sexta-feira, 19 de abril de 2019

Mia Couto (A Chuva Pasmada) A Confissão na Ponte Morta - A Inundação do Sangue


A CONFISSÃO NA PONTE MORTA

      Estranhei a tia, furtiva, no escuro. Me acenava, sussurrando:

      - Sobrinho, me ajude. Leve este saco, não quero que ninguém me veja.

      - Para fazer o quê?

      - Não discuta, leve-me o saco. Encontramo-nos no portão das traseiras.

      Ajudei-a nesse seu propósito de sombra. E logo dei conta: ela se esgueirava de casa, de alma e bagagem.

      - Tia, vai-se embora?

      - Eu vou, sim.

      - E porquê?

      - Fui eu que trouxe esta desgraça, foi tudo culpa dos meus pecados...

      Falava enquanto andava, se afastando pela estrada a passos largos. Eu a seguia, ajudando-a nos carregamentos. Até que chegamos à ponte do Guazi, uma ponte velha, em ameaço de desabar. Há anos que ninguém ousava apoiar um pé nas suas carcomidas tábuas. Era ali que minha mãe lavava a roupa quando o rio levava caudal. Mas foi interdita de lavar quando notaram que, invariavelmente, as roupas escapavam ao sabor da corrente. As gentes pescavam as peças de roupa mais abaixo no remanso. Todos estranhamos: nossa mãe, que era tão atenta aos seus afazeres, como se distraía tanto assim?

      Pois, a tia se sentara na mesma pedra onde antes minha mãe lavava as roupas. O olhar dela vadiou pela paisagem enquanto suspirava:

      - Fico aqui, na ponte, quem sabe aqui ele me pode ver...

      - Quem ele?

      - Ele.

      Regressei a casa deixando-a sob o manto da chuva. Ainda parei na estrada a olhar para trás: a tia parecia ter sido capturada dentro de um vidro fosco. A seu lado, uma velha tabuleta deveria, em tempos, ter gravado o nome do nosso lugar. Mas já não se distinguia nenhuma letra. A tia dizia que ali estivera escrito “Sembora”. Segundo ela, a nossa vila se chamava Sembora porque dali a gente só se ia embora. Tanto ninguém chegava que o cemitério nunca fora chamado a crescer.

      Cheguei a casa sem ter dado conta do percurso. Quando contei o sucedido ao avô ele foi como que atingido por um projétil. As pernas bambas se erguiam e reerguiam. A boca abria e fechava como um peixe fora de água. Quando tentei acalmá-lo, ele me segurou os pulsos para vincar bem a sentença:

      - Volte imediatamente à ponte! E fale isto a sua tia: diga-lhe que eu sei tudo. Sempre soube tudo.

      - Certo, avô.

      - Ela que volte para casa. Sua tia não tem culpa nenhuma. E lhe diga assim: que pedra contra pedra só pode dar fogo.

      - Não estou a perceber, avô.

      - Ela há de saber. Diga só assim: pedra contra pedra...

      - ...só pode dar fogo, já entendi.

      - E lhe entregue isto.

      Os dedos tortos tremeram mais do que o costume. Passou-me um embrulho tosco, atado com um cordel.

      Fui andando, rumo à ponte, passo lento para dar tempo às ideias. Minha tia saía de casa sem despedida? Diz-se que despedir é já partir. Talvez por isso ela não dissera nenhum adeus. E até invejei a sua coragem: ninguém a não ser os meus distantes irmãos haviam vencido a estrada.

      Percebi que chegara ao charco de Guazi pelo ruído ensurdecedor das rãs. Minha tia parecia uma mancha borrada, desenho murcho em papel molhado. Desembrulhou o presente. Um faiscar de metal me ofuscou. Enruguei o olhar para apurar a luz entre as luzes. Na concha da sua mão, brilhava o velho isqueiro de meu pai.

      A Bíblia tombou-lhe do colo, soltando-se do invólucro de plástico. Mas a tia estava em tal encantamento que nem cuidou que a palavra divina estava tombada sobre o chão.

A INUNDAÇÃO DO SANGUE

      Minha mãe me chamou ao quarto. Estava-se abonitando, frente ao espelho.

      - Que tal estou, meu filho?

      - Não sei, mãe, para dizer a verdade eu não gosto de lhe ver assim...

      Primeiro, pareceu sentida. Mas depois ela sorriu, mão na anca, em pose:

      - Pois lhe digo: estou bonita, mas muito bonita. Vocês deviam era ter-me visto mais vezes assim, mulher de valer.

      Pegou no frasco de perfume e já se preparava para se borrifar quando hesitou, gesto suspenso. Pediu que me aproximasse.

      - Quero só que me diga: você acha que eu cheiro mal?

      - Mas, mãe...

      - Me cheire, filho. Sem receio, cheire esse meu aroma natural...

      Eu não sabia como contrariar. Menos sabia como obedecer.

      Como se pode, a pedido, cheirar uma outra pessoa? Pior ainda se esse alguém é a própria mãe. Mas o tom ganhava insistência, minha mãe se afastava de si, via-se que não era comigo que falava. Ela estava ajustando contas com fantasmas:

      - Pode alguém dizer, realmente, que este cheiro não é de mulher?

      Virei costas, não podia nem ver nem escutar mais. O meu desejo era sair, a minha pressa era desaparecer. Mas não tive tempo. Porque, de repente, ela atirou o frasco de cheiro de encontro à parede. Vidros e perfume se espalharam por todo o quarto. A mãe desabou no chão como se ela fosse o último estilhaço.

      - Eu não aguento mais, filho. Estou a chegar ao fim.

      Enxugou as lágrimas, inspirou fundo enquanto eu limpava os destroços de sua raiva.

      - Limpe isso, meu filho, me ajude. Eu tenho que ir à fábrica, já estou atrasada.

      Voltou atrás para me dar um beijo. Mais que um beijo: me entregava a amarra de um juramento.

      - Ninguém pode saber, ouviu? Ninguém.

      E saiu. E foi no momento certo, pois não tardou que, leve como uma sombra, meu pai se adentrasse pelo corredor. Vinha guiado pelo cheiro a perfume. Penetrou no quarto de casal e farejou com porte de caçador. Escutou um vidro se esmagar por baixo da sua bota. Os olhos, de gato, perscrutaram em redor:

      - Não sabe de sua mãe?

      - Eu acho que ela foi ao rio...

      - Ao rio?

      Bateu a porta com estrondo. E eu corri com ele para o vale. Meu pai andou às voltas procurando pela mulher. Já desistido, quebrou um ramo de kwangula-tilo. Eu sabia o que era: um arbusto verde-escuro que afasta os relâmpagos e traz bons olhados. Juntando a força dos dois braços, meu velho espetou o ramo na areia branca. Fazia como se cravasse uma faca no peito do mundo.

      Depois, ele próprio se derramou sobre o leito já seco. Parecia chorar. Ou talvez dormisse como se aquela fosse a sua cama primeira. Ficou assim, um tempo. Um tempo tão lento que eu me cansei e regressei, só, para casa.

      Meus pés descalços, no caminho, acariciaram os calhaus rolados. Como o rio arredondou a pedra: assim eu queria suavizar a palavra e pedir a meu pai que regressasse para casa. Mas não fui capaz de dizer nada.

      No quintal, sentei-me no velho barco do avô. Cansado, perdi conta de mim. E sonhei. O mesmo sonho de sempre. Herdei de meu avô o sonho costumeiro de ir ter com o mar. Ser rio e fluir. Água em água, onda em onda, até escutar o grito agudo da gaivota.

      Acordei, estremunhado.

      Não era o piar aflito das gaivotas: eram gritos que vinham de nossa casa. Mais perto, percebi os clamores, meu pai espalhando ameaças:

      - Eu mato-a, eu mato-a!

      Cheguei à varanda e me surpreendi: na sagrada cadeira de Ntoweni estava sentado o menino branco, o filho do dono da fábrica. O miúdo chorava, tremendo e fungando, enquanto meu pai rodopiava como um corvo em seu redor. Muitos braços procuravam acalmar o velho. Sobretudo, a nossa tia sabia dar uso ao seu regresso. E lhe suplicava, com a voz mais doce.

      - Cunhado, por favor, o que esse miúdo falou não é verdade... minha irmã deve estar no mercado...

      Meu pai, porém, já era um vulcão. Entrou na arrecadação, desatou a abrir e fechar gavetas. Aproveitei para me aproximar do miúdo branco. E disse-lhe:

      - Você não pode sentar aí... essa é a cadeira sagrada...

      - Como?

      - Essa cadeira está quebrada, você ainda vai cair.

      O moço ergueu-se, com modos sonâmbulos. Depois, baixou o rosto para esconder as lágrimas. Entre soluços, murmurou:

      - Eu vinha para brincar contigo, eu só queria brincar contigo...

      Meu pai irrompeu de novo pela varanda. Esgrimia uma catana na mão, enquanto anunciava:

      - Vou à fábrica e mato aquela gaja!

      Nenhum de nós se mexeu. Assim que se deixou de escutar a gritaria no fundo da rua, minha tia implorou aos homens que intercedessem. Eles que fossem e fizessem estacar a sangraria. Mas todos se recusaram:

      - É honra de homem, não nos podemos meter.

      - Você, meu sobrinho, vá parar o seu pai, por amor de Deus!

      Mas os outros, mais velhos, me fizeram parar. Sem palavra, sem gesto. Bastou o seu olhar fechado como uma muralha. Ficámos em silêncio, apenas com o vozear ranhoso da nossa tia:

      - Pai nosso, cristais no Céu...

      Não suportava mais aquele cantochão, as mal soletradas orações que só podiam trazer mais desgraça. Zonzeei por ali, até que um leve toque no meu ombro reclamou a minha atenção. Era o moço branco. Falei antes que ele abrisse a boca:

      - Quem o mandou vir aqui, quem mandou dizer alguma coisa?

      - Meus pais não querem que eu brinque convosco. Eu também não posso pensar que o meu pai ande metido com... com uma preta.

      Desta vez, ele disse a palavra. Antes, sempre a evitara. Mas a pronunciara por extenso, com todo seu peso: preta. Talvez porque a pessoa nomeada fosse mulher. Seria mais difícil dizer a palavra no masculino. Quando me dirigi ao miúdo não havia ponta de raiva na minha voz:

      - Nunca mais volte aqui!

      Ele se retirou, cabisbaixo. À saída, deixou o saco com berlindes sobre a tábua do portão. Só quando o vi extinguir-se por entre as gotas é que dei conta de que, durante todo aquele tempo, meu avô não dera sinal. Procurei na varanda. Mas não o encontrei na sua eterna cadeira de balanço. Meu avô desaparecera. Seria motivo de alarme mas, na circunstância, eu estava tão atordoado que nem me movi. Apoiado na balaustrada, deixei as pernas balançarem: eu embalava o filho do diabo. Dos meus lábios fluía uma espécie de oração. Mas não encontrava palavra nem crença. Minha tia enganava-se nas rezas. Eu não encontrava um deus a quem suplicar.

      Nosso pai voltou horas depois, esfarrapado, os braços cobertos de sangue. Ele nada disse. Apenas lançou um suspiro e se fez desabar sobre o chão. Escutaram-se choros. Comedidos para não despertar os maus deuses. A tia se debruçou sobre o meu velho e disse:

      - Venha, cunhado, venha que lhe vou lavar.

      Meu pai se deixou conduzir como um ébrio. Por um momento, pareceu-me que a tia o arrastava para uma dança, rumo a esses embalos fatais com que ela jiboiava os homens.

continua...

Fonte:
Mia Couto. A chuva pasmada. 2004.

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