O professor está assumindo sua primeira turma numa escola municipal. São alunos repetentes, de uma sexta série complicada, oriunda de áreas de risco. Ele é novo naquela unidade, mas já dá aula há bastante tempo e acredita que não terá nenhuma dificuldade em ministrar o seu trabalho e passar suas experiências para o seu corpo discente; procura ser simpático, brinca com sua clientela didático-pedagógica, elogia a beleza das meninas e a simpatia dos garotos. A algazarra é inevitável. Eles se divertem e até exageram nos gestos e movimentos buliçosos. O professor pede silêncio. Repete a solicitação com a energia da autoridade. Eles se aquietam gradativamente.
Alguns o olham desconfiados, outros parecem ignorá-lo, mas os sorrisos que recebe do restante da turma sinalizam para uma relação empática com o grupo. O mestre precisa conquistá-los. A primeira aula é decisiva. Inicia seu discurso e fala do mundo, da dificuldade de sobrevivência no planeta, da necessidade que as pessoas têm de se sentirem protegidas e da importância da união entre elas. - Eu sou como vocês - diz ele - posso rir, chorar, ficar feliz ou me entristecer com determinado fato... nossos uniformes não são necessariamente nossas identidades, porque temos capacidade de amar e de ser amados uns pelos outros...
Os alunos, a princípio arredios, parecem magnetizados. Sorriem, divertem-se, dão opiniões, sentem-se livres, à vontade para falarem de suas vidas, dos seus sentimentos, dos seus desejos. Contam histórias, mostram-se personagens importantes de cada uma delas, fazem um teatro espontâneo de suas próprias alegrias. O professor sente-se efetivamente um deles, é o mais feliz de todos eles, entende suas alegrias, senta-se alegremente no meio deles.
Num determinado momento, no clima da evidente euforia coletiva gerada pela aceitação mútua, ele vira-se para a turma e diz: - Eu adoro balas. Alguém aí tem uma para me dar?
Um aluno sentado numa das últimas carteiras, chama o professor, observado atentamente pelos colegas.
- O senhor gosta de balas?
- Adoro.
- Que tal esta aqui?
Trata-se de uma bala de escopeta (não deflagrada, intacta!). O professor está perplexo, visivelmente abatido. Pega o pesado projétil numa das mãos, hesita e percebe que toda a turma silencia. Somando-se ao primeiro, mais dois alunos levantam-se e se colocam ao lado do professor.
Sorridentes, insistem:
- E aí, mestre, gostou da bala?
A pausa é pesada e inevitável. Parece eterna, mas a resposta é intuitiva e inespontânea.
- Prefiro Halls.
A inércia é quebrada, todos riem, a turma se alvoroça. Nem o professor esperava sua própria reação. A custo, ele indaga, misturando solenidade com simpatia:
- Querido, posso continuar o meu trabalho?
- Claro, professor - o aluno senta-se desconfortavelmente.
A aula é reiniciada. A bala de escopeta está na mão do professor. O silêncio é tumular. Em sua boca, as palavras esgueiram-se. Tentando aparentar naturalidade, ele usa o quadro-de-giz e começa a ministrar o conteúdo.
A sirene toca, todos se retiram ruidosamente, cumprimentando o professor com gestos típicos de estudantes de uma comunidade carente:
- Aí, professor, o senhor é maneiro!
- Professor, até amanhã!
- Valeu, professor!
- Tchau, mestre, sangue-bom!
- ...Professor... e a minha bala?
- Ah, tinha me esquecido.
O professor olha fixamente para o aluno. Há no seu olhar um misto de desapontamento, tristeza e extrema afeição. No seu coração, a sensibilidade mescla a necessidade da manifestação do amor de um pai com a necessária atitude de um educador em exercício.
- Você já pensou na possibilidade de a diretora da escola pegar essa bala?
- Já.
- Se ela pega, o que acontece com você?
- Sou expulso da escola.
- Você acha isso legal?
O aluno abaixa a cabeça.
- Não.
O professor insiste. Em cada palavra, a sinceridade evoca a ideia permanente da confiança:
- Meu filho, esta vida tem dois lados: o seu e o do mundo. O seu é de sonhos, de realizações, de conquistas... o outro é o do poder, do medo, da hipocrisia, da covardia... Crie seu território, delimite-o; mostre o que você pode fazer de bom para sua própria sobrevivência e liberdade... Seja feliz, querido... Você é um vencedor! Você não precisa provar isto pra ninguém! Prove para você mesmo!
Pausa.
- ...o senhor vai me devolver ?
- Ah, sim, a bala. Vou. Toma.
- Valeu, professor, o senhor é sangue-bom.
O menino sorri e se retira, deixando no ar uma nervosa sensação de impotência e medo. Há, entretanto, um silencioso pacto entre eles, marcado pela tímida iminência de uma lágrima e pelo poder de um sorriso que se dilui volátil, dentro dela.
Na semana seguinte, mais uma aula. O professor reinicia suas atividades, mas percebe uma inquietação diferente. Está absorto no seu trabalho, quando alguém o chama lá do fundo sala. É o mesmo aluno que lhe oferecera a bala de escopeta.
- Professor... Quer bala ?
Um calafrio percorre cada poro, mas a inicial estupefação cede gradativamente.
- Depende da bala.
A turma ri.
O professor sente-se seguro com a espontaneidade coletiva dos sorrisos.
- Vem aqui pegar. Pode confiar na gente.
O professor caminha na direção dos alunos. Os mesmos três que lhe ofereceram a bala de escopeta.
Eles entregam três sacos de balas ao professor. Hortelã, tamarindo, mel, coco... uma infinidade delas.
O coração se abre como um botão numa flor.
Todos aplaudem a cena.
As balas são distribuídas. A alegria é geral.
Os alunos cumprimentam o professor. Alguém escreve uma frase com letra bonita no quadro: "Nós amamos o senhor."
A lágrima agora é inevitável. Desliza sem pudor pelo rosto num riso sublime que mistura surpresa com euforia. Eles a percebem. Choram e riem com o professor.
Que aula!
O sinal toca. Todos se despedem e saem. O aluno da bala de escopeta fica.
- Gostou das balas, professor?
- Claro.
Pausa.
"...mas ficaria mais feliz se...
- Se eu jogasse aquela bala fora?
- É.
- Eu já me desfiz dela, professor.
- Por quê?
- Porque descobri que sou uma criança ainda, professor. Prefiro balas de hortelã.
(Texto premiado pela Academia Brasileira de Letras e pela Folha Dirigida do Rio de Janeiro - Publicado na Antologia "Por que poesia em tempos de indigência?")
Fonte:
Livro gentilmente enviado pelo autor:
Luiz Gilberto de Barros. Canção de Ninas Estátuas. Ilhéus/BA: Mondrongo, 2014.
Luiz Gilberto de Barros. Canção de Ninas Estátuas. Ilhéus/BA: Mondrongo, 2014.
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