segunda-feira, 1 de abril de 2019

Vinícius de Moraes (O delírio do óbvio)


Conheci-a num coquetel no seu apartamento em Roma: uma mulherzinha intensa, minúscula, arredondada. Pensei imediatamente em dar-lhe um lugar de destaque na coleção de gnomos humanos de jardim, que venho selecionando há um ano e já vai bem adiantada. Devia andar pelos 45, mas 45 bem cuidados, a julgar pelo fundo da pele, pelo dorso das mãos e pelo colo almofadado, dando apenas a entender. Um colo arfante, naturalmente.

Olhou-me com olhos úmidos e sua boca rasgada abriu um sorriso à anúncio. O tom com que me falou foi de um recolhimento quase religioso :

- Ah, é o poeta

Fiquei com vontade de engrossar de saída e responder: "Não, é o cobrador da Light!", mas me contive. Ela suspirou fundo - coisa que, aliás, deveria fazer num crescendo assustador - e sem mudar de tom, mas endurecendo ligeiramente as pupilas, voltou-se para minha mulher :

- Que coisa divina ser a companheira de um poeta, a sua musa inspiradora! E que responsabilidade... Porque os poetas, em geral, são pródigos de amor: não é, poeta?

Quis reagir, mas inutilmente. Sorrimos aquele sorriso, e enquanto minha mulher fingia procurar qualquer coisa na bolsa, eu balbuciei um "É!" que merecia ser gravado, pois jamais ouvi nada tão alvar. Ela acertou o vestido nas ancas, num gesto muito característico das mulheres que ainda não desistiram de todo, e aproximando o rosto do meu, segredou-me conivente:

- Aposto que já fez sofrer muitos corações femininos...

Assumi, sem saber bem o que dizer, um ar modesto de "mais ou menos", e já meio baratinado pela ação irradiante de tanto óbvio, respondi sem tirar nem pôr o que aqui vai:

-Qual nada ... A senhora está exagerando... São seus bons olhos... Eu até não sou disso ...

Ela fixou-me ardentemente, numa expressão só-eu-sou-capaz-de-compreender- a-alma-dos-poetas e logo, desviando o olhar do meu para ir perdê-lo na distância, arrematou:

- Dizer que os cientistas estudaram tanto para enviar ao espaço os cosmonautas... E estas mãos (ela tomou-me uma com infinita delicadeza) num simples dedilhar de algumas cordas, nos transportam logo ao céu!

Fiquei com vontade de protestar, de dizer-lhe que estava havendo um erro de pessoa, que ela queria provavelmente se referir a Baden ou Bonfá; mas ela num súbito arroubo que conseguiu elevar-lhe a estatura de dois centímetros, dirigiu-se a minha mulher não sem uma ameaça velada na voz:

- Você sabe a responsabilidade que tem, menina? ser a companheira de um poeta, de um compositor? Você sabe que ele não se pertence, é um patrimônio de todos nós? Você sabe o que é ser musa de um poeta?

Minha mulher, que é muito mais Manuel Bandeira, e tal já me fez ver, chegou a olhar-me com uma certa surpresa enquanto eu, no auge da covardia, procurava abrandar a sagrada cólera da Begum do Lugar-Comum, como a passamos a chamar depois:

- Ela é boazinha, ouviu...

E sem saber mais o que fazer, ofereci-lhe um cigarro, que ela declinou com seca compunção:

- O poeta vai me perdoar, mas uma mulher (e fuzilou a minha com os olhos) deve ter na boca um gosto de amor e não de fumo...

- Falou pouco, mas bem...

Era a rendição. Ela sorriu deliciada:

- Ah! poeta... As mulheres como eu só falam a linguagem do coração...

Na despedida tomou-me familiarmente o braço até a porta, sem dar a menor importância à "minha musa".

- Agora que já sabe o caminho, volte sempre. O ninho é pequeno mas o afeto é grande. Eu serei sempre... toda ouvidos...

A porta fechada, descendo as escadas para a rua, eu me surpreendi com horror dizendo à minha "companheira`.

- Que tal se fôssemos ao Alfredo, comer um fettuccini al triplo burro?

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