UM GOTEJAR SEM CHUVA
Esse dia, meu pai apareceu em casa todo molhado. Estaria chovendo? Não, que o nosso telhado de zinco nos teria avisado. A chuva, mesmo miudinha, soaria como agulhinhas esburacando o silêncio.
- Caiu no rio, marido?
- Não, molhei-me foi por causa dessa chuva.
- Chuva?
Espreitamos na janela: era uma chuvinha suspensa, flutuando entre céu e terra. Leve, pasmada, aérea. Meus pais chamaram àquilo um “chuvilho”. E riram-se, divertidos com a palavra. Até que o braço do avô se ergueu:
- Não riam alto, que a chuva está é dormindo...
Durante todo dia, o chuvilho se manteve como um cacimbo sonolento e espesso. As gotas não se despencavam, não soprava nem a mais pequena brisa. A vizinhança trocou visitas, os homens fecharam conversa nos pátios, as mulheres se enclausuraram. Ninguém se recordava de um tal acontecimento. Poderíamos estar sofrendo maldição.
Que houvesse um desfecho para aquela chuva: isso esperávamos com ansiedade. Nesse aguardo, eu me distraía olhando os milhares de arco-íris que luzinhavam a toda a volta. Nunca nenhum céu se tinha multiplicado em tantas cores. Dizia minha mãe, a chuva é uma mulher. Uma dessas viúvas de vaidade envergonhada: tem um vestido de sete cores mas só o veste nos dias em que sai com o Sol.
A indecisão da chuva não era motivo para alegria. Ainda assim eu inventei uma graça: meus pais sempre me tinham chamado de pasmado. Diziam que eu era lento no fazer, demorado no pensar. Eu não tinha vocação para fazer coisa alguma. Talvez não tivesse mesmo vocação para ser. Pois ali estava a chuva, essa clamada e reclamada por todos e, afinal, tão pasmadinha como eu. Por fim, eu tinha uma irmã, tão desajeitada que nem tombar sabia.
FUMOS E NÉVOAS
E passou-se um dia sem que a chuva descesse. Nos juntamos na varanda interrogando os céus. Sob o alpendre fazia muito silêncio. Meu avô, no assento de balanço, chefiava a vigília. Ao lado, a cadeira sagrada de sua falecida esposa, nossa avó Ntoweni. Desde que ela morrera, o assento nunca mais fora ocupado por ninguém.
E agora ali estávamos nós, calados, incapazes de raciocínio e com medo de entender. Por fim, meu avô ousou falar.
- Essa chuva traz água rio bico.
Foi de repente, meu pai se ergueu e anunciou o pensamento: havia que bater naquela água, forçá-la a tombar. Deu uns passos por diante e, num gesto largo, comandou:
- Tudo a remexer!
Saímos todos com pás, vassouras e panos. Todos menos o avô que mal se erguia sozinho. E varremos o ar, socando as gotas como se agredíssemos fantasmas. Mas a chuva não tombava, as gotas viravolteavam no ar e depois, como aves tontas, voltavam a subir.
Ao fim de um tempo, meu pai se afastou de nós para não vermos uma sombra pousar em seu rosto.
- De onde vem isto? - perguntou ele em voz quase viva, não querendo ficar calado, mas evitando ser ouvido.
- Deve ser feitiço - sugeriu o avô.
- Não - disse a mãe. - São fumos que vêm da nova fábrica.
- Fumos? Pode ser. sim, isto só aconteceu depois dessa maldita fumaça...
- São esses fumos que estão a atrapalhar a chuva. A água fica pesada, já não aguenta ser nuvem...
Estremecemos, aflitos: a chuva tinha perdido o caminho. Acontecia à água o que sucede aos bêbados: esquecia-se do seu destino. Um bêbado pode ser amparado. Mas quem poderia ensinar a chuva a retomar os seus milenares carreirinhos?
No poente, vimos o avô, o meu pai e os meus tios se encaminharem para o pátio do régulo. Assunto de chuvas é da competência dos deuses. É por isso que existem os samvura, os donos da chuva. São eles que falam com os espíritos para que estes libertem as águas que moram nos céus.
Os homens grandes se juntaram durante toda a noite, um mau presságio lhes dava encosto. O que sucedia era um jamais acontecido. Ninguém poderia ter ousado demoniar a chuva. Na nossa terra, toda água é benta.
continua...
Fonte:
Mia Couto. A chuva pasmada. 2004.
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