Um cacho de gente pendura-se ao meu lado, do estribo do bonde descendo a Presidente Vargas em demanda da Central. Na ponta do cacho, como uma banana não prevista, um mulatinho segura-se ao bonde por apenas dois dedos de cada mão. Numa hora lá, ouço-o dizer:
- Puxa, que cãibra!
Olho a penca humana do meu lugar à ponta do banco. Tenho à minha esquerda um velho que cochila, com toda a pinta de funcionário da Central, os punhos puídos e a gravata desfiando no nó. À minha frente há uma mulata gorda, de pé, ou melhor, no seu impressionante posterior, Vejo, nas caras à minha volta, sinais de imemorial fadiga e paciência, Dir-se-ia que estamos na Índia. A cor de todo mundo é a da desnutrição e da desesperança. Há poucos rostos escanhoados. Muitos olhos trazem sinais de conjuntivite crônica e paira um ar geral de avitaminose dentro do elétrico a transportar lentamente a sua carga humana para a cidade. O sol bate a pino no cacho pendente, como a querer amadurá-lo à força, e rapidamente. Lá de fora chega-me novamente a voz, meio aflita:
- 'Tou com uma cãibra!
Mas ninguém dá atenção. O bonde prossegue um pouco mais, eu de olho no mulatinho de cara contraída, os braços elásticos a abraçar de fora a penca de homens de cerrada catadura. "Ele vai cair..." penso comigo. Mas logo depois acho que não, que ele aguenta mais um pouquinho, porque já por estas alturas estamos atingindo a antiga praça Onze, onde há um ponto de parada. Mas a voz chega novamente, aflitíssima, enquanto eu vejo os dedos do mulatinho com as pontas brancas de esforço, agarrados como garras ao balaústre:
- Não aguento mais essa cãibra!
A queda veio em seguida, mas o "roxinho" era muito safo. Apesar de cair de costas, ele aproveitou o movimento, girou numa espetacular pantana e pôs-e de pé. Foi evidentemente sorte sua o bonde estar a fraca velocidade.
Vi-o ainda sacudindo o braço da cãibra que o tomara, sem qualquer sinal aparente de ferimento ou choque. O seu substituto no cacho ficou olhando, o corpo estirado para fora do bonde, e comentou meio para si mesmo:
- O homem devia 'tar com uma cãibra...
Fonte:
Vinicius de Moraes. Para uma menina com uma flor. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1966.
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