segunda-feira, 15 de abril de 2019

Mia Couto (A Chuva Pasmada) Uma Estranha de Unhas Rubras - Segredos, Silêncios


UMA ESTRANHA DE UNHAS RUBRAS

      Na manhã seguinte, despertei ao comando ríspido de minha mãe.

      Vista-se, rápido!

      No braço estendido exibia a roupa de cerimônia. Na outra mão, pingavam os meus únicos sapatos:

      - Calçar os dois, mãe?

      - Calce-se, completo.

      Até ali eu apenas podia calçar um sapato de cada vez. Assim, imparmente, poupava nos calçados. Por isso, naquele dia, eu até coxeei, desabituado que estava de marchar com dupla sola.

      Entramos na rua como se mergulhássemos num lago. A chuva mantinha-se suspensa, em arranjos de gotas verticais. Andar e nadar, nesse momento entendi, diferem só pelo lugar de duas letrinhas. Por causa dessas duas letrinhas chegamos à porta da fábrica todos encharcados. Minha mãe, no entanto, se prevenira. E do saco de mão saiu uma toalha com que nos secamos. Mandaram-nos sentar num banco das traseiras.

      Ficamos horas em silêncio, à espera que um chefe nos mandasse entrar. Lá veio um, da nossa raça. Era um homem forte, polido e maneiroso. Um casca fina. Falava um português com mais ondas que curvaturas. Enrolava os erres às cambalhotas com a língua. Não era um sotaque. Era um modo de mostrar que não falava português como nós. Sua atenção se afunilou em minha mãe, parecia um pelicano fixando o peixe. Aqueles olhos babões me davam aflição.

      - Venho por causa dos fumos - disse a mãe.

      O homem torceu o cigarro entre os dedos e derramou o tabaco desfeito sobre o cinzeiro.

      Depois, tossiu e falou como se engolisse cada uma das palavras:

      - Só o patrão grande pode falar sobre esses assuntos... Vou ver se ele lhe pode receber. Mas esse miúdo vai ter que sair.

      - Mãe, eu queria ficar consigo...

      - Pode ir, meu filho, não se preocupe. Pode ir. Mas cuide de não desperdiçar os sapatos.

      Os sapatos foram poupados, sim. Mas muita areia entrou-me para a alma nesses momentos de espera. Acabrunhava no banco do pátio quando vi pingarem vidrinhos sobre a areia. Sobressaltei-me: era a chuva que se resolvera a tombar? Mas, não. Eram berlindes. Um menino branco, à minha frente, atirava berlindes para o chão onde meus pés se afundavam. Entendi o convite, me ergui e apanhei as esferas de vidro uma por uma. Fiz uma cova, e outra e mais outra. Completas estavam as três covinhas.

      - Não quer jogar, menino?

      - Não posso.

      - Porquê?

      - O meu pai não deixa. Não me deixa brincar com.., com vocês.

      Eu já sabia. Só não disse a palavra: pretos. Nós éramos simplesmente “vocês”. Juntei os berlindes numa mão e entreguei-lhos.

      - Brinque o menino sozinho. Eu fico só assistir.

      - Não posso. A minha mãe não me deixa brincar no chão Essa terra de África dá doenças.

      Devolveu-me os berlindes. Assentei as mãos na areia e lancei-os à cova. Reparei como os olhos do branquito brilhavam. Me cheguei a ele e soprei em seu ouvido:

      - Ora, seu pai, sua mãe... eles estão aqui para ver?

      O miúdo apontou a fachada da fábrica. Pela janela, o seu pai espreitava, desconfiado. Por essa mesma janela me pareceu ver o vulto de minha mãe. Depois, a cortina se fechou.

      - Aproveite agora que ninguém nos vê!

      O menino ainda hesitou. Mas, depois, o seu joelho ganhou a terra e iniciamos um jogo. E logo o mundo se resumiu àquelas covinhas mais o bater do vidro contra o vidro.

      Não tardou, porém, que a sombra de minha mãe se projetasse no átrio. Olhei de encontro ao sol e o seu corpo surgia aumentado, capaz de converter o dia em noite. Mas era só a raiva que lhe conferia tais dimensões.

      - Já se pode descalçar', poupa os sapatinhos na volta...

      Passou uma mão a ajeitar o lenço, acertou a roda da saia na cintura e, autoritária, me arrastou pelo braço, como se apressasse um peso morto.

      - Diga-me, mãe, aquele senhor escutou as nossas razões?

      Ela nada respondeu. Apenas as suas unhas se espetaram na minha carne. Estranhei o afiado daquela dor. Uma mãe não tem unha. É só feita de doçura. Mas eis que a minha me arranhava, cinco fúrias se cravavam no meu braço. Reparei, ademais, que as ditas unhas estavam pintadas. Um vermelho triste, como um sangue já pisado.

      À entrada de casa, a mãe se agachou até se atamanhar comigo e, sacudindo-me pelo braço, sentenciou:

      - Nunca, mas nunca, fale disto a seu pai!

      Pendida sobre mim, voz contaminada, olhar incendiado: minha mãe se desusava. Uma estranha ocupava a sua alma. Uma estranha de unhas vermelhas.

SEGREDOS, SILÊNCIOS


      De noite, quando nos juntamos na sala, o avô voltou à carga:

      - EU vi!

      - Viu o quê, desta vez?

      - Pois eu vi o compadre Mauriciano subir de barco para apanhar fruta.

      Naquela espasmaceira, já não havia alma para riso. Suspiros se juntaram, incrédulos. Só eu, no imediato instante, olhei pela janela e vi barcos percorrendo os ares, ancorando nos ramos altos. A água deitando-se no céu: um azul vertendo em outro azul.

      Jantamos sob a nuvem do silêncio. Me custava engolir, a lembrança da visita à fábrica me ocupava o peito. Não era o segredo que pesava, mas o partilhá-lo com minha mãe. Segredo é coisa que os homens comungam apenas com outros homens. Para ser fiel à minha mãe eu estava traindo a minha masculina condição.

      De soslaio, olhei o corpo magro de nossa mãe. Ela estava tensa, parecia que se guardava para explodir. Meu pai espreitava a sua tensão como a impala olha a flecha no arco do caçador. Talvez por isso tenha tomado a dianteira:

      - E você, mulher, onde foi esta manhã, tão cedo?

      - Fui visitar minha comadre, lá no Tsilequene. Lá há mais chuvisco que aqui.

      - E, não cai em lugar nenhum.

      As mulheres se ergueram para levantar a mesa. Das mãos de minha mãe os pratos escorregaram e deflagraram em mil estilhaços. Ficamos nós, os homens, em resguardo, à espera do que se seguiria. Não tinha sido um simples quebrar da louça. Havia algo mais profundo que estilhaçava no nosso lar. Foi quando, mãos nas ancas, a mãe veio à sala pedir contas:

      - Isso, deixem amolecer esses vossos cus na porcaria das cadeiras...

      Um riscar de dedos fez acender a chama no isqueiro. Meu velho entretinha suas pequenas fúrias. De rompante, minha mãe avançou sobre o marido e lhe arrancou o isqueiro. Deu dois passos e lançou o objeto pela janela.

      - Estou farta!

      E saiu, batendo a porta. Ainda a vi adentrar-se na chuva até perder contorno. Nem passou um tempo, meu pai também se ergueu e se encaminhou para a porta. A tia barrou-lhe o caminho:

      - Onde vai, cunhado, vai ter com a minha irmã?

      - Vou procurar o isqueiro.

      - Mas você, cunhado, por que é que recusa falar com alguém lá da fábrica?

      - Eu sei com quem vou falar.

      - Com quem?

      - Com o rio. Vou falar é com o rio.

      Sem mais explicar, meu pai saiu. Furtivo como uma sombra, fui seguindo seus passos. Quantas vezes fizéramos aquele caminho, encosta abaixo? Desta vez, porém, era diferente. Meu pai, primeiro, rodopiou a esgravatar entre os capins. Procurava o isqueiro. Em vão. Depois, como nada encontrasse desceu a ladeira. Não parou nos lugares costumeiros. Antes cruzou as penedias, para além do bosque, onde era interdito as crianças sequer espreitarem. Era ali, na mata sagrada, que haviam sepultado os nossos antigos.

      Escondido entre os arbustos, vi como ele se ajoelhou junto à margem, mãos mergulhadas na argila enquanto invocava um rosário de palavras. Meu pai rezava?

      Acreditei que ele não me tinha visto. Enganei-me. Falou, asperamente, sem erguer a cabeça:

      - Você não pode estar aqui...

      - Eu já vou indo, senhor meu pai.

      - Não, espere. Venha aqui.

      - POSSO?

      - Se aproxime com os respeitos. Agora, ajoelhe comigo.

      Meus joelhos pareciam, de súbito, desapertados: tombaram na areia branca do leito. Já só restava um fio de água. Os bancos de areia se exibiam como costelas no corpo da terra. Ninguém diria como o rio já fora reboliço, rolando as ancas pelas margens.

      Meu pai me pediu devoção. Eu fechei os olhos, com demasiado medo para ter crença. Até que senti como que um pulsar debaixo de minhas pernas. Um coração batia por baixo do chão? Me assustei:

      - Que ruído é esse, meu pai?

      - É um pilão.

      - Um pilão por baixo da terra?

      - São os deuses. Eles estão descascando o tempo para nos servir...

      Estremeci, em arrepio. E se a terra desmoronasse, escavada como um oco no vazio? Se em vez da chuva, o que tombasse fossem as casas, a estrada, os bichos e as gentes? Eu já via mil mineiros, como meu pai, esburacando o planeta, criando descomunal vala comum para as criaturas de todos os continentes. Era esse, afinal, o pesadelo de criança que me fazia despertar e gritar por minha mãe: o desabar do mundo e meu pai preso nos subterrâneos.

      O reviver desse pesadelo me fez estremecer. Pela primeira vez, estendi o braço a meu velho, em pedido amparo. Ele demorou a dar-me a mão e, quando o fez, parecia estar segurando um peixe vivo. Foi um fugaz instante. Logo ele se corrigiu e fechou o gesto no corpo.

      - Sabe quem está enterrado aqui?

      - Não sei, pai.

      - São as Ntowenis.

      O caracol fez a casca e ficou tonto. E é por isso que nunca sai de casa. Também eu me sentei, incapaz de sair da interior neblina. Meu pai dissera “as Ntowenis”, no plural. Afinal, quantas havia?

      - A avó de sua avó também se chamava Ntoweni. As duas estão enterradas aqui. uma juntinho da outra.

      Dizem que elas, de noite, saem juntas. Sopram as cortinas, levantam as nossas pálpebras e nos insuflam os sonhos, É então que, por breves instantes, se vislumbram duas luas cruzando os céus.

continua...

Fonte:
Mia Couto. A chuva pasmada. 2004.

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