O ADIADO PRÍNCIPE
Eu já tinha amontoado suficientes pedrinhas aos pés do avô. Ele baixava-se e colocava, uma por uma, a pedra no elástico da fisga. De seguida, disparava o projétil de encontro aos céus. O que fazia? Abria buracos na paisagem, rasgava nesgas de céu naquela cortina de água.
Me apetecia juntar-me a ele, eu mais a minha fisga. E juntos flecharmos os céus, fazendo pontaria para acertar no nada. Mas não podia. Tinham-me dado tarefas, e eu já içava um escadote sobre o ombro, quando o avô me fez parar:
- Sua tia prefere os padres porque eles desculpam o crime dela.
- Crime?
- Nunca lhe disseram? Sua tia matou um homem!
Pousei as escadas para melhor escutar. O velho não esperava por outra coisa: foi soltando as falas. Tinha sido num baile, um forasteiro tinha chegado ao nosso lugar e se decidira a pernoitar. Havia, nessa noite, festa no clube. A tia era mais jovem, mais fogosa, mas já sofria da doença de esperar homem. A enfermidade lhe deu coragem e, para espanto de todos, ela cruzou a multidão e convidou o moço para rodar. O forasteiro, primeiro, se envergonhou: já se vira mulher tomar as dianteiras? Na nossa aldeia, mulher que toma a iniciativa não o faz por coragem, mas por desespero. Ou pior, por razão de feitiço. Todavia, o fulano lá se ergueu e, meio contrafeito, foi rodopiando com ela pelo átrio. Então, sucedeu: o braço da tia foi cingindo o pobre desconhecido em aperto de jiboia esfaimada. O moço começou por ficar sem fôlego, depois foi perdendo as cores e, quando se deu conta, a nossa tia já lhe tinha perfurado as costelas. O estranho caiu fulminado, por cima do último suspiro.
- Não é verdade, avô!
- O que é que disseste?
Não repeti. A fantasia do mais velho era sempre tal que ele mesmo de suas falas se estranhava. Desta vez, porém, havia uma convicção que me fazia duvidar.
- Nada, avô. Não disse nada.
Me afastei, fui mudar as palhas do teto. com a acumulação da água, o colmo começava a apodrecer. Empoleirado na escada, meus olhos lutavam para se manterem abertos. A voz da tia quase me fez cair do escadote. Lá estava ela, em baixo, com o seu sorriso que nunca desbotava.
- Afinal, nem tudo é tragédia.
- O que se passa, tia?
- Hoje, de manhã cedo, vi um cavalheiro chegando.
- E quem era?
- Um desconhecido. Vinha pela estrada, todo vestido de preto. Foi essa chuva que o trouxe, abençoada chuva.
Perscrutei o horizonte, mão em pala sobre a testa. Como podia ela ter visto um vulto, se tudo desfocava para além do nariz? Miragem teria sido. Ou talvez o chuvilho já tivesse aguado a sua cabeça.
- Desça, sobrinho, que eu quero desafiá-lo para uma surpresa.
- Surpresa?!
A tia ligou o rádio, fazendo soar uma música roufenha, quase asmática.
- Venha dançar-me. sobrinho!
O mel na voz me fez arrepiar. As recentes revelações do avô ainda em mim ecoavam. À minha frente, não se desvanecia o dançarino estrafegado pelo sequioso abraço. Mas já os meus passos tonteavam, ao compasso do rádio de pilhas.
- É verdade, tia, que houve um homem que morreu num baile?
- Num baile?
- Foi há muito tempo, tia.
- Ah, tenho a vaga ideia, sim. Mas como é que sabe?
- Foi o avô que me contou.
- Se foi o avô, é porque é mentira.
E ela me apertou mais. Senti o seu corpo se esmagar de encontro ao meu.
VISÕES DE PEIXES SOLARES
O avô falou como sempre: aos gritos. A voz, rouca, inundou os cantos da casa:
- Eu vi, eu vi
Era o falar altissonante de quem não ouve e receia não ser escutado. Que tinha visto um peixe subindo nos céus, imitando o voo de um pássaro. Os da casa riram-se:
o avô e seus delírios. Mas eu gostei de acreditar e, no meu pensamento, já cardumes atravessavam as nuvens, rebrilhando entre a sarapintada claridade. E cheguei mesmo a escutar o bater de barbatanas, o ar assobiando entre as coloridas escamas dos peixes.
Mas o contentamento era de sol de pouca dura. Ou como dizia o avô: de boca dura. Breve, esmoreceu o sorriso. Havia uma tensão que crescia, uma invisível mão que sufocava o nosso lugar. Como a serpente que asfixiou o dançarino.
De todos, era a mãe quem mais se agitava. E atingia o meu pai, improperiando-o como se nele estivesse a culpa. Minha tia procurava sossegar as ansiedades da irmã. Ela que deixasse o marido, não lhe cobrasse nada.
- Você não desperdice o seu homem, mana. Há outras que nunca tiveram marido.
Mas era inútil. Em minha mãe fermentava uma insistência como se, naquela cobrança, fizesse contas das arrelias de uma vida inteira.
- E então, homem? Não vai falar? Não vai lá à fábrica?
- Nem pensar.
- E por que não quer ir?
- Não é que eu não quero, não tenho é vontade.
Meu velho se encostou bem arrumado no cadeirão a mostrar que falara tudo. Ele não desperdiçava palavra, nem esbanjava gesto. O que ele fez foi acender o isqueiro. Era o que fazia quando não sabia o que fazer. Há muito que não fumava, sobrara-lhe aquele gesto sem sentido. Minha mãe ainda insistiu, o queixo erguido sobre todos nós:
- Ninguém vai?
Silêncio. Minha mãe se retirou com passo decidido como se fosse passar um pano pelo céu.
continua...
Fonte:
Mia Couto. A chuva pasmada. 2004.
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