

- Adoro.

- Que tal esta aqui?

Trata-se de uma bala de escopeta (não deflagrada, intacta!). O professor está perplexo, visivelmente abatido. Pega o pesado projétil numa das mãos, hesita e percebe que toda a turma silencia. Somando-se ao primeiro, mais dois alunos levantam-se e se colocam ao lado do professor.

Sorridentes, insistem:

- E aí, mestre, gostou da bala?

A pausa é pesada e inevitável. Parece eterna, mas a resposta é intuitiva e inespontânea.

- Prefiro Halls.

A inércia é quebrada, todos riem, a turma se alvoroça. Nem o professor esperava sua própria reação. A custo, ele indaga, misturando solenidade com simpatia:

- Querido, posso continuar o meu trabalho?

- Claro, professor - o aluno senta-se desconfortavelmente.

A aula é reiniciada. A bala de escopeta está na mão do professor. O silêncio é tumular. Em sua boca, as palavras esgueiram-se. Tentando aparentar naturalidade, ele usa o quadro-de-giz e começa a ministrar o conteúdo.

A sirene toca, todos se retiram ruidosamente, cumprimentando o professor com gestos típicos de estudantes de uma comunidade carente:
- Aí, professor, o senhor é maneiro!

- Professor, até amanhã!

- Valeu, professor!

- Tchau, mestre, sangue-bom!

- ...Professor... e a minha bala?

- Ah, tinha me esquecido.

O professor olha fixamente para o aluno. Há no seu olhar um misto de desapontamento, tristeza e extrema afeição. No seu coração, a sensibilidade mescla a necessidade da manifestação do amor de um pai com a necessária atitude de um educador em exercício.

- Você já pensou na possibilidade de a diretora da escola pegar essa bala?
- Já.

- Se ela pega, o que acontece com você?

- Sou expulso da escola.

- Você acha isso legal?

O aluno abaixa a cabeça.

- Não.

O professor insiste. Em cada palavra, a sinceridade evoca a ideia permanente da confiança:

- Meu filho, esta vida tem dois lados: o seu e o do mundo. O seu é de sonhos, de realizações, de conquistas... o outro é o do poder, do medo, da hipocrisia, da covardia... Crie seu território, delimite-o; mostre o que você pode fazer de bom para sua própria sobrevivência e liberdade... Seja feliz, querido... Você é um vencedor! Você não precisa provar isto pra ninguém! Prove para você mesmo!

Pausa.

- ...o senhor vai me devolver ?

- Ah, sim, a bala. Vou. Toma.

- Valeu, professor, o senhor é sangue-bom.

O menino sorri e se retira, deixando no ar uma nervosa sensação de impotência e medo. Há, entretanto, um silencioso pacto entre eles, marcado pela tímida iminência de uma lágrima e pelo poder de um sorriso que se dilui volátil, dentro dela.

Na semana seguinte, mais uma aula. O professor reinicia suas atividades, mas percebe uma inquietação diferente. Está absorto no seu trabalho, quando alguém o chama lá do fundo sala. É o mesmo aluno que lhe oferecera a bala de escopeta.

- Professor... Quer bala ?

Um calafrio percorre cada poro, mas a inicial estupefação cede gradativamente.

- Depende da bala.

A turma ri.

O professor sente-se seguro com a espontaneidade coletiva dos sorrisos.

- Vem aqui pegar. Pode confiar na gente.

O professor caminha na direção dos alunos. Os mesmos três que lhe ofereceram a bala de escopeta.

Eles entregam três sacos de balas ao professor. Hortelã, tamarindo, mel, coco... uma infinidade delas.

O coração se abre como um botão numa flor.

Todos aplaudem a cena.

As balas são distribuídas. A alegria é geral.

Os alunos cumprimentam o professor. Alguém escreve uma frase com letra bonita no quadro: "Nós amamos o senhor."

A lágrima agora é inevitável. Desliza sem pudor pelo rosto num riso sublime que mistura surpresa com euforia. Eles a percebem. Choram e riem com o professor.

Que aula!

O sinal toca. Todos se despedem e saem. O aluno da bala de escopeta fica.

- Gostou das balas, professor?

- Claro.

Pausa.

"...mas ficaria mais feliz se...

- Se eu jogasse aquela bala fora?

- É.

- Eu já me desfiz dela, professor.

- Por quê?

- Porque descobri que sou uma criança ainda, professor. Prefiro balas de hortelã.

(Texto premiado pela Academia Brasileira de Letras e pela Folha Dirigida do Rio de Janeiro - Publicado na Antologia "Por que poesia em tempos de indigência?")

Fonte:
Livro gentilmente enviado pelo autor:
Luiz Gilberto de Barros. Canção de Ninas Estátuas. Ilhéus/BA: Mondrongo, 2014.

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