sábado, 27 de abril de 2019

Luiz Poeta (Sara Samira)


Vinha o trem. Serpente riscando longe.

Sol de meio - dia, cheio na face rosada, olho de vidro, trôpego reflexo, tremeluzente, suor descendo bolha-bolha, desenhando estrias, córrego de angústias,

E apitava. Fumaça clara varando o verde.

Via-se a cachoeira, faca de ponta prateada furando o chão, quedando lá embaixo, estrondo constante acordando o tempo.

Mochila parda, bota barrenta com laço solto, chapéu de couro, larga calça cáqui  amarrotada e a peixeira arranhando a coxa.

Vinda de trem, festa de chegantes, mas ele partia, Sara Samira no peito e na cabeça... batendo morena no átimo de cada impulso.

Sara Samira... um gosto suspirar seu nome.

Vira-a a primeira vez descendo caminho da lagoinha, o cesto de vime na cabeça, repleto de frutas , tangerina amarela, da doce. Sara Samira... o peito saltando da blusa, cabelo liso-preto voando no vento - sombra-de-mangueira, olhos negro-perolados, líquidos, limpos como uma noite de lua, nus, magoados
de não-sei-quê.

E o trem chegou, gente saiu-entrou-rindo-chorando-chorando-rindo.

Olhou atrás, mas já não via o verde emoldurando a choupana; não ouvia o monocórdico pio da juriti tamborilando abandonos... não tinha certeza da partida, mas se foi num pulo, como um sim que nega mas consente, a lágrima tímida olhando no canto da vista vermelho-azul.

Sara Samira... doce como a tangerina.

- Quer uma?

O riso respondeu no lugar da palavra.

Depois, a sombra, o arrulho das águas nas pedras... e o corpo moreno e liso de Sara Samira.

O pai não queria.

Jurou matar.

Adaga saudita, maldita, que por fim varou-lhe o coração.

- Foi ele, Samira, caiu, se feriu... morreu...sem querer...

Mas ela emudeceu, volveu o olhar, chorou sem soluços e sumiu... no salto da cachoeira.

- Sara ! Samira ! Sara...Samira... Sa,..

O trem se ia leve e sonâmbulo já meia-noite. Mas para onde?

Lá embaixo o vale, as casas, o rio, o precipício e o trem cruzando... - Sara Samira, não tive culpa... a adaga, o corte, o sangue... Saltou do alto do rochedo, sumiu na espuma.

Lá embaixo o vale, as casas, o rio... talvez tangerinas.

O trem sumiu na sinuosidade de mais um destino sem perspectiva.

Na próxima parada, menos um passageiro.

Ninguém viu o corpo tombar lá de cima, trezentos metros no abismo... talvez tangerinas... Sara Samira.

Fonte:
Livro gentilmente enviado pelo autor:
Luiz Gilberto de Barros. Canção de Ninas Estátuas. Ilhéus/BA: Mondrongo, 2014.

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